Archive for the 'Carta Maior' Category

DIRETAS, JÁ! OU DIRETAS, NUNCA

Como ocorreu no final da ditadura, as elites fazem qualquer coisa para não entregar a transição de um ciclo de desenvolvimento que se esgotou ao voto popular

por: Saul Leblon

 

Evandro Teixeira

O noticiário contraditório que oscila entre o descarte de Temer e a sua manutenção –como um vigia bêbado do precipício ao qual o país foi reduzido pela irresponsabilidade golpista das suas elites, evidencia a saturação das ferramentas conservadoras.
 
Mas não deve iludir: a elite golpista sabe onde quer chegar, embora deixe transparecer a saturação dos meios à sua disposição.
 
Se preciso, pode até levar ao sacrifício algumas peças para afiar a guilhotina desgastada e decepar os direitos políticos de Lula; colocar Meirelles ou Gilmar no comando do Estado e concluir as reformas que revogam o escopo de direito sociais e trabalhistas da Carta de 1988.
 
Feito o trabalho sujo, a nação iria às urnas dentro de um ano e meio desprovida de lideranças reais, e viscerada de músculos e instrumentos institucionais para sair do chão.
 
Em resumo, com alguma hesitação e riscos inerentes, tenta-se ganhar tempo e espaço político para concluir a operação central do golpe: lancetar o pacto da sociedade nascido sob o impulso da extraordinária ascensão das massas populares na cena política de 1984, com a Campanha das ‘Diretas, Já!’.
 
A exemplo do que ocorreu naquele final da ditadura, a elite e os interesses dominantes topam agora quer coisa. Menos entregar a transição de um ciclo de desenvolvimento que se esgotou ao voto popular.
 
‘Diretas, nunca!’, bradam as escaladas sulforosas dos telejornais e o jogral diuturno dos jornalões.
 
Nos anos 80 o clamor por eleições limpas e diretas foi golpeado de dentro do palanque das mobilizações.
 
Enquanto as praças lotavam em comícios com mais de um milhão de pessoas, como o de abril de 1984 em São Paulo, Tancredo Neves negociava com os militares a candidatura ao Colégio Eleitoral, que garantiria uma transição a frio, como se quer agora.
 
A Constituinte de 1988 foi o repto das ruas traídas pelo avô de Aécio Neves.
 
Na assembleia soberana desaguaram, então, as demandas reprimidas e os clamores sufocados por duas décadas de ditadura militar, fraudados após as mobilizações das ‘Diretas Já’.

A Constituição Cidadã vingou em parte a derrota popular no Colégio Eleitoral.
 
Abrigou-se nela aquilo que  Ulysses Guimarães, o ‘Senhor Diretas’, um liberal sincero –apunhalado por Tancredo que lhe roubou a candidatura, aceitando o pacto conservador– batizaria de ‘a lamparina dos desgraçados’.
 
É essa lamparina de direitos dos desgraçados –bruxuleante até que o ciclo de governos do PT lhe deu o pavio de recursos para se materializar em políticas sociais– que se pretende apagar agora com o extintor das ‘reformas de mercado’.
 
Por isso as instituições estão em frangalhos e desmoralizadas.
 
Do Executivo ao Legislativo, dominado por uma escória argentária, passando por um judiciário partidarizado, longe de ser confiável como suprema instância, o dinheiro dá as cartas e os cortes.
 
O resultado desenha uma cova coletiva no perímetro social, econômico e geopolítico da oitava maior economia da terra.
 
Um em cada quatro brasileiros estão desempregados ou subocupados.
 
Em 52% dos lares há algum demitido ou dívida atrasada, diz pesquisa da Nielsen.
 
A retração de 50% nas consultas para tomada de recursos no BNDES compõe o indicador antecedente da rota depressiva de longo curso lavrada pela ganância patronal nas entranhas da economia.
 
A Lava Jato venceu seu prazo de validade como biombo para o assalto dos corruptos ao poder em nome do combate à corrupção.
 
A cada dia mais exala da República de Curitiba o cheiro podre do viés unilateral. Dependesse de Moro & seus procuradores, nem Aécio,nem Temer seriam flagrados na radiografia do que são e do complô que simbolizam.
 
É preciso mudar para manter as coisas no mesmo lugar.
 
É nesse trânsito farsesco patrocinado pelas elites que a rua emerge como o único chão firme de legalidade e poder num país acuado no presente e desprovido de futuro.
 
Retornar à legalidade original das ruas sempre foi o último recurso dos povos para virar a página de enredos anacrônicos que insistem em sobreviver como formas mórbidas.
 
É o caso hoje de uma sociedade submetida à cavalgada de um governo antinacional e antissocial e à retroescavadeira de um parlamento de despachantes de aditivos a soldo dos mercados.
 
O chão firme das ruas precisa se materializar em multidões mobilizadas e no consentimento majoritário catalisado por um programa de emergência capaz renovar a confiança na democracia para dar ao desenvolvimento a sua destinação social.
 
É nessa encruzilhada de desafios que avulta a urgência de uma fusão entre a ‘crítica das armas e as armas da crítica’, de que nos falava um especialista alemão em motores da história.
 
O desafio primal dos dias e noites tensos que viveremos pode ser resumido na construção dessas linhas de passagem.
 
Que materializem o peso das ideias na força das ruas, e o peso das ruas em ideias-força, para superar o cativeiro econômico e institucional no qual as elites querem aprisionar o Brasil.

O Fórum 21, a frente ampla dos intelectuais brasileiros, deve caminhar nessa direção. E as lideranças das frentes populares, igualmente.
 
O tempo urge.
 
As ruas precisam falar.
 
E o que disserem deve ter a pertinência capaz de repactuar a nação com um novo projeto de futuro.

COMO SABOTAR A MARCA “DONALD TRUMP”

Instituições baseadas na construção de uma marca forte passam por dificuldades quando essa promessa parece ter sido quebrada, desgastando a suas imagens.

Naomi Klein

As ações da United Airlines despencaram após a publicação de imagens de um passageiro sendo retirado à força de um voo com overbooking. A Pepsi retirou do ar um comercial que mostrava policiais e supostos ativistas do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) usando uma lata de refrigerante para fazer as pazes. A rede de TV americana Fox News sofre com a debandada de anunciantes após a revelação de vultosos pagamentos para silenciar as vítimas de assédio sexual praticado pelo apresentador Bill O’Reilly.

Uma lição que podemos tirar dessas polêmicas é a seguinte: instituições baseadas na construção de uma marca forte – o que implica o cumprimento de uma “promessa” feita aos clientes – passam por sérias dificuldades quando essa promessa parece ter sido quebrada, desgastando a imagem das empresas. Isso faz com que as marcas corporativas sejam extremamente vulneráveis à pressão da opinião pública, especialmente quando esta é intensa e organizada.

Esse fato é um velho conhecido dos gestores de marcas e consumidores ativistas, mas agora tem implicações que vão muito além da oscilação do valor de mercado da Pepsi ou da política de gestão de crise da United Airlines. Isso porque, pela primeira vez na história, o presidente dos Estados Unidos é uma autêntica supermarca comercial, e seus familiares podem ser considerados marcas derivadas.

Do ponto de vista ético, tal situação é extremamente indecorosa, pois a dinastia Trump já está se aproveitando da Presidência, seja pela publicidade gratuita para imóveis praticamente transformados em filiais da Casa Branca, ou simplesmente porque o nome da marca “Trump” é repetido à exaustão na imprensa mundial diariamente. As oportunidades que se apresentam para lobistas e o tráfico de influência são ainda mais preocupantes. Que melhor maneira de cair nas graças da família presidencial do que escolher uma de suas propriedades para sediar um evento de porte, ou pagar um preço inflacionado pelos direitos de usar o nome “Trump” em um novo lançamento imobiliário?

