O sino da igrejinha faz belém-blem-blom
O sino da igrejinha faz belém-blem-blom
Deu meia-noite, o galo já cantou
Seu Tranca-Rua é dono da gira
E corre gira que Ogum mandou.

O aroma da fumaça da vela indiana tomou conta do terreiro, e o toque teve início com os pontos, as danças e gargalhadas de cabocos e exus.

Até que baixou Tranca-Rua, o homenageado do toque. No início nos foi arredio, mas depois de insistirmos com ogans e ekedis da casa, de poucas palavras, com sua voz cavernosa, resolveu nos falar na sua casa, e até nos permitiu fotografá-lo no terreiro, o que não é comum, segundo pessoas da casa.

O que tu que saber a respeito de mim, do Tranca-Rua? Faço todos tipos de trabalho, todos, todos, qualquer um tipo de trabalho, eu faço todos. Eu sou Tranca-Rua das Almas. Nasci com as almas, nasci na rua, me criei na rua, na rua morri. Venho hoje cumprir uma sina. Indo em qualquer terreiro e solicitando desse que hoje fala. Que não se brinque com Exu, que se respeite Tranca-Rua. Com Exu não se brinca, Exu não é brincadeira de ninguém. Exu é para trazer prosperidade, mas também dá pra trazer castigo na hora certa. Então não se deve brincar com quem não conhece, com o que não sabe, com o que ninguém vê. Vá e que Exu lhe acompanhe.
Mas pouco tempo ele ficou no terreiro, deixando suas bênçãos, logo se foi. E o toque continuou com as pombagiras, que tomaram conta, bebendo, fumando, dançando, contando suas histórias, aquilo que nos é permitido ouvir e compartilhar…


“Sou Rainha das Almas, sou famosa por trazer uma rosa — uma rosa, meu amor — uma rosa negra, uma rosa venenosa para matar as invejosas, só isso”.

“Sou Maria Padilha do Cemitério. É a segunda vez que eu venho na cabeça do meu filho, hoje é a primeira vez que venho no terreiro do Pai Geovano. Eu vivo no cemitério, e por enquanto é só”.

“Me chamo Princesa Santa Rosa. Sou Princesa Cigana. Eu vim de uma tribo que meu pai era rei. De onde eu fugi para viver com um macho, e ele não me quis. Ele era dos safados, queria estar no mundo, queria estar sozinho. Aí ele me abandonou no deserto e me deixou no deserto…”






