
ENTRE O BURACO NEGRO E A LINHA DE FUGA
“Que bebam, se droguem, o que quiserem, não somos policiais, nem pais, não sou eu quem deve impedi-los, mas fazer tudo para que não virem trapos… Sobretudo o caso de um jovem, não suporto um jovem que se ferra, não é suportável… Sempre fiquei dividido entre a impossibilidade de criticar alguém e o desejo absoluto, a recusa absoluta de que ele vire trapo… É verdade que o papel das pessoas, nesse momento, é de tentar salvar os garotos, o quanto se pode. E salvá-los não significa fazer com que sigam o caminho certo, mas impedi-los de virar trapo.” (Gilles Deleuze, filósofo francês)
INÚTEIS CAMPANHAS DE EFEITO MORAL
Quando há uma palestra nas escolas, um debate na televisão em torno da questão do uso de drogas, geralmente se parte de um ponto de vista arraigado de moralidade, sem a observância de inúmeras questões sobre o uso de entorpecentes, como a distinção que vimos fazendo neste trabalho sobre o uso na zona rural e nos meios ditos urbanos. Aqui, predomina hoje, sobretudo, as campanhas de efeito moral que demonstram em chocantes imagens no data-show o que acontece com o usuário de drogas, acompanhadas de análises condenatórias que podem partir tanto de uma visão científica limitada de psicólogos quanto da opção religiosa do palestrante e do seu “testemunho” de ex-viciado. “Aliada do Diabo”. Às vezes, e raramente, apenas para mostrar alguns pontos discordantes, convida-se para a mesa também algum apologista, defensor incondicional da legalização da maconha, por exemplo. Mas todas essas posições são ingênuas sobre as reais questões em torno do uso de entorpecentes, pois, na sua demonização ou apologia, partem de um ponto de vista concebido preconceituosamente e não, racional.
Assim como a compulsão alcoólica, grande parte do uso indiscriminado e exagerado de drogas se dá como tosca fuga da realidade: a namorada que o traiu, aquele patrão explorador, o tédio da classe média, está desempregado, seu time perdeu, papai é castrador, vazio existencial, o professor carrasco, falta água, falta luz, trabalho, dinheiro, etc. Falsa fuga; buraco negro na ordem do capital. “Depois que passa a lombra acaba a festa” que nunca foi festa. A dor de cabeça da ressaca faz doer fisicamente o chifre metafisicado das possessões amorosas; segunda-feira você terá que competir com a máquina-patrão; não verá nada de novo da janela de seu apê, caso tenha disposição de chegar até a janela. Mas se a fuga é tosca, os processuais de subjetivação engendrados aí não o são, passam por questões emocionais, econômicas, sociais, políticas, tudo que constitui o ordinário como sendo imutável, fazendo humanos demasiado humanos (Nietzsche) individualistas, ressentidos, impotentes. Anulação das possibilidades de aumentar a potência de agir como causa de si mesmo (Spinoza), e recorrendo a causas exteriores como último grau de tentativa de individuação. Bem situadas na ordem do dia, as campanhas de efeito moral não conseguirão, e nunca pretenderam, a benevolência, na sua acepção filosófica, de atacar o corpo mau do moralismo da família nuclear burguesa-cristã, do estado autoritário, da corrupção dos governos, da violentação capitalística, estes sim os verdeiros instauradores da miséria e degradação do corpo e da alma. Podemos até dizer que a causa de todos estes crimes imputados ao álcool e às drogas não é precisamente seu consumo (alto ou baixo). Sem ter nem pretender tais compreensões, as campanhas de efeito moral, religiosas ou pseudocientíficas, só tendem a ajudar na disseminação de preconceitos, na passividade de quem se abstém diante do terrorismo como apelo à consciência padecida ou, ao contrário, na repulsa às proibições (como o aumento do alcoolismo nos Estados Unidos a partir das sanções marcartistas), e ainda na consolidação de uma das fatias do mercado mundial mais promissoras: o narcotráfico.
PARA ALÉM DO CORPO-SOCIUS CONSTITUÍDO
Na sua forma mercadológica, teologizada ou apologizada, as drogas, legalizadas ou não, servem mais aos mecanismos de poder do que ao trabalho criador. A cocaína tornou os amigos de Freud dependentes não mais somente da farsa psicanalítica. Os Rolling Stones, atualmente, são incondicionalmente contra o uso de drogas; mas, com elas ou sem elas, sempre estiveram bem situados na ordem do mercado drogas, sexo e rock’n roll. A apologia à legalização da maconha pelo deputado Fernando Gabeira não o livrou da porralouquice alienante, por isso se juntou ao coro insano dos que arremetiam contra Lula. Todos falsos loucos, como diria Deleuze. Mera alucinação, nada a escapar para novas percepções. Tudo numa confluência com a moralidade condenatória e a ação policialesca. Geralmente estes e outros na mesma semiótica acreditam que tais substâncias os ajuda no importante trabalho criativo que realizam, quando na verdade não podem nem ajudar nem prejudicar, já que estão bem territorializados na ordem do delírio constituído. A questão estudada na Universidade Hebraica de Jerusalém pelo psicólogo cognitivo Benny Shanon — se Moisés, quando criou os dez mandamentos, estava sob os efeitos da ayhuasca, conhecida no Brasil como chá do Daime — não é pertinente. A questão que deve ser posta é por que o regime de liberação judaico-cristão constantemente resvale para um regime misto de signos autoritário/despótico.
