A Pilar, uma casa
“Uma força alheia, misteriosa, incompreensível, parecia opor-se à morte da pessoa, apesar de a data da sua defunção está terminada, como para toda a gente, desde o próprio dia do nascimento.”
No dia seguinte à morte de Saramago ninguém morreu. Como se fora uma variação de as intermitências da morte , em que esta se apaixona por um certo violoncelista e finalmente vai a dormir com ele, Saramago parece ter ido dormir com a morte ontem, 18 de junho de 2010, isso depois do enamoramento que teve com a Vida desde 16 de novembro de 1922. Nietzsche diz, Só pode dormir quem sempre esteve acordado; seguindo a linha itinerante é que este bloguinho diz, Só pode morrer quem sempre esteve vivo. Saramago. A morte é sagrada, A vida é que é sagrada. E já que a morte é um boato da vida, como disse o beat Gregory Corso, Saramago inventou o boato da morte de José Saramago, Só os deuses mortos são deuses sempre, disse em Todos os Nomes para afastar qualquer possibilidade de ressurreição, dessemelhando-se de um pretensioso e necrófilo Deus cristão. Não. Saramago não vai lutar com ou como um espectro, mas a partir do turbilhão da vida que se movimentou por ele antes e depois, além e aquém, do Nobel em 1998, talvez numa época medieval evocada no Memorial do Convento, E este mulataz da Caparica que se chama Manuel Mateus, mas não é parente de Sete-Sois, e tem por alcunha Saramago, sabe-se lá que descendência a sua será, e que saiu penitenciado por culpas de insigne feiticeiro.
Deve-se vê-lo tecendo a feitiçaria antes de ser conhecido pela maioria dos portugueses e pela totalidade dos brasileiros, ainda em sua infância pobre, se se observam as palavras de Manuel Bandeira sobre as experiências artísticas originárias. Pode-se dizer que para alguns homens a experiência da pobreza causa ou um enviscamento rancoroso ou uma distanciação indiferente. Ao contrário, para Saramago serviu para ele fundir revolução política e estética, e é certo que ambas não podem caminhar separadas. Em qualquer biografia das que hoje abundam sobre Saramago pode-se ver que, ao mesmo tempo que ele prossegue como periodista em diferentes jornais, vai apresentando suas experiências literárias, embora os 19 anos entre Terra do Pecado e Os Poemas Possíveis. Para quem vê a arte distanciada da vida parece muito tempo. Para Saramago, o relógio não poderia medi-lo, quanto mais que se sabe que o tempo do relógio de uns e de outros não é o mesmo tempo de uns e de outros. Como Saramago poderia aparecer numa realidade descrita em O Ano da Morte de Ricardo Reis, Esfuziam gritos patrióticos, Portugal Portugal Portugal, Salazar Salazar Salazar, este não veio, só aparece quando lhe convém, nos locais e às horas que escolhe, aquele não admira que aqui esteja, porque está em toda parte. Assim, não se pode separar a atividade jornalística, o ativismo político e a arte literária no engajamento de Saramago cada vez mais atuante na resistência ao ditador Salazar, até filiar-se, em 1969, ao ainda clandestino Partido Comunista Português, que o cita hoje como um dos construtores da Revolução dos Cravos (1974). Mas no ano seguinte, sabendo que a liberdade de expressão era apenas o início, que a partir daí era preciso afirmá-la na prática, ele, enquanto diretor-adjunto do Diário de Notícias, foi demitido, decidindo dedicar-se à literatura. É nesse período que prepara o seu quarto volume de crônicas jornalísticas, Os Apontamentos, e, fundamentalmente, publica o Manual de Pintura e Caligrafia, exatamente 30 anos depois de seu primeiro romance. Mas é com Levantado do Chão (1980) que a crítica – isto é, os jornalistas – portuguesa se apercebe de uma obra-prima, o que é confirmado de dois em dois anos com o lançamento de novas obras-primas, Memorial do Convento (1982), O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), A Jangada de Pedra (1986).