A imprensa já denunciou o problema várias vezes, mas Trump e seus correligionários responderam com desafiadora indiferença. Isso está acontecendo por uma razão muito simples: Trump não atua conforme as regras normais da política, segundo as quais os eleitos precisam dar satisfação aos eleitores e seguir certos preceitos estabelecidos. Ele age conforme as regras do branding – ou “gestão de marcas” – segundo o qual as empresas devem pensar apenas em sua imagem corporativa.

Mas isso tem um lado positivo: como mostram os casos recentes de Pepsi, United Airlines e Fox News, as marcas também são vulneráveis. E isso nos pode ser muito útil – basta conhecer com exatidão a promessa feita por elas aos consumidores.

Venho estudando esse fenômeno há muito tempo, desde que comecei a pesquisar sobre campanhas de pressão e boicote a marcas em meados dos anos 1990. Esse material virou o meu primeiro livro: Sem Logo: A Tirania das Marcas em um Planeta Vendido. Aprendi que, com a tática certa, qualquer marca, por mais amoral que possa parecer, pode ser consideravelmente enfraquecida.

Com isso em mente, criei um rápido guia para combater o presidente no único terreno que importa para ele: a sua marca pessoal.

O novo livro de Naomi Klein “No Is Not Enough: How to Resist Trump’s Shock Politics And Win the World We Need” será publicado em junho nos Estados Unidos.

Privatização da CEDAE põe em risco o acesso à água como direito humano

Erick DauCaso a estatal seja vendida, a maior estrutura de produção de água potável do mundo pode ir parar nas mãos da iniciativa privada.

Helena Borges – The Intercept

A FÓRMULA DO DESASTRE: pegue uma substância natural que está entrando em escassez no planeta; coloque grandes reservas dessa mesma substância no subsolo de um país que não tem histórico de bom planejamento de longo prazo; combine com a tendência a entregar a exploração de bens naturais para a iniciativa privada.

Para quem ainda não matou a charada, o país é o Brasil. E a substância não é petróleo, é água. É por isso que a privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae) deve ser uma preocupação de todos os brasileiros.

Caso a estatal seja vendida, a maior estrutura de produção de água potável do mundo pode ir parar nas mãos da iniciativa privada, bem como licenças para captação em rios por até 50 anos. Isso em um mercado no qual o maior grupo privado do país é formado majoritariamente por companhias investigadas na Operação Lava Jato.

Levando em consideração que a água já foi eleita a próxima commodity a ser disputada — investidores dizem que ela está para o século XXI assim como o petróleo esteve para o século XX —, é urgente que as autoridades reflitam sobre o quanto essa infraestrutura vale hoje e o quão valiosa ela deverá ser em 2050. Esse foi um dos motivos que levou os servidores da empresa a se organizarem em protestos contra a sua privatização.


Para resolver crise do estado do Rio de Janeiro, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles já avisou que “não existe plano B”: segundo ele, a única saída é privatizar a Cedae. A especificidade da cobrança pela empresa é por conta de seus ativos: recentemente, ela foi avaliada em R$13 bilhões.

Dito desta forma – “ativos” – quase se torna possível esquecer o que exatamente está em jogo. Consta na lista, por exemplo, a Estação de Tratamento de Água (ETA) Guandu, a maior estação do mundo, que produz 3,5 bilhões de litros por dia.

Conectada a ela está a elevatória do Lameirão, a maior elevatória subterrânea de água tratada do mundo, que bombeia 2,4 bilhões de litros por dia, também na lista de ativos. Segundo o site da empresa, ela “está prestes a quebrar seu próprio recorde”: o projeto Novo Guandu deve aumentar esse volume de água em 30%.

Por ser a gestora de toda essa infraestrutura, a Cedae é a maior usuária das águas transpostas do Rio Paraíba do Sul, este sob jurisdição federal, e da Bacia do Rio Guandu, sob domínio estadual.

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Servidores da Cedae durante manifestação contra a privatização da empresa, no dia 9 de fevereiro, no Rio de Janeiro.

Foto: Erick Dau

O Instituto Estadual de Meio Ambiente do Rio de Janeiro (Inea) é responsável pela liberação de captação de água nos rios controlados pelo governo do estado. Do total gerenciado pelo Inea, 77% de toda água superficial e 30% da captação subterrânea vão para a Cedae.

O uso de água dos rios que estão sob domínio federal é controlado pela Agência Nacional de Águas (Ana). A aprovação da captação chama-se outorga, e pode ser transferida de uma empresa para a outra. Segundo a agência, “havendo a privatização ou venda, o novo titular deverá solicitar transferência da outorga e apresentar, à ANA, os motivos dessa transferência”.

A outorga dura o tempo dos contratos de abastecimento firmados entre a empresa e os municípios. No caso da capital fluminense, o contrato firmado em 2007 tem prazo de 50 anos, sendo prorrogável por mais outros 50. Segundo o relatório da administração e demonstrações financeiras de 2015, “demais Contratos de Programa possuem prazos médios de vigência de 30 anos”.

(vídeo institucional, fonte: divulgação Cedae)
Enquanto autoridades e analistas econômicos discutem sobre como a empresa serviria para quitar a dívida do estado, todos parecem esquecer que quem comprar a empresa, leva para casa estes contratos como parte dos ativos.

O próprio projeto de lei da privatização foca apenas na alienação total das ações. Assustadoramente curto e simples, o PL se constitui de sete artigos, sendo um deles “Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”. Não explica como será feita a transferência nos contratos, nem mesmo se o que será feito será uma privatização ou uma concessão, o que representa uma diferença semântica bem importante.

Enquanto o ministro da Fazenda e a agência de notícias do governo usam aberta e especificamente o tempo “privatização”, a presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes) Maria Silvia Bastos Marques falou em outubro de 2016 sobre “concessões”.

Privatização, de forma geral, é entendida como a venda de uma estatal, ou seja, é irrevogável, e os novos donos têm controle total sobre o direcionamento e a gestão. Já na concessão, a transferência tem prazos definidos assim como as regras para a exploração do serviço.

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Servidores da Cedae durante manifestação contra a privatização da empresa, no dia 9 de fevereiro, no Rio de Janeiro.

Foto: Erick Dau

Em um horizonte onde, até 2050, dois terços da população mundial não terão acesso a água (lembrando que o contrato da Cedae com o município do Rio vai até 2057) e que 20% da água doce do planeta está em território brasileiro; abrir mão da maior infraestrutura de produção de água potável do mundo para sanar uma dívida pode ser uma manobra arriscada. Ter uma empresa pública de abastecimento é sinônimo de acesso democrático à água.

A Cedae cobra tarifas progressivas considerando o bairro e o volume total consumido. A conta mínima domiciliar é de aproximadamente R$3,00 e a máxima é de R$28,36. Favelas e conjuntos habitacionais com moradores de baixa renda têm o benefício de uma tarifa social.

Enquanto isso, nas cidades do estado onde o abastecimento já está nas mãos da iniciativa privada, os moradores pagam de até 70% a mais do que os clientes dos 64 municípios atendidos só pela estatal.

O maior grupo privado de saneamento básico atuante no país é o Águas do Brasil, que já demonstrou interesse pela compra da estatal fluminense. Com atuação no estado do Rio, em São Paulo, em Minas Gerais e no Amazonas, a organização foi criada pela união de quatro empresas, das quais três são envolvidas em esquemas investigados na Lava Jato: Developer S.A. do grupo Carioca Engenharia , Queiroz Galvão Saneamento e Cowan S.A.

