Ser um animal falante é o que faz o homem produzir para si uma nova natureza naturada, posto que rompa com a natureza naturante; e isto faz com que ele se torne responsável pelos mundos humanos construídos. Daí a transformação da natureza em múltiplos mundos políticos. O homem não apenas diz sua existência em uma coletividade, mas se faz, constitutivamente, ele próprio, um dizer para o bem comum da cidade. Homem, discurso e cidade estão imbricados como uma síntese disjuntiva. Negando a capacidade intelectiva humana de traduzir o mundo através do discurso, e assim, fazendo com que o mundo seja humanizado em uma práxis transformadora dos códigos constituídos, o homem nega sua própria existência liberada do corpus normalizado e normalizante de uma cidade de sujeitos mudos, estes que são a doença da cidade. Jesus, filho de Maria e José (ambos camponeses), não foi uma doença da cidade. Pelo contrário, fez com que a fala se agitasse como processual de inovação de um mundo com valores decadente. Assim, fez da sua existência a afirmação da mortalidade humana, percebendo a necessária importância de suas ações políticas na antecipação de sua própria impossibilidade (a morte). Acreditamos que é justamente nisso em que Jesus praticou o êxodo dos lugares de poder de sua época e coroou a afirmação da Vida contra a cultura tanática de um cristianismo doente. Jesus desertou os lugares de poder, produziu a linha de fuga, necessária, desvinculando a Vida dos buracos negros constituídos pela perversidade da lógica castradora da lei e da tradição do capital. É deste modo que percebemos Jesus como subversivo, isto é, como singularidade que não se deixou ser tomado e absorvido pela relação de dominação, onde sempre deve haver o subordinador e o subordinado. Jesus, pelo dizer, fez a si mesmo antes de falar junto da multidão. Jesus, negador da potestas (poder). Jesus, afirmador da potentia (potência). O discurso de Jesus foi e é um esforço de elucidar o discurso responsável por dissociar a violência da lei, a fé da exploração, o espírito da superstição, a Vida da morte. Tudo isto efetivando o corolário entre a Vida e o Amor Político.
Desertar os lugares de Poder
A Vida é produção. A produção não está reduzida ao ciclo de reprodução da economia política capitalística. Nesta impera a reprodução dos valores do mercado autônomo aos quais está subordinada a vida. Neste sentido, a vida deve obedecer à lógica da propriedade privada para que a liberdade, a igualdade e a fraternidade possam surgir como verdades inquestionáveis. Não é à toa que é após a revolução burguesa francesa onde o Estado de Direito vai se constituir. O Estado se funda na violência do direito a propriedade e faz da economia a base de sua estrutura regulamentar, tendo na ordem jurídica a normatividade necessária para a exploração. Deste modo, a vida em sociedade deve obedecer às leis da economia, da troca de mercadorias, capitalista, fazendo da equivalência a medida das relações de produção e das relações sócio-políticas. É necessário separar o social do político para que a economia possa exercer sua organização, pois:
“A esfera da circulação, ou seja, da troca de mercadorias, em cujos limites realiza-se a compra e a venda da força de trabalho, era um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ali reinavam apenas a Liberdade, a Igualdade, a Propriedade e Bentham. Liberdade!- pois o comprador e o vendedor de uma mercadoria, como força de trabalho, por exemplo, são determinados apenas por suas livres vontades. Firmam o seu contrato como pessoas livres, juridicamente iguais. O contrato é o resultado final, através do qual suas vontades assumem uma expressão jurídica comum. Igualdade! – pois entram em relação recíproca somente como possuidores de mercadoria e trocam equivalente por equivalente. Propriedade!- pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham- pois cada um cuida apenas de si mesmo. O único poder que os reúne e põe em relação é o próprio proveito, da vantagem pessoal, dos seus interesses privados. Exatamente porque, deste modo, cada um cuida de si e ninguém do outro, todos realizam – sob os auspícios de uma harmonia preestabelecida das coisas ou de uma providência sagaz ao extremo – tão somente a obra da vantagem recíproca, do proveito comum e do interesse geral” (Karl Marx).
Isto tudo enraizado na violência da acumulação como única forma de organização da cidade. Esta produção própria do capital é reproduzida e ecoada para os mais distantes níveis da sociedade e pretende ser o invólucro da vida. Esta produção dobra-se no real (Antonio Negri). E o Estado não se contenta em ser o único lugar desta violência, como muitos já asseveraram. O Estado não é foco de poder por excelência, o centro de toda emanação e dispersão da violência estatal e de seus aparelhos ideológicos. Em sua completa falta de natureza e essência, “O Estado não é um ponto que toma para si a responsabilidade dos outros, mas uma caixa de ressonância para todos os pontos” (Deleuze e Guattari).