É nessa intensa atividade que surge Pilar Del Río, Vi um livro chamado Memorial do Convento, e achei curioso o título. Li uma página, li o arranque, comprei, fui para casa e devorei-o. Pilar foi à livraria de Sevilha e pegou todos os saramagos traduzidos, Quando acabei de ler O Ano da Morte de Ricardo Reis foi uma comoção muito forte e decidi fazer o que não tinha feito nunca, senti a necessidade de seguir aquele itinerário lisboeta, senti que tinha a obrigação moral de dizer a José Saramago o que tinha experimentado com a obra. Um autor só acaba a sua obra quando o livro é lido e entendido. E eu queria dizer-lhe: completou-se o ciclo, li-o e entendi-o então, vim com o meu livro e com O Livro do Desassossego do Pessoa. O encontro, Eu estava no quarto, desci, saí do elevador e vi um senhor alto… não sei porquê tinha imaginado um homem baixo… apertámos as mãos, apanhámos um taxi, fomos ao cemitério dos Prazeres, ao túmulo de Pessoa, lemos um fragmento de Pessoa, voltámos ao hotel num táxi e despedimo-nos à porta, com um aperto de mãos. Depois, depois… ficariam na imaginação, mas em épocas de marocagem virtual, leiam mais no Citi. Neste caso, o que se constatará nas palavras da mulher é o que já víramos nas palavras do homem e nas imagens em que ambos aparecem juntos, que para este bloguinho é autêntica e imediata, como na relação de Blimunda e Sete-Sóis, Apenas se olharam, olharem-se era a casa de ambos, José Anaiço e Joana Carda, Jesus e Maria Madalena, o violoncelista e a Morte, a mulher da limpeza e o homem do Conto da Ilha Desconhecida e todos os outros casais amantes que aparecem em todas as obras de Saramago. E segue a linha de ambos serem marxistas, comunistas e amantes da literatura, o mais estritamente possível numa relação segundo as palavras do filósofo italiano Toni Negri, O amor não pode ser algo que se fecha no casal ou na família; deve abrir-se para comunidades mais vastas. Deve construir, caso a caso, comunidades de saber e de desejo; deve tornar-se construtor do outro. O amor é hoje fundamentalmente a destruição de todas as tentativas de fechar-se na defesa de algo que não pertence a si. Creio que o amor é a chave essencial para transformar o próprio em comum. Talvez por estas disse Roque Lozano, A casa está sempre onde estiver a terra, e Pilar, apenas em outras palavras, Não tive dúvida nenhuma em vir viver para Lisboa. Não tive nenhum problema de adaptação, quando vim para cá, vim para minha casa.
Só para o deus dos cristãos não há mulher. No bom encontro com Pilar, Saramago ficou mais forte, e foi aí que publicou aquela que seria considerada uma das suas obras mais controversas. Uma obra que será capaz de fazer, caso a linguagem humana perdure, o Cristianismo ser lembrado mesmo depois de ter desaparecido com suas violentações na Idade Média, Idade Moderna e Pós-Moderna, trata-se de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de 1991. Que cristão dogmático-castrado suportaria passar da cena da concepção do menino Jesus, Sem pronunciar palavra, José aproximou-se e afastou devagar o lençol que a cobria. Ela desviou os olhos, soergueu um pouco a parte inferior da túnica, mas só acabou de puxá-la para cima, à altura do ventre, quando ele já se vinha debruçando e procedia do mesmo modo com a sua própria túnica, e Maria, entretanto, abrira as pernas, fosse por inusitada indolência matinal ou pressentimento de mulher casada que conhece os seus deveres. Deus, que está em toda a parte, estava ali, mas, sendo aquilo que é, um puro espírito, não podia ver como a pele de um tocava a pele do outro, como a carne dele penetrou a carne dela, criadas uma e outra para isso mesmo, e, provavelmente, já nem lá se encontraria quando a semente sagrada de José se derramou no sagrado interior de Maria, sagrados ambos por serem a fonte e a taça da vida, em verdade há coisas que o próprio Deus não entende, embora as tivesse criado. Que maravilha, mas por esta o governo português retira o nome de Saramago de um prêmio europeu, e é quando ele se exila junto com Pilar na ilha de Lanzarote. Mas era só o início da contenda, aliás, nas obras anteriores, as ironias e carnavalizações saramaguianas já despontam aos montes, mas o caso é que os críticos e doutores da Lei só leem a bem da verdade o título dos livros, afora isso não leem nem o livro da capa preta. Foi assim que, depois de várias obras, o gajo diabólico lança Caim. Novamente a Igreja Católica atacou o livro, o que foi ótimo do ponto de vista do marketing que não precisou ser feito. Pilar não deixou passar, Saramago é um ser excepcional, a sua dimensão é distinta e o seu perfil não é o habitual, por isso há tanta gente que não o entende. Não houve polémica nenhuma, umas quantas pessoas imorais que não leram o livro é que se pronunciaram, quando deviam estar de pé, aprendendo a escrever. Um romance nunca pode ser polémico. O meu marido recebeu foi os parabéns de todos, e isso vê-se com os livros que já vendeu. O ruído e a fúria não entraram em minha casa.