A legislação brasileira classifica a água como “um bem de domínio público”, mas, ao mesmo tempo, “um recurso natural limitado, dotado de valor econômico”. A pesquisadora do Centro de Direito e Meio Ambiente da FGV direito Rio, Bianca Medeiros, explica que essa definição visou fomentar o racionamento da água e não tinha intenção de regular a sua comercialização.

Ela critica tentativas de privatização do sistema de abastecimento sem um debate aprofundado e aponta que isso vai contra o movimento que várias cidades vêm passando, de remunicipalização do saneamento básico, como Paris e Berlim:

“A lógica da privatização do serviço de abastecimento inverte a lógica da racionalização prevista na Lei das Águas. Então a ideia anterior, de que era para tornar a água acessível a todos, muda para ser acessível a quem conseguir pagar. Passa-se a entender a água bruta como uma mercadoria e ela passa a ser gerida sob a lógica do lucro.”

Os filhos do Dr. Mengele e a insurreição de Bruna Sena

reprodução

Nunca é demais lembrar, o Dr. Mengele morreu impune, depois de uma velhice pacífica, neste país chamado Brasil – e parece ter deixado alguns discípulos.

Pedro Tierra*

O Dr. Joseph Mengele estudou medicina – e filosofia – na Universidade de Munique. Ficou conhecido no mundo inteiro como o “Anjo da Morte”, durante os julgamentos de Nuremberg, pela eficiência com que, como coronel-médico, conduziu seu trabalho em Auschwitz. Foi responsável pela execução de 400 mil pessoas, prisioneiras do regime nazista acusadas pelo crime de serem ciganos, gays, judeus, comunistas e deficientes físicos.

Joseph Mengele era discípulo do Dr. Ernst Rudin, pesquisador da área de genética, defensor da eugenia, para quem os médicos tinham o dever de eliminar “criaturas indesejáveis” como os deformados, os homossexuais, os comunistas e os judeus. Homem prudente, fugiu do seu laboratório, em Auschwitz em janeiro de 1945, temendo que os soviéticos não tivessem sensibilidade para compreender o sentido humanitário de suas pesquisas…  

É recente o espanto da sociedade brasileira diante de atitudes e manifestações de médicos em absoluto descompasso com os paradigmas da profissão assentados no juramento que fazem ao concluir sua formação. E cultivada na tradição desde Hipócrates, em torno do valor maior submetido aos seus cuidados: a vida humana. Todos recordam a surpreendente, inexplicável e inaceitável recepção oferecida por profissionais de saúde aos médicos cubanos que desembarcaram no aeroporto Pinto Martins, em Fortaleza, em 27 de agosto de 2013. Eles, os médicos cubanos, se dispunham a trabalhar precisamente nas áreas do interior do país e na periferia das grandes metrópoles onde médicos brasileiros se recusavam a oferecer seus serviços.

Nos últimos dias, fomos agredidos pela violação do sigilo de exames médicos que davam notícia do gravíssimo estado de saúde da cidadã Marisa Letícia Lula da Silva internada no Hospital Sírio-Libanês. Uma ex-operária tecelã, que por capricho do destino e contra todas as expectativas das elites brasileiras, se tornou primeira-dama da república. Por oito anos. A Dra. Gabriela Munhoz, responsável pela violação do sigilo, foi demitida imediatamente pela direção do Hospital. Um dia depois, o médico Dr. Richam Faissal El Houssain Ellakis, foi demitido pela UNIMED, por ter publicado um post em que prescreve os passos para acelerar a morte ou – como ele próprio expressa – “abrir a pupila” de Marisa Letícia.  Você entregaria seu filho, seu marido, sua mulher, seu amigo, sua amiga aos cuidados do Dr. Richam? O que espera o Conselho Federal de Medicina para cassar o diploma desse herdeiro do Dr. Mengele?

Não é ocioso perguntar sobre os critérios éticos ministrados nas escolas de medicina do Brasil. Que escola formou os Drs. Richam e Gabriela?  Não me refiro aqui à faculdade a) ou b). Refiro-me a uma distorção que se produz na formação dos profissionais de saúde, no país, que os converteu em ministradores de pacotes tecnológicos impostos pela indústria farmacêutica e que, em nome das relações comerciais estabelecidas pelo mercado, aboliu a relação humana entre o profissional de saúde e a pessoa que o procura.

A par desse fato, há um outro de igual gravidade. Na sociedade mais desigual do mundo – e que aparentemente se orgulha disso – os médicos estão deixando de ser uma corporação. Estão se convertendo numa casta social. Desde o processo de seleção para frequentar as escolas de medicina. O mais seletivo de todos. Neste ano de 2017, foram 75,58 concorrentes lutando por uma vaga na mais importante Universidade do país.

“Quando a senzala vira médica, a Casa Grande pira” postou Bruna Sena nas redes sociais. Negra. Pobre. Estudante da Escola Pública. Filha da operadora de caixa de supermercado Dinália Sena, que a sustenta sozinha com um salário de $ 1.400,00 desde os nove anos. Bruna encarnou nesses dias sombrios uma espécie de insurreição da esperança ao ser aprovada em 1º lugar na Fuvest, para medicina.

Da conversa que manteve com jornalistas destaco duas reflexões que revelam a meu juízo, o perfil de Bruna: “Alguns se esquecem do passado, que foram anos de escravidão e sofrimento para os negros. Os programas de cotas são paliativos, mas precisam existir. Não há como concorrer de igual para igual quando não se tem oportunidades de vida iguais.”  E outra: “Claro que não sei ainda qual especialidade pretendo seguir, mas sei que quero atender pessoas de baixa renda, que precisam de ajuda, que precisam de alguém para dar a mão e de saúde de qualidade”.

Quero guarda-las para seguir convencido de que o sinal de humanidade que carregamos em nós permanece aceso no coração dessa menina. E pensar que a máquina feroz que Bruna Sena vai enfrentar ao longo de sua formação não derrotará esse ímpeto generoso que encarnou nela as transformações – ainda que tímidas – que ocorreram nos últimos anos, no Brasil, para a vida das jovens negras da periferia. Neste momento, ameaçadas pela restauração neoliberal conduzida pelo governo   

E possamos olhar friamente e comparar com a frase do Dr. Richam Ellakis sobre os últimos dias de Marisa Letícia: “Esses fdp vão embolizar ainda por cima. Tem que romper no procedimento. Daí já abre a pupila. E o capeta abraça ela.”  Uma frase que poderia ter sido proferida pelo Dr. Joseph Mengele. Que, nunca é demais lembrar, morreu impune, depois de uma velhice pacífica, neste país chamado Brasil.

*Pedro Tierra – É poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo.        

PALAVRAS DE CONFORTO A UM CORAÇÃO SEM PAZ

Ricardo Stuckert

Que minha palavra seja aquele bálsamo recolhido nos antigos paióis, onde guardamos os sonhos que nos movem na vida.

Pedro Tierra

Que minha palavra envolva teu coração.
E recolha no barro dos potes maternos,
repousados na sombra das cozinhas de Caetés,
– que na infância saciaram tua sede
e nutriram tuas esperanças –
os rios da ternura que hoje,
2 de fevereiro, pelas mãos de Iemanjá,

banham os olhos de tua gente.
   