E isto não significa dizer que o poder vá de um ponto a outro, de uma instituição prescritiva a outra, de um poder discricionário a outro. Há agenciamentos entre os múltiplos pontos que, constitutivamente, vão formando os lugares de poder e sua dinâmica. Há o eco, a reprodução, a caixa de ressonância que se dá como “vaso fechado”. Mas também não há apenas distribuição de poder pelos diversos lugares por onde o poder irá realizar seus exercícios, mais do que a disciplina dos corpos para que estes sejam dóceis, numerados, classificados e divididos para a produção de mais-valia, há um poder sobre a vida, esta produção pretende gerenciar a própria vida em sua dinâmica. Daí quando se falar de Estado, e principalmente de violência do estado, a necessidade de não reduzirmos as análises ao Estado como único foco de poder; e que ao derrotar o Estado poderíamos, enfim, constituir uma nova realidade. O maior perigo no Estado está na reprodução do seu discurso. Ou seja: fazer com que as singularidades sejam destruídas e que os indivíduos não se realizem no acontecimento, mas como produtos de um discurso carregado de pressuposto. Deste modo, seremos apenas sujeitos sujeitados, efeito da imagem do pensamento do Estado.
Mas, contudo, a Vida continua a ser produção. Mas agora a Vida já não é produzida no ciclo da produção capitalística, mas torna-se o processo pelo qual uma nova economia política é engendrada. A própria Vida torna-se a condição necessária da produção. Tudo emerge da atividade social que não é dissociada da política e não se reduz ao domínio do econômico (relações de troca fundamentada no direito a propriedade privada). E para que a Vida seja o devir de uma produção humana, “a chave essencial para transformar o próprio em comum” (Antonio Negri), há a exigência de desertarmos os lugares de poder. Mais do que isso: é necessário que possamos recusar e resistir toda a reprodução e eco do discurso do poder do capital difundido, para que não tenhamos o mesmo fim de Narciso e Eco. Desertar os lugares de poder para efetuarmos o êxodo para a Vida.
Jesus efetivou este êxodo. Fez pulsar a Vida como devir da humanidade. Jesus não foi apenas contra o domínio perverso político, econômico, social e espiritual de sua época. Ele não apenas sabotou a estrutura e ordem estabelecida. Fez muito mais. Ele teve uma atitude diagonal, efetivou um declive nos códigos religioso-jurídicos e no sistema dominante do Império Romano. Jesus recusou e resistiu a reprodução do discurso constituído e se fez turbulência. O que pode ser produzido em uma ordem auto-referente? O que pode ser produzido em um campo homogêneo? Nada. Nestes lugares tudo deriva para o estável, para o equilíbrio pré-estabelecido. O iniciar é já chagar ao fim que é o equilibrado. Todos os caminhos levam ao mesmo. E todos os caminhos que se originam do mesmo são reproduções. É necessário esvaziar os lugares de poder. É preciso vencer os obstáculos. É preciso ter a potência do rio que nunca é o mesmo e como fluído vai criando seu próprio leito na desmedida em que vai compondo com o terreno, destruindo as barreiras. Quando o vazio surge da destruição da ordem pré-estabelecido os caminhos tornam-se relativos, multiplicidades, moleculares. E não é necessária a força maior, molar, para que o vazio venha a ser a condição da multiplicidade e da criação de um novo modo de existir. Estamos no terreno do menor. O menor declive, o menor desvio, a menor descida, o menor discurso, mas o menor que inaugura uma existência completamente apartada dos códigos constituídos:
“De modo que se pode dizer, à escolha, que a queda atômica é dotada de declive total ou de declive nulo. É um fluxo como tal, homogêneo, desfrutando de uma força única. De um certo modo, é o equilíbrio, mas seria antes um pré-equilíbrio. Então, a declinação define um declive. É o declive desencadeado por um desvio do equilíbrio, por uma diferença em relação a esse pré-equilíbrio que é homogêneo. Ora, justamente, o clinâmen é definido por Lucrécio, e duas vezes, por um mínimo. É o menor declive possível abrindo os caminhos para a existência. (…) Logo, o clinâmen é o menor desvio e o declive ótimo” (Michel Serres).
O (dis)curso de Jesus é diferença, não identidade. O dizer de Jesus é o menor porque vai contra os obstáculos posto por sua época e codificado em atos reacionários. Jesus nega reproduzir o discurso que gera a doença da cidade e começa a fazer do discurso a arma que engendrou quando criou a linha de fuga dos buracos negros. E não basta este discurso ficar com Jesus, ele deve ser partilhado, ele deve trabalhar para o bem comum, para a riqueza de todos na cidade. A cidade tem que ser o lugar do discurso, pois é dela que o discurso sai. Jesus vive primeiro para depois discursar, sente o mundo para poder ser o que diz. Bem comum, perseverar a existência como produção nova da Vida, da Vida como condição da produção do novo. Eis a importância política de desertar os lugares de poder e seguir o fluxo do novo.
Da Cidade surge a lei: não há morte
Pensar a morte. Ter a experiência da morte – a saber, são disposições humanas que estão intimamente relacionadas à linguagem, ao falar e ao dizer. A morte como antecipação da impossibilidade própria a nós mortais (Heidegger). Nesta antecipação podemos nos afastar da morte e fazer de sua negatividade uma paixão positiva. Para não morrer é preciso estar disposto para a Vida. Talvez o lugar por excelência (arete) para pensar o pensar e a negação da morte seja a cidade e suas leis.