Assim, Saramago segue sendo um dos escritores mais atuantes no cenário político atual contra os donos do mundo. É por isso que ele acaba senso mais conhecido por suas posições em entrevistas, ao menos no Brasil, que por suas obras de literatura. Ontem zilhões de sítios falaram sobre sua morte, a maioria repetiu suas posições políticas conhecidas em sua autenticidade, mas demonstraram quase todos um desconhecimento da obra de Saramago. Para este bloguinho, assim como é necessário denunciar o fascismo do Estado de Israel e dos Estados Unidos, a tibieza da Organização das Nações Unidas (ONU), é preciso perceber que a obra de Saramago carrega uma potência livre de agir que vai contra toda forma de opressão, cerceamento, violentação hoje e sempre. Foi por sua obra literária que lhe foi aumentada sua potência de agir e é por ela que ele se posicionará eternamente depois da morte, que na verdade não existe, A morte vem antes da vida, morreu quem fomos, nasce quem somos, por isso é que não morremos de vez.
Se, como disse de cima de uma jangada peninsular vagante, Cada pessoa deixa no mundo ao menos um sinal, a existência desse português cosmopolita foi sempre viver e inventar na solidariedade de olhar para os outros homens, Para sabermos as coisas é assim que terá de ser, vamo-las dizendo uns aos outros, é por isso que alguns ingênuos otimistas o catalogam pessimista enquanto outros ingênuos pessimistas o catalogam otimista, sem observar nas variações de graus entre estes termos quanto mais nas confirmações essenciais. Que pessimista colocaria tal enunciado na boca de uma personagem, Os homens são anjos nascidos sem asas, é o que há de mais bonito, nascer sem asas e fazê-las crescer. Por tal os detectores de inteligência das editoras não puderam exigir dele a tal imparcialidade do narrador, A objetividade do narrador é uma invenção moderna, basta ver que nem Deus Nosso Senhor a quis no seu Livro. E se é verdade que, A língua é que vai escolhendo os escritores de que precisa, serve-se deles para que exprimam uma parte pequena do que é, a língua escolheu bem, Saramago é uma multiplicidade que pegou uma flecha literária-política lançada por outros pessoas, E as pessoas nem sonham que quem acaba uma coisa nunca é aquele que a começou, mesmo que ambos tenham um nome igual, que isso só é que se mantém constante, nada mais. No caso de José Saramago, é através de seu corpo-escritor que sabemos o que aconteceu com Fernando Pessoa após a sua morte e o que aconteceu após à morte deste com Ricardo Reis. Através de que corpo-escritor saber-se-á o que se passou com Saramago após o encontro com a Morte. Talvez Saramago diga, É o que a morte tem de bom, com ela acaba-se tudo, mas ele mesmo deixa a pista para as dúvidas necessárias, Se não há vida sem mentiras, também algum engano haverá nesta morte. É que Saramago rompe com a distribuição espacial dos vivos e dos mortos, Os vivos podem esperar, os mortos não. A isso só irá compreender, nas palavras de Saramago, a absurdidade que é separar os mortos dos vivos, Se a morte havia sonhado com a esperança de alguma surpresa que a viesse distrair dos aborrecimentos da rotina, estava servida. Encontrou aquele por quem se apaixonara há pelo menos dois anos, por isso ele retornou com uma lucidez e uma posição ainda mais autêntica e sem necas de senectude, Quebra-se a monotonia da existência, parecia que tínhamos chegado ao fim da estrada e afinal era apenas uma curva a abrir para outra paisagem e novas curiosidades.