Que minha palavra seja aquele bálsamo
recolhido nos antigos paióis,
onde guardamos os sonhos
que nos movem na vida
para reparti-los como se reparte pão e bandeiras.
A solidão que sitia
teu vasto coração de continente
e arma o assalto final,
não suspeita as cordas de água pura
atadas aos rios de força e sonhos
que te mantêm de pé,
“contra vento e maré…”
Baixa os olhos sobre estas mãos
que um dia costuraram a estrela branca
sobre campo vermelho
como quem captura a luz dos olhos da multidão
movida por tua voz de madrugada
no portão da fábrica.
E se despediu do medo e do silêncio.
E cavalgou ventos e tempestades.
E quando a Noite – um dia – o levou a ferros
aprendeu que em tempos de tirania,
a ferocidade se dobra
com a invencível fragilidade das mães,   
quando ocupam as ruas da cidade mítica,
contra a muralha dos homens de cinza.
E o acolheu no abraço do regresso
quando você, sendo o mesmo,
já era outro homem

 

      • sem o amparo da luz tutelar de Dona Lindu –

 

se convertera num homem multidão.
Aqui repousa o corpo disseminado
de uma mulher do povo que vai
cumprir a condenação da semente:
prolongar a vida, multiplicar a vida,
sob os olhos dos peões de fábrica.
Sob teus olhos.
Dentro da Casa que os acolheu
para iniciar a marcha.

Assim estendida
como uma bandeira de paz,
diz, aos teus ouvidos,
com seu silêncio definitivo:
“Agora eu sou uma estrela”.    

Daqui de longe ouço um
dobre de sinos por Mariza Letícia
velada por peões,
dentro da Casa dos Metalúrgicos, seu lugar.

Para que não se torne um hábito no país,
não permita, diante do féretro,
as flores enviadas pelos assassinos.
Nesta manhã de cinzas, quero apenas
que minha palavra envolva teu coração.

Brasília, 2 de fevereiro de 2017.

‘Não se faz oposição a um governo golpista, se combate’, defende Eugênio Aragão

EBC

O procurador federal Eugênio Aragão criticou a naturalização do golpe contra a presidenta Dilma e a aceitação do governo Michel Temer como algo legítimo.

O procurador federal Eugênio Aragão criticou, na tarde de sexta-feira (20), a naturalização do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e a aceitação do governo Michel Temer como algo legítimo. “Nós podemos ser oposição a um governo eleito legitimamente, mas não podemos ser oposição a um governo golpista. Não se faz oposição a um governo golpista, se combate. Eles não são nossos adversários, são inimigos”, disse o ex-ministro da Justiça durante o painel “Defesa da democracia e o futuro da esquerda”, realizado no Parque da Redenção dentro da programação do Fórum Social das Resistências. Aragão criticou também, no atual contexto político, as propostas de eleições diretas já e de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.

“Neste momento, pautas como Diretas Já e Constituinte são agendas que mais nos dispersam que nos unem. A agenda fundamental é o golpe que não passou de um arrastão de trombadinhas. O tema central é o desfazimento do golpe e a restituição da presidenta Dilma. Não podemos abandonar essa agenda sob pena de sermos acusados de hipócritas. Não dissemos que esse golpe foi misógino, machista e antidemocrático? Tudo isso passou? Negar o nosso discurso e trocá-lo por uma variação é algo que nos enfraquece. Uma nova eleição direta agora significaria aprofundar o golpe, tornando a reconquista da legitimidade mais distante. Se tivéssemos uma nova Constituinte agora, a direita transformaria o Brasil num Estado teocrático”, afirmou.

“Os juristas brasileiros são os maiores golpistas”
Eugênio Aragão definiu o atual momento vivido no País como a mais grave crise do republicanismo brasileiro. “Voltamos a um estágio atrasado marcado pela desestruturação das nossas instituições e pela destruição de políticas públicas. A superação desse momento vai depender da nossa capacidade de gerar coesão. Para isso, precisamos modular o nosso discurso, definir uma estratégia comum e superar dois vícios históricos da esquerda: o esquerdismo e o burocratismo”, defendeu. Para o procurador, o discurso do “Volta Dilma” não precisa ser contrastado com a inviabilidade disso acontecer. “O que é mais importante agora é a manter a coerência e a unidade. Esse discurso nos unifica. Precisamos promover um grande debate nacional, formando comitês locais, organizando seminários, fazendo conversas como esta que estamos fazendo aqui hoje”.
“O futuro da esquerda passa pela democracia”
Organizado pela Central Única dos Trabalhadores e pela Fundação Friedrich Ebert, o debate também contou com a presença do ex-senador chileno e presidente da Fundação Chile 21, Carlos Ominami, da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) e do presidente da CUT-RS, Claudir Nespolo. Ex-ministro da Economia do Chile, Carlos Ominami fez uma análise dos problemas enfrentados pela esquerda latino-americana e apontou aquele que é, na sua opinião, o principal eixo programático para a superação do quadro atual. “O futuro da esquerda passa pela democracia e o futuro da democracia passa pelo seu aprofundamento”. Para Ominami, os golpes que aconteceram em Honduras, no Paraguai e no Brasil se deram não só pela ofensiva da direita, mas também pelos erros cometidos pela esquerda. “Nós temos democracias de baixa intensidade que são muito frágeis. Fizemos mal algumas coisas. Não devemos considerar a democracia como um meio para chegar a outra coisa, mas sim como um fim”, defendeu.
O ex-senador, que participa atualmente de uma articulação para formar uma nova frente da esquerda chilena, chamou a atenção ainda para a necessidade de defender a democracia de seus novos inimigos. Entre eles, destacou o ceticismo com a política e a democracia, o populismo de direita (expresso exemplarmente, segundo ele, na vitória de Donald Trump nos Estados Unidos) e o populismo judicial. “É algo ruim e muito danoso quando juízes começam a legislar e governar ou quando querem fazer justiça com a imprensa. No caso do Brasil, o que está se buscando não é fazer justiça, mas sim impedir que Lula volte a disputar o governo com as armas da democracia”.
“Não há democracia de direita”
A deputada Maria do Rosário também defendeu a necessidade de a esquerda priorizar programaticamente a agenda da radicalização da democracia. “A direita despreza a democracia. Produzir uma democracia renovada é, portanto, uma tarefa da esquerda. Não há democracia de direita, pois esta não respeita sequer os valores e princípios clássicos dos liberalismo. Ela trabalha com uma produção contínua de crises que inviabilizam a continuidade da democracia. Nós não estamos vivendo uma crise da democracia hoje no Brasil, pois a democracia faliu no dia do impeachment da presidenta Dilma. O golpista Temer não tem nenhuma legitimidade para indicar o novo ministro do STF, após a morte de Teori Zavascki. Do mesmo modo, o Senado, cheio de investigados na Lava Jato, não tem nenhuma isenção para sabatinar o novo ministro”, afirmou.
Rosário sustentou ainda que a esquerda deve retomar o debate sobre o direito à representação e a qualidade dessa representação. Além disso, acrescentou, precisa enfrentar o tema do capital. “Não há possibilidade de democracia com o atual grau de exploração. Para ser democrática, a esquerda precisa ser anti-capitalista, humanista e feminista. Precisa assumir integralmente a agenda dos direitos humanos, que nem sempre foram um tema central para a esquerda”.
Claudir Nespolo, por sua vez, definiu a conjuntura atual como um período de resistência, de acumulação de forças para uma nova fase. “Estamos assistindo a uma revisão da Constituição de 1988, que está sendo feita sem voto, sem participação popular e sem um processo constituinte. O centro dessa revisão é o ataque à Previdência e às leis trabalhistas”. O presidente da CUT-RS anunciou que, para enfrentar essa ofensiva da direita, estão sendo construídos, em todo o país, comitês em defesa dos direitos para preparar a população para uma grande greve geral em 2017.

AINDA PODEMOS OUVIR ´GOLPE´ VINDO DO PT

EBC

AONDE AS PALAVRAS vão para morrer? Não só na metáfora gasta, na má literatura ou no verborrágico púlpito dos tribunais, mas no jogo de máscaras do discurso político. Esse é o deserto onde os signos perdem mais sentido e as palavras viram amontoados inúteis de letras.