Primeiro, o que é pensar? Deleuze, a partir da conferência “O que quer dizer pensar?” de Heidegger diz: “Lembremo-nos dos textos profundos de Heidegger, mostrando que, enquanto o pensamento permanece no pressuposto de sua boa natureza e de sua boa vontade, sob a forma de um senso comum, de uma ratio, de uma cogitatio natura universalis, ele nada pensa, prisioneiro da opinião, imobilizado numa possibilidade abstrata…: ‘o homem sabe pensar, na medida em que tem a possibilidade disto, mas este possível não nos garante ainda que sejamos capazes disto’; o pensamento só pensa coagido e forçado, em presença daquilo que ‘dá a pensar’, daquilo que existe para ser pensado – e o que existe para ser pensado é do mesmo modo o impensável ou não pensado, isto é, o fato perpétuo que ‘nós não pensamos ainda”.
Pensar, portanto, seria pensar o impensado, o novo, tudo que está “fora” dos pressupostos. Pensar não é representação. Seria uma disposição para o impensado, para o novo. Para nós, pensar seria não reproduzir a imagem do pensamento do Estado, isto é, não reproduzir as definições de liberdade, igualdade e solidariedade, segundo os pressupostos das relações econômicas da produção capitalística. Percebe-se, nesta reprodução, na organização jurídica das relações de troca, a lei como coerção, a justiça como castigo, uma imposição que, como nos diz Antifonte, gera uma legalidade capaz de coagir nossos sentidos, prescrevendo aos olhos “o que devem ver e o que não devem ver” (Barbara Cassin). Pensar a lei nesta produção significa agir, comportar-se e viver de acordo com os pressupostos impostos, conhecidos como legalidade.
É a cidade que é o lugar da lei. E quando a cidade é governada por leis motivadas pelo danoso, pelo castigo e pela vontade privada de satisfazer a admoestação como exemplo de conduta, a cidade perde sua potência de compartilhamento do pensar como novidade e transgressão da ordem natural. A lei é produção humana coletiva, desvinculada da produção econômica (por exemplo, a lei de mercado) a lei é um consenso que se dá pela ação do discurso, da persuasão pertencente a todos, onde todos possuem a técnica justaposta à razão e decidem juntos pelo bem comum da cidade. Lei: transgressão da ordem natural para a produção da cidade através da cooperação de todos aos olhos de todos.
Jesus via na lei não a coerção, mas a disposição de se compreender a necessidade do bem comum a todos na cidade. A lei, portanto estava para a Vida, não para a reprodução da violência do imperialismo romano e dos códigos religioso-jurídicos de sua época. Tanto que foi um subversivo, não se fez um subordinado, mas criou um novo modo de ser, posto que criou um novo pensar sobre a Vida. Daí Jesus ser Vida e ninguém ir ao Bem se não através dele, digo, de seu discurso. Podemos dizer, destarte: Jesus estava para além do bem e do mal, foi uma pessoa rara, um espírito livre, pois tinha a disposição para pensar o impensável no fato e, assim, problematizar o real.
Se a lei é um produto da cidade e da relação recíproca entre os discursos de seus concidadãos, a lei surgindo da cidade e não ao contrário, esta lei é uma tendência ao bem comum, e é saudável que nela possamos viver conforme, pois ela não se perseverar pela coerção, nem pelo temor, tão pouco pelo sentimento de vingança ou por um dinamismo do qual apenas transfere a interdição, a dor e o mesmo de um lugar a outro como uma metástase, mas porque, ela própria, a lei, será a ordem racional da cidade, a transgressão da ordem natural e mística a serviço da cidade e de todos que nela vivem. A lei será a fala de todos produzindo a cidade e sempre será o mote da jurisprudência filosófica.
É deste modo que dizemos: Jesus jamais morreu. Longe da morte que os cristãos são remetidos através de um Cristo paulino, acreditamos, singularmente, que o discurso de Jesus habita no mundo, é preservado por cada pensamento disposto a pensar o impensável. A estreita relação entre morte e linguagem (o domínio da linguagem sobre a morte, a forma pela qual o incondicional, o desconhecido é apreendido pela classificação gramatical) aqui ganha um novo fôlego: a linguagem não mais domina a morte, mas a liberta de seu fim inconteste, pois o homem como animal falante preserva seu ser nas inúmeras composições de seus discursos. Jesus não mais na Cruz. Jesus livre, solto como criança, como nos diz o poeta lusitano Pessoa. Jesus Vivo.
É deste modo que a paixão de Cristo aqui é transformada em uma paixão positiva de Jesus e sua caminhada até a crucificação é simplesmente o sentido da sua subversão e desertificação dos lugares de poder, da reprodução dos discursos perversos do poder. Importa Jesus Vivo. Por isso, em meio a multiplicidades de verdades, caminhamos junto a ternura, o humor e a inteligência com uma: a páscoa é linha de fuga, recusa e resistência, libertação e possibilidade de uma nova Vida, de novos códigos para a existência, sempre a pensarmos no bem comum na cidade. Jesus efetivou o êxodo para a Vida.
Leitores Intempestivos