“Tudo bem beber, se drogar, pode-se fazer tudo o que se quer, desde que isso não o impeça de trabalhar, se for um excitante é normal oferecer algo de seu corpo em sacrifício” (Gilles Deleuze)
Mas existem outras tentativas, daqueles que bebem ou usam alguma substância alucinógena para além da dor e do desespero. Verdadeiras linhas de fuga. Livre das amarras morais, Lou Reed, o compositor de Heroin, que nunca entrou nessas disputas, continua no rock como posição artística-existencial. As experiências de Aldous Huxley com a mescalina mexicana, que lhe vão abrir “as portas da percepção”, levam-no para além e aquém do estado de coisas autoritário. Quase todos os surrealistas, à exceção de Miró, fizeram uso de estímulos externos — a cocaína, o álcool, a mescalina, o ópio, o absinto — nas suas produções, que fragmentam a realidade, fazendo ver o imperceptível, o que só pode ser visto no sonho-não-psicanalisado, no delírio geopolítico, numa embriaguez cósmica. Deleuze fala de algo muito grande na vida que talvez só possa ser possível perceber/sentir/suportar através de um excitante. “Poder capaz de transportar um homem além dos limites dele próprio… Transportar o feiticeiro para o reino da realidade não comum… Temperar o coração e adquirir o equilíbrio”, diz a Erva do Diabo, experiência antroposófica de Carlos Castañeda, que torna perceptíveis outros espaços e outros tempos inimagináveis a partir de substâncias aliadas.
EXPERIÊNCIAS EDUCATIVAS FILOSOFANTES
O papel do educador-filósofo não é, franciscanamente, dar bons conselhos, muito menos, capitaliscamente, vendê-los bem pesados em científica balança. Essa não é a função nem da religião nem da ciência. Somente será possível entrar numa discussão na ordem da razão quando houver uma saída das formas de preconceito carregadas por todas as inscrições de poder sobre os corpos. É preciso perceber que há primeiramente uma diferença muito grande entre as utilizações tradicionais da coca, da maconha, do cânhamo e suas utilizações nas grandes cidades. Os motivos que levam uma velhinha a tecer um cigarrinho de maconha é muito diferente dos que levam um adolescente (des)urbano a apertar um baseado. Lá, é para uma espécie de afrouxamento da realidade objetiva numa comunhão natural com a vida; enquanto que por aqui, quase sempre é para o endurecimento ou para a dissipação da realidade objetiva massacrante. E, finalmente, além do uso medicinal, culinário, etc, destas plantas, é preciso ter-se em conta os processuais de subjetivação produzidos na cidade. A quantidade das mortes no trânsito não é culpa do álcool, e, provavelmente, não diminuiria significativamente com a proibição de bebidas alcoólicas. São frutos de uma sociedade (sem socialidade) tanática instaurada/instauradora de uma psicopatia que tenta a destruição do outro ôntica e ontologicamente, emparedando-o na miséria material e/ou emocional. Se a legalização gradual ou abrupta da maconha, por exemplo, diminuiria o uso de substâncias quimicamente alteradas, não é uma questão educativa/filosófica; independente da resposta, a questão fundamental é se aumentou ou diminuiu a potência de agir das pessoas na cidade. Como dizíamos, há drogados muito bem ajustados, viciados de poder. O papel da polícia é punir, o das igrejas e associações de bons costumes é converter; como não conseguem controlar, desesperam-se, caem no niilismo. A questão posta para os educadores/filósofos é, então, a deleuzeana de tentar evitar que pessoas, sobretudo os jovens, não virem trapos e, outra, não deixar que se ajustem à territorialidade molar, ao controle, para que, pelo aumento da potência de agir, como causa de si mesmo (Spinoza) decidam sobre seu corpo, sua cidade, sua experiência intransferível, e assim, aquém e além da lombra, a vida continue.
“O formidável impacto do terror no nível da consciência sóbria teve a qualidade especial de minar a certeza de que a realidade da vida de todo dia fosse implicitamente real, a certeza de que eu, em matéria de realidade comum, poderia fornecer-me um consenso indefinidamente. Até aquele ponto, o rumo de meu aprendizado parece ter sido um trabalho contínuo para o colapso daquela certeza.” (A Erva do Diabo, Carlos Castañeda)
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Leitores Intempestivos