Em “A Política e a Língua Inglesa“, célebre ensaio de 1946, George Orwell destaca a crescente perda de significado das palavras no debate político. Em tradução própria: “A palavra fascismo agora não tem significado algum, a não ser o de ‘algo não desejável’. As palavras democracia, socialismo, liberdade, patriótico, realista, justiça têm cada uma significados diferentes e contraditórios. (…) É quase universal o sentimento de que estamos elogiando um país quando o chamamos democrático. Consequentemente, defensores de todos os tipos de regimes os reivindicam ‘democráticos’ e temem que teriam que parar de usar essa palavra caso ela estivesse amarrada a um único sentido. É comum que palavras desse tipo sejam usadas de forma conscientemente desonesta. As pessoas costumam ter suas próprias definições para as palavras que usam, mas deixam o ouvinte pensar que quiseram dizer algo bastante diferente.”

Ou seja, a arma do crime que faz com que mentiras soem como verdades costuma ser um padrão moral duplo. Pensando nisso, segue um breve dicionário de platitudes com alguns exemplos recentes de palavras ou expressões que perderam o sentido nos últimos tempos.

GOLPE – A palavra ‘golpe’ está ameaçada de morte pelo seu maior propagador recente. Na boca e na pena de qualquer representante do PT, o termo vai perdendo sentido por simples incoerência. Com o golpe de 2016 consumado, o partido aceitou seguir com sua prática de coalizões com o PMDB nas eleições municipais passadas e votou junto ao núcleo golpista para a eleição da presidência da Câmara dos Deputados. Se não houver uma grande reviravolta nas reuniões internas que definirão seus candidatos para as próximas eleições na Câmara e Senado, seguirá fazendo isso em 2017 – sob orientação, inclusive, do seu pré-candidato. Ou seja, “golpe”, para o PT, corre o risco de começar a significar “auto-golpe” ou então “golpinho suave”. Não existe práxis política ou síndrome de estocolmo capaz de justificar esses apoios depois de uma rutpura institucional tão grave a de como um golpe de estado. E, como o golpe foi na democracia brasileira – e não no PT –, devemos lutar para recuperar essa palavra, com o direito inclusive de começar a chamar o próprio partido de… golpista.

FUNCIONANDO NORMALMENTE – Fruto do mesmo processo histórico, a frase “as instituições estão funcionando normalmente” foi repetida como um mantra golpista em 2016, ano de grave crise institucional. Mas talvez no Brasil, realmente o assalto à democracia seja ‘normal’. Aí seria o caso de mandar “instituições” para a vala também.

DEFENDER O PRINCÍPIO – Ontem, na sua última coletiva de imprensa, Obama cometeu a seguinte frase: “É importante que os Estados Unidos defendam o princípio básico de que países poderosos não podem ficar por aí invadindo e intimidando países menores.” Em janeiro de 2015, por ocasião da Guerra na Ucrânia, disse o mesmo. Da boca do único presidente norte-americano que passou dois mandatos inteiros em guerra contra países ‘menores’ e que, apenas no ano passado, jogou 26.171 bombas (3 por hora) neles, a frase só fará sentido se sacrificarmos a expressão gasta por um Obama prestes a entregar um aparato de espionagem e ataques remotos sem precedentes nas mãos de Donald Trump.

GARANTIA / GARANTIDO – Após a prisão do líder do MTST no cenário bárbaro de uma reintegração de posse em São Paulo, a ex-presidente Dilma Roussef apressou-se em soltar um comunicado solidarizando-se com Guilherme Boulos. Em nota intitulada “Prisão de Boulos fere democracia e criminaliza defesa dos direitos sociais” ela escreveu: “A prisão do líder do MTST, Guilherme Boulos, é inaceitável. Os movimentos sociais devem ter garantidos a liberdade e os direitos sociais, claramente expressos na nossa Constituição cidadã, especialmente, o direito à livre manifestação.” A hipocrisia seria cômica caso não fosse revoltante para quem se lembra do primeiro mandato Dilma, bastante atuante na violenta criminalização dos movimentos sociais – ao lado da grande imprensa e dos governadores do PMDB e PSDB que depois conspirariam contra ela, aliás. Entre tantos outros casos, ainda se espera nota da ex-presidente sobre o Rafael Braga. Importante dizer que não foi Dilma que inventou essa garantia ao contrário. A palavra também vem sendo massacrada por governadores como Geraldo Alckmin em frases do tipo: “A PM agiu e continuará agindo para garantir a liberdade de manifestação e o direito de ir e vir.”
Aceito contribuições para o dicionário nos comentários abaixo. O perigo é de, nos tempos que correm, perdermos todas as palavras.

Manifestantes tentaram impedir acesso à posse de Trump

Wikimedia Commons

Muitos grupos se mobilizaram neste da sexta-feira (20/01), em diversas cidades, em iniciativas que se seguirão até culminarem na Marcha das Mulheres.

La Vanguardia, da Espanha.

Donald Trump se tornou, nesta tarde, o 45º presidente dos Estados Unidos, e já começa com uma popularidade de pouco mais de 40% e uma rejeição inédita para um mandatário recém-empossado na história do país. Algo que se pode observar na avalanche de manifestações e protestos contra o magnata republicano, realizadas em Washington e muitas outras cidades em seu país e no mundo, que culminarão na Marcha das Mulheres, convocada para este sábado (21/01), na capital estadunidense, e na qual se prevê multitudinária participação, conforme repercussão do evento na imprensa e nas redes sociais, além de réplicas em diferentes cidades em todo o planeta.

Nesta sexta-feira (20/01), grupos de manifestantes tentaram impedir o acesso à cidade de Washington, com o objetivo de estragar o tom festivo dos preparativos para a posse do novo mandatário, em cerimônia que se realizou desde as primeiras horas da manhã, e que foi seguida de um desfile militar.

Entre as organizações presentes estavam grupos de jovens anarquistas, que formaram uma enorme corrente humana para bloquear as entradas ao evento. Em alguns pontos houve distúrbios e choques entre os manifestantes e a polícia. Os opositores ao novo presidente traziam bandeiras com arco-íris e cartazes dizendo “No Trump” (“Não a Trump”). Muitos deles ingressaram no perímetro onde se realizavam os eventos e foram vistos em diversos pontos da Avenida Pensilvânia ou da esplanada do National Mall.

Uma forte presença de agentes policiais do Departamento de Segurança Nacional e de outros corpos observava de perto o transcorrer pacífico das ações coordenadas pelo coletivo anarquista DisruptJ20, que reconhece não ter autorização para este tipo de manifestações.

O DisruptJ20 espera que haja detenções de seus manifestantes, que se enfrentaram na noite de ontem com simpatizantes do republicano Trump.

Apesar dos protestos, os simpatizantes do empresário tiveram acesso normal ao perímetro de segurança, onde puderam ver a assunção ao poder do novo presidente e da primeira-dama, a eslovena Melania Trump, e também assistir o seu primeiro discurso no Capitólio.

Dezenas de milhares de manifestantes marcharam em vários pontos outros pontos da cidade de Washington, até confluir numa praça o mais perto possível da Casa Branca, enquanto outras organizações tentaram, sem sucesso, concentrar opositores de Trump num espaço em frente à Avenida Pensilvânia, a poucos metros do lugar por onde o novo presidente desfilou esta tarde.

Uma porta-voz do grupo Answer Coalition (“Resposta em Coalizão”) informou que espera um grande grupo de manifestantes durante toda a jornada desta sexta, inclusive na praça do Memorial da Marinha, anexa à avenida pela qual passa o desfile, onde podem expressar seu desagrado com o novo presidente dos Estados Unidos.