Se alguém lhe perguntasse um minuto antes de morrer, talvez ele repetisse as palavras de Joana Carda, Queria era pensar na vida, para que serve, para que servi eu nela, sim, cheguei a uma conclusão e julgo que não há outra, não sei como a vida é. E seguiria sem medo, pois na vida não deixou-se abater, É sempre boa a liberdade, mesmo quando vamos para o desconhecido. A morte o esperava no portão, que tanto faz ser aquela claraboia não publicada, Aqui estou, disse o homem, a morte sorriu, Já vieste, Por que tanto me querias, Porque tanto te quero, porque vieste vivo, aqui estão todos mortos, nunca tinha tido um amante vivo, e aí cessaram as palavras e tomou conta do espaço e tempo a suíte número seis opus mil e doze em ré maior de johann sebastian bach e finalmente se deitaram nos alvos e suaves lençóis, e ela não acordará tão cedo, embalada por histórias de um homem íntegro que soube elevar ao infinito a alegria afetiva da maravilhosa mistura entre inteligência e ternura por onde passa a Vida em toda a sua potência. No dia seguinte à morte de Saramago ninguém morreu.
Amados & Amadas Afinsophia.
Saudades…
Belíssimo.
Silêncio.
Homenagem.
Perdi um irmão há poucos meses.
Jovem, inteligente, belo..
para lembrar Galeano sobre Che,
“ele tinha o olhar dos homens que acreditam”.
O coração estancou num átimo.
Dor de sabe-lo tão morto…
Agora vem Saramago e me deixa.
Abraços.
Poema à boca fechada
Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.
Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.
Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.
Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.
Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.
José Saramago
Valeu, La Pasionaria Selênia,
Pra quem foi um homem de ação como Saramago, não importam as honrarias, mas sim o encontro ativo com outras pessoas.
Sua literatura carregada de ternura pelos excluídos e ironia contra todas as formas de violentações são concretos na medida em que ele encontra pessoas que não deixam a violência, o medo, o preconceito agir impunemente. Assim é Pilar, assim é você, Selênia, e também este bloguinho, já que você o diz. Valeu!
Abraços saramaguianos afinados!
Intervenção brilhante.
O comentário sobre vivos e mortos remete à cosmologia ameríndia segundo Viveiros de Castro:
http://www.cpflcultura.com.br/video/integra-morte-como-quase-acontecimento-eduardo-viveiros-de-castro
Se ainda não conhece, vale a leitura do último Negri/Hardt, “Commonwealth”, com muito amor.
Abraços.
Quanta bobagem escreveu Saramago! Aliás, a respeito de si mesmo, em vida, assim profetizou o pobre e desiludido poeta:
“Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos, façamos tudo para não viver inteiramente como animais”.
É isso ai: incapaz de viver inteiramente como gente, Saramago animalizou-se em seus devaneios…
Cordialmente, Milton Coradi
Coradi,
se Saramago animalizou-se, foi no sentido de devir-animal, afastando-se da linguagem humana, demasiada humana, como diria Nietzsche.
Saramago fez passar novos afetos em dizeres construtores de práticas fundamentais para a democracia, tudo que os embotados de espírito, os dogmáticos, os covardes e tiranos tentam impedir de se movimentar.
Oh!, Coradi, vai ler Saramago!
Abraços saramaguianos!