
Domingo foi dia de homenagear Cristiano Zanin Martins, Valeska Teixeira Martins e Fernando Fernandes, combativos advogados do mais repercutido e grandioso processo judicial em curso no mundo: o caso Lula x Moro. O jantar foi organizado rapidamente após eles terem sido violados em sua profissão por René Ariel Dotti, advogado que estava na memorável audiência que fechou Curitiba e cujo papel se limitou a irromper aos gritos cassando a palavra da defesa do ex-presidente sem qualquer autoridade e razão para tanto, num episódio de vergonha alheia e de bajulação ao inquisidor Sérgio Moro.
Sou mais próximo de Cristiano e de Valeska, por já tê-los encontrado algumas vezes em outros eventos – conheci Fernando apenas na homenagem e me pareceu também um grande profissional, respeitado por muita gente de peso. Sobre os advogados que me encontrei por mais vezes, além do talento na advocacia e da garra ante os desafios, ambos têm a gentileza no trato. Mais reservadamente, perguntei a cada um como estava a vida, agitada para se dizer o mínimo, no que me disseram que, de fato, estava uma loucura, mas que estavam animados.
De fato, respondi a eles, vocês devem se sentir privilegiados e honrados pelo destino, que os colocou diante de tamanho desafio. Encontraram-se com líderes mundiais, rodaram países denunciando a inquisição e desnudando para o cenário global a terra arrasada de direitos do Judiciário brasileiro. A Lava Jato diz muito ao mundo sobre como nossas instituições nacionais se comportam quando lidam com o inimigo. Desfrutaram do papo e da companhia de Zaffaroni, Ferrajoli, Juarez Cirino dos Santos e outros gigantes mundiais do processo penal para explicar o inexplicável, deixando-os boquiabertos com a profundidade do autoritarismo judicial no país.
Nas homenagens, vimos nosso próprios gigantes da advocacia criminal reverenciarem os três homenageados. Alberto Toron e Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, dois dos maiores que inspiraram e ainda inspiram inúmeras pessoas na advocacia criminal, denunciaram o autoritarismo judicial. É importante para a advocacia que pessoas desse porte se posicionem para estimular outros a tomarem a mesma atitude. Em seguida aos dois papas da advocacia criminal, uma geração mais jovem, mas já adulta e vitoriosa, representada pelo talentoso Fábio Tofic Simantob, também denunciou os perigos da Ditadura do Judiciário, cada vez mais forte e que cada vez mais sequestra os outros dois poderes da República.
As críticas dos grandes da advocacia são importantes, inegavelmente. Quando estes despertam com altivez, toda uma geração pode fazê-lo também – vale lembrar que é mais difícil se levantar contra o arbítrio quando não há respaldo nos mais velhos. Acredito, contudo, que a crítica pode se aperfeiçoar quando a advocacia criminal de ponta fizer publicamente sua autocrítica, estimulando da mesma forma que advogados mais jovens também as façam. Afinal, o autoritarismo de Moro teve a cumplicidade de uma advocacia criminal dócil que viu na delação premiada uma forma de ter vida fácil, ganhar dinheiro rápido e se livrar dos valores éticos problemas – não é o caso dos palestrantes, frise-se, que sempre foram íntegros e cheios de bravura, mas é algo que deveria ser central no diagnóstico da doença e no foco da retórica. A classe precisa se rever antes de ir pra cima dos arbitrários, deixá-los nus antes de empoderá-los a cada delação que expõe as obviedades da periferia do capital.
Em seguida, José Eduardo Cardozo, ex-ministro da Justiça e advogado de Dilma, usou de sua fala para expor e denunciar os abusos do Poder Judiciário. Curioso como ele é unanimidade entre os grandes, sempre tido como um dos mais inteligentes e de coração terno – mais tarde, percebi como sua retórica inspira essa compreensão. Questiono-me como, apesar de tanto brilhantismo, Cardozo pode ter sido responsável por uma gestão no Ministério da Justiça tão punitiva, que apostou na guerra às drogas e na criminalização de movimento sociais nos protestos contra a Copa, o que acabou gerando a prisão de Rafael Braga, verdadeira chaga que denuncia nosso sistema punitivo racista. Sua gestão no Ministério não se confunde, porém, com sua magnífica atuação como advogado no processo de impeachment.
Coube aos professores de Direito Constitucional Pedro Estevam Serrano e Celso Antônio Bandeira de Mello aprofundarem as críticas dentro do que o tempo permitia. Serrano é denso no conteúdo e educado na forma, um cavalheiro. Estudioso do estado de exceção, tem há anos identificado o Judiciário como sendo a fonte da exceção e não mais instrumento. Já o professor Bandeira de Mello ressaltou como o autoritarismo de Curitiba e do caso Lula reflete nos mais vulneráveis, que vivem um estado de exceção permanente, mas que sofrem ainda mais com o aumento de situações de arbítrio judicial. Juízes se inspiram no Moro e fazem igual com quem não tem defesa à altura. Resultado: o número de presos só aumenta, advogados são cada vez mais desrespeitados e está quase impossível soltar alguém nos tribunais.
Bandeira de Mello ressaltou a questão ética na delação premiada. A questão do X9, do dedo duro, isto é, o traidor condenado desde a infância de qualquer um. Concordo com essa questão e entendo que ela bastaria para se contestar veementemente as delações, mas a conjuntura mostrou em efeito ainda mais problemático: o desequilíbrio de forças na relação processual. Advogados servindo como auxiliares de promotores de justiça e de juízes federais, sendo reduzidos a meros carimbadores legais de documentos que implicam criminalmente pessoas estranhas à causa numa bola de neve que não tem hora para acabar. Quem apostou nessa forma tornou a defesa algo mais frágil e desconsiderada, elevando o arbítrio judicial à condição de invencível.
Tanto os criminalistas quanto os constitucionalistas foram gentis, corajosos por se posicionarem e justos ao homenagearem os três advogados. Já é um tremendo passo, que marca uma noite muito importante na advocacia brasileira, independente dos apontamentos e da autocrítica necessária. Quanto às homenagens, foram muito oportunas. Os três têm sido construídos no combate, enfrentam o que de melhor o autoritarismo tem a oferecer, em um cenário inimigo pintado por uma mídia que escancara sua repulsa política a Lula, como também sente sua dose de gozo ao ver um juiz decidindo de forma arbitrária para prejudicar a vida e a família de um desafeto. De quebra, ainda têm que lidar com o advogado René Ariel Dotti que serviu no papel de bajulador do magistrado, dizendo os maiores impropérios jurídicos para fazer a defesa do arbítrio.
Bancar Lula publicamente como sujeito de direitos não é tarefa para covardes, uma vez que ao fazer isso, automaticamente surge todo ressentimento do caldo da polarização, como Valeska narrou em sua fala ao descrever o episódio em que pais de crianças que estudavam no mesmo colégio que os filhos da advogada organizaram um protesto contra os defensores de bandido, algo repugnante pela confusão entre advogado e cliente, bem como pela exposição das crianças e dos pais. No entanto, apesar de tão duro oponente e tão pesadas consequências para a imagem, eles não se curvaram. Pelo contrário, enfrentaram no debate quem vê o direito de defesa como um enorme problema.
Por serem forjados nessa histórica disputa, sem abdicar da combatividade, estão destinados à grandeza.
Brenno Tardelli é diretor de redação no Justificando.
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