Os protestos buscam deixar claro a rejeição de um grande número de estadunidenses às políticas anunciadas por Trump, que ganhou as eleições pelo voto do colégio eleitoral, embora tenha perdido em termos de votos absolutos, com cerca de três milhões de votos a menos que sua adversária, a democrata Hillary Clinton.

Protestos na véspera

As primeiras manifestações contra o novo presidente aconteceram ainda na quinta-feira (19/01), em centenas de escolas de Los Ángeles, onde estudantes, professores e pais se concentraram contra “as políticas anti-imigrantes” de Trump. Se espera que a cidade californiana, considerada “capital dos indocumentados do país”, seja palco de protestos massivos durante todo o fim de semana, com a participação de mais de 90 grupos.

Ainda na quinta-feira, durante a noite, dezenas de opositores de Trump se enfrentaram em Washington com alguns de seus partidários, no lado de fora do Clube Nacional de Imprensa, onde diferentes grupos celebravam a posse do empresário novaiorquino. A festa dos partidários de Trump foi chamada pelos próprios participantes de “DeploraBall”, um jogo de palavras em inglês que significa “baile dos deploráveis”.

Primeiros enfrentamentos em Washington

“Deploráveis” foi o desafortunado adjetivo que Hillary Clinton, candidata democrata derrotada por Trump nas últimas eleições presidenciais, utilizou num evento de sua campanha, para definir a “metade dos seguidores de Trump”. Manifestantes com insígnias contrárias a Trump e convidados do baile de gala se enfrentaram verbalmente, e a polícia terminou usando gás pimenta para dispersar o protesto.

Também houve marchas planejadas nas principais cidades da Califórnia, onde se declarou “guerra” às políticas de Trump, especialmente em matéria de imigração e saúde. Em cidades como Chicago as manifestações reuniram dezenas de milhares de pessoas. Entre elas, uma convocada pela organização Famílias Trabalhadoras Unidas. Além disso, também está prevista uma mobilização em Nova York, a partir do final da tarde e até a meia-noite, em frente à Torre Trump.

Dispositivo de segurança

Cerca de 28 mil membros de diferentes corpos de segurança formaram parte do massivo dispositivo que operou em toda a cidade de Washington e arredores. Uma fortaleza com barricadas e veículos espalhados ao longo de um extenso perímetro, para evitar ataques de “lobos solitários”, como os caminhões que atacaram em Nice (França) e Berlim, no ano passado.

Tradução: Victor Farinelli

A CRETINICE DA GLOBO E A TRAGÉDIA DO BRASIL

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A Rede Globo avultou como o monopólio midiático dominante, logo se convertendo na mais eficiente máquina de propaganda e de legitimação do regime militar.

Jeferson Miola

Foi sobretudo no período do ditador Emílio Garrastazu Médici [1969-1974] que o terror de Estado foi institucionalizado como método oficial para a repressão e para o aniquilamento da resistência à ditadura civil-militar implantada em 1º de abril 1964.

Uma potente arquitetura repressiva e de perseguição política foi montada no governo federal e nos Estados brasileiros com o engajamento financeiro de grandes grupos econômicos – entre os quais FORD, GM e ULTRAGAZ.

A Rede Globo avultou como o monopólio midiático dominante e, assim, logo se converteu na mais eficiente máquina de propaganda e de legitimação do regime – desinformando, alienando e entretendo a população, e ocultando a realidade e a face atroz da ditadura.

Em 1º de setembro de 1969, um mês antes do início do período do general Médici, a Globo lançou o Jornal Nacional [JN], programa noticioso que ainda nos dias de hoje exerce poderosa influência no debate político no Brasil, com força de organização, articulação e propagação do discurso hegemônico.

Em determinadas edições do JN daquela época, não por coincidência nos dias de cometimento de atrocidades pelo regime, o âncora do telejornal, Cid Moreira, com voz grave e solene finalizava o noticiário com uma conclamação: “brasileiros, nunca fomos tão felizes!” [sic].

Naquele que foi o ambiente mais macabro e horroroso da história do país, a Globo anunciava ao povo brasileiro uma suposta e nunca antes vivenciada felicidade! Com a infâmia, escondia o terror que dizimava a resistência democrática e, ao mesmo tempo, ocultava a censura, as cassações, perseguições, mortes, os desaparecimentos e exílios impostos pelo regime.

A Globo repete a cretinice nos dias atuais. Na edição do JN da última quinta-feira [12/01], fez uma reportagem bizarra sobre o que chama de “inflação pessoal”. Num exercício eufemístico, o JN individualizou a responsabilidade pela crise econômica e insinuou medidas que cada pessoa deveria adotar para enfrentar a própria “inflação pessoal”: se usa carro, substituir por ônibus; se a escola particular está cara, a pública é a alternativa; se o feijão pesa no orçamento, por que não deixar de comê-lo? …

Com tal enquadramento sobre a carestia e a perda de renda causada pelo desemprego brutal, a Globo teve o claro objetivo de ocultar a desastrosa política econômica do governo golpista – política que está afundando o Brasil e vai promover uma crise humanitária sem precedentes. A única diferença é que desta vez o William Bonner [o sucessor do Cid Moreira no JN] não exaltou que “nunca fomos tão felizes!”.

A Globo não foi apenas cúmplice dos ataques à democracia e aos governos progressistas, mas teve participação golpista ativa; foi co-autora e sócia-fundadora das empreitadas golpistas nos últimos 52 anos: em 1964, no golpe civil-midiático-militar; e em 2016, no golpe jurídico-midiático-parlamentar.

A Globo é a expressão fiel da índole da classe dominante brasileira: golpista, intolerante e anti-democrática, sempre a postos para derrubar governos progressistas e as políticas de distribuição de renda, igualdade social e independência nacional.

A Globo é nefasta à democracia e à construção do ideal de uma nação justa, igualitária e moderna. Nunca existirá democracia sem o controle democrático dos meios de comunicação e sem o fim do poder monopólico do noticiário e da informação em mãos de uma única família.

A Rede Globo é uma tragédia para o Brasil – a quebra do seu poder nefasto é um requisito para a democracia e para a soberania nacional.

O GOLPE PARLAMENTAR COMO ASSALTO AO BEM COMUM

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Pelo fato de estar sendo desmantelado pela atual ordem injusta, o bem comum deve agora ser reconstruído.

Leonardo Boff

Um dos efeitos mais perversos do golpe parlamentar, destituindo com razões juridicamente questionáveis pelos juristas mais conceituados de nosso país e também do exterior, foi impor um projeto económico-social de ajustes e de modificações legais que significam um assalto ao já combalido bem comum.   O golpe foi promovido pelas oligarquias endinheiradas e anti-nacionais que usaram um parlamento de fazer vergonha por sua ausência de ética e de sentido nacional, que por ele pretendem drenar para seu proveito a maior fatia da riqueza nacional. Isso foi denunciado por nomes notáveis como Luiz Alberto Moniz Bandeira, Jessé Souza, Bresser Pereira, entre outros.

Está em curso um desmonte da nação. Isto significa a implantação de um neoliberalismo ultraconservador e predatório que praticamente anula as conquistas sociais em favor de milhões de pobres e miseráveis, tirando-lhes direitos com referencia ao salário, ao regime de trabalho e das aposentadorias além de reduzir e até liquidar com projetos fundamentais como  a Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Luz para Todos, o FIES e outros institutos que permitiam o acesso aos filhos e filhas da pobreza ao estudo técnico ou superior.

Mais que tudo, começou-se a leilorar bens coletivos como partes da Petrobrás  e a colocação à venda de terrras nacionais. A privatização significa sempre uma diminuição do bem de interesse geral que passa às mãos do interesse particular. Atacam-se ao que se chama hoje de “direitos de solidariedade” que submete os interesses particulares ao interesses coletivos e comuns.