CONVERSAS DE CABANA E BARRACÃO
Continuação da entrevista que fizemos com Pai-Geovano sobre assuntos do Candomblé, de sua parte de Umbanda, entremeadas com outras questões dentro das religiões afro-brasileiras e da sociedade de forma geral.
AFINSOPHIA: São dezesseis Orixás que são cultuados no Candomblé?
PAI-GEOVANO: Não, não são dezesseis Orixás, são pra mais de quatrocentos. Só que nessa chegada ao Brasil, trouxeram fundamento só para dezesseis Orixás, mas tem muitos mais Orixás.
Aqui no Brasil, há culto para outros que não estes dezesseis?
Não, que eu saiba não, são dezesseis Orixás, de Exu a Oxalá. Só assim ficou mais fácil de se estudar, porque é um estudo muito complexo, para a gente chegar a jogar um búzio, passar um ebó, um descarrego de ebó pra uma pessoa, a gente tem de ter noção do que a gente está fazendo, porque ebó não é pra qualquer pessoa que se pode fazer. Ofernda pra Orixá não é qualquer pessoa que pode pegar e mexer com a cabeça da pessoa, porque é uma coisa muito sagrada, a cabeça, o orida pessoa, tanto é que a primeira coisa que vem ao mundo é a cabeça, é uma coisa muito sagrada.
É verdade que os Orixás cultuados no Brasil não são mais na África?
Não, tem bastante Orixá que ainda é cultuado na África; mas tem muitos também que os africanos nem conhecem, porque não cultuam mais; outras religiões já entraram, as pessoas que tinham os fundamentos já morreram; assim, muitos aqui no Brasil estão muito mais vivos do que na África.
Qualquer pessoa que vá a um terreiro pode evoluir e chegar a ser um Pai de Santo?
Depende do cargo dessa pessoa. Você entra num terreiro pra desenvolver seu Orixá, pra receber um Orixá. Você vai pra mesa de jogo de búzios, o Pai de Santo vai jogar búzios pra você e vai perguntar para o seu Orixá se você tem a capacidade de incorporar esse Orixá. O próprio Orixá vai dizer, através do jogo, se sim ou se não. Se caso você for capaz de incorporar esse Orixá, esse ancestral vir em cima de você, você tem capacidade de chegar a ser pai de santo. Se caso não, eles te indicam, dizem que você vai ter um cargo dentro da casa, você vai poder participar das coisas todas, vai poder participar da casa, mas você vai ter um cargo, não com direito a ser pai de santo, mas sim como um ogã ou uma ekedi. O que vem a ser o Ogã? É aquele rapaz, aquele senhor que cuida da parte dos atabaques, das oferendas de bichos, da recepção de pessoas. O que vem a ser uma ekedi? Vem ser uma senhora, uma moça ou uma menina que o Orixá escolheu pra cuidar, pra zelar dos peijis, zelar o santo quando estiver incorporado, pra ter responsabilidade com o terreiro. Sendo assim que o Ogã e a Ekedi tem elevação espiritual. Como? Todas as vezes que ele dá uma obrigação ele se eleva perante o Orixá.
Vivemos em uma sociedade que as pessoas ignoram o candomblé, não conhecem, existem tabus. E como é que nessa relação com a sociedade de forma geral, o sr. já me contou uma situação de preconceito…
O preconceito existe em todas as religiões, mas com o candomblé é muito mais visível, muito mais agudo a situação. Porque as pessoas te vêem como se você fosse um monstro, um satanás ou um adepto dele. Só que não é assim. Todo ser humano tem o direito de ir e vir, de fazer o que a lei permite. A pessoa, às vezes, por ela ser católica apostólica romana, ou até mesmo de outra religião, pensa que só a religião deles que é certa. Não existe religião certa aos olhos de Deus, porque de qualquer maneira você vai estar buscando Deus, você vai estar buscando seu eu interior. Há preconceito demais, se a gente for falar de preconceito vamos ficar a noite inteira falando. Eu sofri preconceito, a única vez que eu sofri foi porque eu não consegui ser padrinho da menina porque a religião, os católicos não permitiram porque eu não era da Igreja Católica e assim não queriam, não permitiram. A família da menina não tinha nada contra. A própria religião, Igreja, os catequistas, os organizadores do batismo disseram que o padre não permitia. Os pais da menina são católicos e gostam bastante de mim e queriam, querem. Até hoje a filha deles não é batizada. A gente tá esperando uma outra data pra batizar numa outra igreja. Pai e mãe são católicos, só eu que sou candomblecista, e eles gostam bastante da minha casa, de mim, então eles se sentiram no direito de querer. E eu realmente não pude. Lamentei muito porque de um jeito ou de outro seria uma reverência que a gente ia fazer a Deus.
Há situações que, pra quem não conhece ou pra quem tem medo, são meio interessantes, manifestações de Erês, por exemplo…
Erê é uma coisa, Erê é um espírito criança, então ele não tem noção da malícia, ele não tem noção do que é teu, do que pode pegar, o que não é pra pegar, se é sujo, se é limpo. Como eu disse há pouco, na África tudo é aproveitado, aquilo que você joga porque não presta, o Erê olha, como ele veio da África, ele vai com certeza perceber que aquilo que está sendo jogado fora ainda é aproveitável. Acontece que tem muito Pai de Santo que acredita que Filho de Santo é escravo, que Erê é escravo; já vi ocasiões de Pai de Santo colocar o Erê pra lavar roupa o dia inteiro, arrumar casa. O que os Erês fazem? Eles fogem mesmo, vão procurar comida, vão brincar…
As ciências, principalmente as que tratam da mente, tem por hábito querer iluminar tudo. Aquilo que ela não compreende, ela coloca como um “mal”, e que por isso deve ser controlado por ela. Já houve algum conflito com as instituições da psicologia, da psiquiatria?
É verdade, é bem típico, mas que eu saiba não, porque o Erê é criança, mas ele é muito esperto, como as crianças, se ele vê que vai acontecer uma coisa dessas, ele vai embora, ele deixa o filho dele purinho. Ou então o Orixá vem, manda o Erê embora e vai embora também, livrando assim a pessoa, o filho. O Erê tem uma sabedoria muito grande, ele não vai por hipótese alguma deixar qualquer coisa de ruim acontecer com a pessoa que ele está em cima. Tem muitas coisas que a ciência vai ficar sem explicação mesmo.
Existem casos de uma pessoa procurar uma entidade pra fazer um tipo de serviço e ela se negar a fazer o serviço?
Existem bastante. Na minha casa vai muita gente querer matar os outros. E às vezes a entidade dá um conselho totalmente ao contrário e a pessoa até vem a se aborrecer. Aparecem muitas pessoas querendo fazer maldade pros outros, querendo se vingar ou coisa parecida. Dependendo do caso, a entidade tenta amenizar…
Agora se entidade perceber se a pessoa está certa…
Aí ela faz mesmo. Mas na maioria dos casos a entidade aconselha mais a pessoa a desistir mesmo desse intento, tirar o rancor do coração.
No caso de políticos corruptos que requisitam Pais de Santo, se eles prejudicam a comunidade com suas ações, as entidades têm uma postura em relação a questões como essas?
Não. Tudo o que você faz, volta pra você. Se você é um político e quer ganhar a eleição, seus caminhos estão fechados para aquela situação, você vai lá com a entidade, ela passa um remédio, você paga o Pai de Santo pra fazer, ele faz e pronto. Você ganha a política. Daí a você ser corrupto, não é culpa da entidade. A entidade ajudou a abrir seus caminhos. O que você vai fazer dos seus caminhos abertos já é um problema seu. É isso que as pessoas às vezes não compreendem, não sabem ver até onde vai o caminho. Quando você procurou essa determinada entidade, esse determinado Pai de Santo, seus caminhos estavam fechados, então você fez as oferendas, tomou os banhos, a negatividade foi tirada de seu corpo, aí você ficou apto a seguir aquele caminho, você conseguiu, ganhou a eleição, daí pra lá, o Pai de Santo, a entidade teve o elo cortado, daí pra lá ele vai seguir sozinho, o que você vai fazer com esse cargo que você ganhou, aí só você vai saber, se você vai fazer corrupção ou coisa parecida, o Pai de Santo não tem culpa, o Caboco não tem culpa, o Exu e ninguém mais. Só você pode assumir a culpa. Com toda certeza, depois que ele ganhou ele some. Tem muitas e muitas pessoas que requisitam, prometem, prometem, prometem, o Pai de Santo cai na besteira de ajudar com o intuito de ganhar alguma coisa mais tarde, mas não ganha nada, depois que ele ganha, ele fica tão importante, que ele não pisa mais na tua casa, não atende mais teu telefone nem liga pra ti. Aí só vai se lembrar de ti de novo quando ele cair, quando a corrupção dele vier à tona, quando a Polícia Federal pegar ele, aí é que ele vai se lembrar do Pai de Santo que ajudou ele ou ele vai procurar outro…
Leitores Intempestivos