Poucos se enganam: o mundo construído pelo delírio capitalista de alguns sujeitos-sujeitados não é para criança. É um mundo em que a força da irracionalidade pelo lucro máximo coloca os adultos estúpidos como personagens e intérpretes principais. É um mundo em que a criança só é necessária quando é transformada em mercadoria através da falsa ludicidade caricaturada em “brinquedos” que a torna, como mercadorias, oral consumista compulsiva. Como impõe o ideário do lucro infinito capitalista.
Os rituais consumistas, como o natalino, servem de exemplo didático para se compreender essa máquina enferrujada, mas que ainda não perdeu sua funcionalidade molar. A funcionalidade que imobiliza todos os desejos de vida. Mas essa prisão de desejos autênticos não funcionaria eficazmente se não tivesse o amparo e o estímulo de governos cujas parcerias prontificam esse constante ajuste de suas peças indesejante. Governos que fluidificam as engrenagens que esmagam os desejos-naturais transformando-os em espectros de desejos expressados em suas mercadorias narcisadas como formas multifacetadas do capital. O universo dos objetos que brilham hipnoticamente com seu psicodelismo inebriador. Onde não há qualquer rastro de Cristo. A não ser o Cristo capitalizado. O que não é o Cristo filhos Maria. O revolucionário que fez os judeus e o Império Romano tremerem temerosos de seu Amor.
Como Manaus é um território do mundo, não poderia ser diferente. Manaus é um lugar também para adultos onde as crianças não são cuidadas como devem ser. Aliás, muitas delas são tratadas como alguns adultos entendem: com violência. Certamente, adultos parceiros de Eduardo Cunha na aprovação da redução da maioridade penal. Adultos que refletem também a falta de infância.
Dessa forma, em Manaus, existem crianças que tem outro tratamento pelos adultos. Ganham presentes, viajam para Disney, moram em condomínios, estudam em escolas particulares, tem plano de saúde, mas, em verdade, não podem ser tidas como essencialmente crianças, visto serem nada mais do que objetos onde seus pais projetam suas inseguranças de adultos muito bem capitalizados. Ou melhor, infantilizados pela força dos vícios burgueses. Adultos que quando crianças não experimentaram a dimensão superior da infância como devir criativo e distributivo, como dizem os filósofos franceses Deleuze e Guattari, encadeados com o filósofo alemão Nietzsche.
Quem habita Manaus, e não tem apenas um endereço, sabe disso, já que habitar é se tornar potência-criadora do território habitado em forma de comunalidade. Sabe que a criança, apesar das políticas para infância e adolescência criadas pelo governo federal, não é cuidada como deve, posto que criança é para ser cuidada pelos que alcançaram o grau da responsabilidade histórica do mundo. Tomar a criança como seu cuidado, é tarefa de que se responsabiliza pelo mundo. Ser seu companheiro oblativo e não captativo como forma policial-judicativa como fazem os adultos infantilizados. Assim, cuidar é ser responsável pela história que a criança está entrando para se tornar um adulto também responsável pela história. E é brincando, se satisfazendo, que a criança produz, junto com esse adulto, seus percursos que lhe tornarão um ser históricizado.
A criança de Manaus, essa que não vai para Disney (melhor para ela), que mora nos bairros abandonados pelas alcunhadas autoridades (autoridade é quem trabalha com a razão no plano do diálogo, como diz a filósofa Hannah Arendt) não tem qualquer opção de entretenimento público. Quando essa criança quer entretenimento ela mesma cria nas ruas onde habita. Algumas vezes reúne umas moedas e vai a um parquinho de diversão que se instalou no bairro. Prefeitura, estado não têm um projeto de diversão gratuita para criança. A própria escola que deveria ser um território do entretenimento infantil, não é usada.
Pois foi exatamente analisando a situação da criança em Manaus que o empresário democraticamente lúcido e engajado, Nelson Rocha criou o personagem Papai Nelson Noel. Há 13 anos Papai Nelson Noel, no dia 24 de dezembro, percorre alguns bairros abandonados de Manaus, onde milhares de crianças se encontram com seus direitos a diversão e entretenimento negados, e distribui com a fantasia de Papai Nelson Noel, sorvetes e picolés. É a festa criada e comandada por Papai Nelson Noel e as crianças, e muitas vezes com a participação de alguns adultos que cuidam dessas crianças. O carro com Papai Nelson Noel em cima, acenando, desejando boas-festas, às vezes descendo do carro para abraçar as crianças, e quem aparecer pela frente para receber um abraço natalino, compõe o fator dionisíaco de um Cristo que não se metamorfoseou na cobrança, castigo, condenação, credor, mas na festa libertária.
Entretanto, nesse natal de 2015, o Papai Nelson Noel não pôde se mostrar materializado às crianças. O seu criador passa por um momento existencial que lhe deixou impotente para fazer passar o personagem-coletivo, Papai Nelson Noel. Mas, ele mandou sua mensagem positiva às crianças.
No dia 24 de dezembro do ano de 2016, se Papai Nelson Noel permitir, ele estará atuando como Papai Nelson Noel. Palavra de Nelson Rocha.
Leitores Intempestivos