Estão sendo erodidas as duas pilastras fundamentais que historicamente construíram o bem comum: a participação dos cidadãos (cidadania ativa) e a cooperação de todos. Em seu lugar, a atual ordem imposta pelos que  perpetraram o golpe,  enfatiza as noções de rentabilidade, de flexibilização, de adaptação e de competividade. A liberdade do cidadão é substituida pela liberdade das forças do mercado, o bem comum, pelo bem particular e a cooperação, pela competitividade.

A participação e a cooperação asseguravam a base do interesse e do comum. Negados esses valores, a existência de cada um não está mais socialmente garantida nem seus direitos afiançados. Logo, cada um  se sente constrangido o garantir o seu. Assim surge um individualismo avassalador, acolitado por ondas de ódio, de homofobia, de machismo e de todo tipo de discriminações.

O propósito dos atuais gestores, já reconhecidos como incompetentes, alguns até embecilizados é: o mercado tem que ganhar e a sociedade deve perder. Ingenuamente creem ainda que é o mercado que vai regular e resolver tudo. Se assim é por que vamos construir o bem comum? Deslegitimou-se o bem-estar social e o bem comum foi enviado ao limbo.

Mas cabe denunciar: quanto mais se privatiza mais se legitima o interesse particular em detrimento do interesse geral além de enfraquecer o Estado, o gerenciador do interesse geral.  Estão nos impondo um killer capitalismo.

Quanto de perversidade social e de barbárie vão aguentar os movimentos sociais, aqueles que da pobreza estão sendo jogados para a miséria, os partidos de raiz popular e a inteligentzia brasileira com sentido de nação e de soberania de nosso  pais?

Mas esclareçamos o conceito de bem comum. No plano infra-estrutural o bem comum é o acesso justo de todos aos bens comuns básicos como à alimentação, à  saúde, à moradia, à energia, à segurança e à comunicação. No plano social é a possibilidade de levar uma vida material e humana satisfatória na dignidade e na liberdade num ambiente de convivência pacífica.

Pelo fato de estar sendo  desmantelado pela atual ordem injusta, o bem comum deve agora ser reconstruido. Para isso, importa dar hegemonia à cooperação e não à competição e articular todas as forças comprometidas com o interesse geral a  resistir, a pressionar e a ganhar as ruas.

Por outro lado, o bem comum não pode ser concebido antropocentricamente. Hoje desenvolveu-se a consciência da interdependência de todos os seres com todos e com o meio no qual vivemos. Nós enquanto humanos, somos um elo, embora singular, da comunidade de vida e responsáveis pelo bem comum também desta comunidade de vida. Não podemos vender nossas terras nem deixar de delimitar os territórios indígenas, os donos originários de nosso país nem descuidar do desmatamento desenfreado da Amazônia como está ocorrendo agora.

Nós humanos, possuimos os mesmos constituintes físico-químicos com os quais se constrói o código genético de todo o vivente. Daí se deriva um parentesco objetivo entre todos os seres vivos como o tem enfatizado o Papa Francisco em sua encíclica sobre a ecologia integral. Por isso cuidar e defender a natureza é cuidar e defender a nós mesmos, pois somos parte dela. Em razão desta compreensão o bem comum não pode ser apenas humano, mas de toda a comunidade terrenal e biótica com quem compartimos a vida e o destino.

Cooperação se reforça com mais cooperação, pois aqui reside a seiva secreta que alimenta e revigora permanentemente o bem-comum, atacado pelas forças que ocuparam o Estado e seus aparelhos no interesse de poucos contra o bem comum de todos os demais.

Leonardo Boff é articulista do JB on line e escreveu: De onde vem? o Universo, a Terra, a vida, o espírito, Mar de Ideias, Rio.

O repto das ruas ao Tratado de Versalhes das elites

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por: Saul Leblon

Resgatar o espaço da democracia social nas ruas do Brasil é a tarefa que empresta frescor e esperança a 2017.

O grau de sacrifício que o golpe decidiu impor à população brasileira é muito superior ao poder de ordenamento que as elites  detém para implementa-lo sem recorrer a um regime de força.

Só uma ampla frente de interesses ecumênicos poderá impedir que a lógica em curso se acerque do epílogo nefasto.

É sombrio o futuro da democracia no Brasil: 2017 será um ano decisivo para desenhar a nação que seremos no século XXI.

A vitória ou a derrota da resistência popular  nesse embate condicionará o destino da sociedade que seremos de agora em diante.

Arremeda-se aqui um Tratado de Versalhes revestido de medidas extremas de sacrifício e empobrecimento, qualificadas pela relatoria de Direitos Humanos da ONU ‘como sem precedente no mundo em sua duração e intensidade’.

’Essa emenda’, diz Philip Alston, relator da ONU, ‘(ademais de)  atar as mãos de todos os próximos governos por outras duas décadas, bloqueará gastos em níveis inadequados e rapidamente decrescentes na saúde, educação e segurança social, colocando toda uma geração futura em risco de receber uma proteção social muito abaixo dos níveis atuais…. Se for adotada, colocará o Brasil em uma categoria única em matéria de retrocesso social’.

Ao contrário do acordo imposto à Alemanha em 1919 pelo Tratado de Versalhes, igualmente incompatível com a capacidade de pagamento e sobrevivência da sociedade,  como anteviu John Mainard Keynes  –que abandonou a delegação inglesa nas negociações e expôs suas divergências no clássico ‘As consequências econômicas da paz’— o alvo agora não é um inimigo à mercê da vingança dos vitoriosos, após a conflagração mundial que custou dez milhões de vidas, 400 mil só na França.

O alvo da elite brasileira hoje é o próprio povo, tratado como inimigo dentro do seu próprio país.

Descarrega-se sobre a geração de hoje, a de ontem e a de amanhã, o descomunal custo de uma transição de desenvolvimento só equacionável com a repactuação justa do ônus da travessia e a democratização das oportunidades previstas na chegada.

As elites e os donos da riqueza preferiram o golpe.

A diretriz  incrustrada na PEC 55– como também na reforma da Previdência em curso, e na ‘flexibilização das leis trabalhistas’ sinalizada,  desenha um horizonte de afunilamento extremo do acesso a direitos e à renda num quadro de desigualdade secularmente asfixiante.

A ganância replica em certa medida a postura do insaciável George Clemenceau, o primeiro-ministro francês, nas negociações de paz de Versalhes na primeira guerra, entre as potencias vitoriosas (França, Inglaterra e EUA) e a Alemanha derrotada.

Sugestivamente conhecido como ‘Tigre’, o representante de Paris traduzia em exigências de pagamentos e ressarcimentos a ferocidade felina atada à jugular da presa.

A ‘paz cartaginesa’ de 1919 vale como metáfora do que se pretende agora como nova ordem social, com a PEC -55.

Às famílias assalariadas, aos pobres e deserdados reserva-se um jejum de futuro equivalente ao dispensado por Roma aos derrotados de Cartago.

Até o solo da antiga colônia foi salpicado de sal, para que o povo fenício não mais pudesse semear nem colher.

A PEC 55 salga o futuro da pobreza hoje e amanhã ao estreitar, por exemplo, ainda mais, o corredor já rígido da educação como atalho mitigador da desigualdade brasileira.

O espírito de convergência inscrito no pacto social da Carta Cidadã de 1988 foi rompido em seus fundamentos, sem consultar a sociedade.

Desobriga-se o Estado, pelos próximos vinte anos, de assegurar 18% da receita líquida da União à escola pública nacional.

Nesse período o orçamento terá apenas a reposição inflacionária.

Significa que diante da expansão demográfica, em dez anos, ou seja, em 2026, os 18% atuais representarão 14,7%; que despencarão para 9,3%  em 2036 (50% menos que o valor insuficiente disponível hoje).

Estamos falando de um garrote progressivo em um sistema em que o salário base do professorado equivale a menos da metade da média da OCDE — sendo igualmente mais baixo que o de países da América Latina como Chile, México e Colômbia.

O Brasil investe US$ 3,8 mil /ano por aluno na educação básica.

Os países da OCDE investem, em média, cerca de US$ 8,4 mil/ano per capita nos anos iniciais.

A defasagem é maior ainda nos estágios subsequentes.

Qual a surpresa com os resultados ainda desfavoráveis nos rankings internacionais de aprendizagem?

É esse sistema vulnerável, desafiado a dobrar as matrículas no ensino superior até 2024, a expandir o ensino técnico para elevar a produtividade da economia, a universalizar o acesso à educação infantil entre 4 e 5 anos e a universalizar e elevar a qualidade do atendimento escolar na faixa crítica entre 15 e 17 anos que está sendo garroteado agora para não ampliar investimentos por vinte anos.

Na saúde, o Tratado de Versalhes brasileiro prevê um corte de R$ 440 bilhões até 2036.  

Hoje o SUS já se encontra subfinanciado, respirando por aparelhos –e esse é um consenso suprapartidário.

O que se passa é algo distinto da recorrente barragem conservadora a novos avanços sociais.

O espírito de Clemenceau está no ar.

A determinação é a de esfolar até ao osso, pelo tempo mais longo possível, as famílias assalariadas, a pobreza e a velhice desamparada.

O tigre da ganância capitalista fechou as mandíbulas na jugular do Estado, da nação e de sua gente.

Para não pagar imposto.

Um estudo do PNUD, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, corrobora o bordão conservador de que o Brasil cobra quase tantos impostos quantos os países ricos.

A obsequiosa mídia oficialista omite, porém, a distinta composição dessa carga.

Ao invés de taxar a riqueza, o fisco brasileiro suga a classe média e os pobres.

Os “super-ricos” do Brasil, ou 0,05% da população,  diz o PNUD, pagam proporcionalmente menos impostos do que pessoas de renda intermediária.

Ganhos anuais superiores a R$ 4 milhões desfrutam de isenções sobre lucros e dividendos –sua principal fonte, em muitos casos. Isso garante que a republica rentista e a pátria dos acionistas pague, de fato, uma alíquota média de 7% aos fundos públicos.

O cidadão comum paga em média 12%.

O requisito para manter essa assimetria tão estável quanto a paz dos cemitérios imposta à Alemanha é a faxina social promovida pelo golpe de 31 de agosto.

No momento estratégico em que o esgotamento de um ciclo de desenvolvimento impunha a discussão do passo seguinte a ser escrutinado pela sociedade, as elites se anteciparam.

E enfiam goela abaixo da sociedade o seu projeto de paz social.

Consiste em tomar de volta, subtrair e predar tudo o que se acumulou em décadas, por sucessivas gerações que foram às ruas, às greves, às urnas e ao sacrifício da liberdade –da própria vida–  para universalização os direitos sociais básicos no Brasil.

Mira-se desde a CLT, de Getúlio –e a partir daí,  tudo o que veio depois.

Tudo o que não é mercado é populismo e corrupção, catequiza o jogral fúnebre da mídia embarcada.

Uma rendição celerada e incondicional é operada nesse ambiente por um parlamento que se ergue vergonhosamente contra o povo e como um hímen complacente, sanciona todas as violações contra o patrimônio e a soberania da nação.  

A ‘des-emancipação’ social em massa atingirá a presente geração, a anterior, idosa, e a futura, hoje na soleira do mercado e da cidadania.

Não se cogita que o que está em jogo é o destino de um dos países mais promissores dentre os que lutam pelo desenvolvimento no século XXI.

Ignora-se  a vida e a morte, assim como as convulsões inerentes ao desatino em marcha.

Cega pela ganância, a elite enxerga na sociedade apenas o entreposto onde salgar carne humana em troca da acumulação descabida e imperturbável de riquezas e privilégios.

O que se pretende é devolver ao absoluto desamparo a parcela majoritária da sociedade, para deserda-la por décadas dos meios pelos quais poderia influenciar as relações de poder e produção no capitalismo brasileiro.

O conjunto requer uma ruptura histórica para se consumar.

Não qualquer uma.

Essa que será decidida nas ruas em 2017.

De uma ferocidade equivalente à urdida no salão de espelhos do Palácio de Versalhes, onde o ‘Tigre’ exigiu a penhora do sangue e da alma de sucessivas gerações alemãs.

Uma escalada dessa natureza e intensidade implica em algum ponto da cadeia em se recorrer à fascistização dos instrumentos de Estado.

Na Alemanha isso ocorreu em 30 de janeiro de 1933, quando o partido nazista, já majoritário no parlamento, impôs seu líder, Adolf Hitler, como chanceler do enfraquecido governo Hindenburg .

O resto é bastante conhecido.

Uma das primeiras medidas de Hitler foi colocar o partido comunista na ilegalidade.

Seguiu-o, a cassação da socialdemocracia  –ambos fragilizados pela divisão intestina nascida da repressão aos espartaquistas de Rosa de Luxemburgo pelo SPD, ente 1918 e 1919.

Esse ângulo da tragédia alemã reserva outra advertência às forças progressistas brasileiras do presente.

Enquanto as esquerdas germânicas se matavam literalmente, seu destino comum era selado pela captura integral do Estado por uma simbiose perfeita entre capitalismo e nazismo, cujo êxito até hoje espanta os que identificam capitalismo à livre concorrência.

O Tratado de Versalhes levaria a sociedade alemã a uma escalada indivisa de colapsos sequenciais de natureza econômica, social e política que pavimentou a demanda por uma solução centralizadora, impositiva e identitária.

Degraus sucessivos de hiperinflação, desemprego em massa e a inexistência de alternativa coesa nas fileiras progressistas criariam uma catarse social,   induzindo a nação alemã a entregar seu  destino e o destino de seu desenvolvimento às promessas de ordem e redenção nacional acenadas pelo nazismo.

Keynes estava certo: uma paz efetiva exigiria a repactuação entre vencedores e vencidos, de modo a recriar as condições para uma coordenação estatal de investimentos, capaz de restaurar a esperança e a fraternidade em um futuro de empregos, oportunidades e democracia social.

O caminho escolhido em Versalhes, como hoje na encruzilhada do desenvolvimento brasileiro, foi outro.

O fardo das reparações impagáveis, das expropriações de infraestrutura, colônias, riquezas públicas e privadas levou ao empobrecimento generalizado, ademais do sentimento de humilhação e opressão.

O conjunto arrastaria a sociedade a um rodamoinho de radicalização e sobressaltos que se prolongaria por mais de uma década, culminando em 1931 com a ‘moratória Hoover’ que suspendeu os pagamentos.
Tarde demais.

O desemprego havia queimado todas os disjuntores de estabilidade na vida alemã.

Em 1929 o país registrava 2,8 milhões de desempregados; em 1932 esse contingente saltaria para quase seis milhões –o Partido Nacional Socialista conquistaria então 13,5 milhões de votos (37,4%), tornando-se o maior do Parlamento, com 230 cadeiras.

O crash na Bolsa de Nova Iorque (1929) seccionou o último balão de oxigênio da economia, representado por investimentos diretos de capitais norte-americanos, que paradoxalmente serviram de correia de transmissão da crise de Wall Street no mercado germânico.

A escalada de desamparo e liquefação das instituições parecia corroborar a incapacidade do Estado liberal  de devolver algum chão firme à produção e à democracia .

A humilhação, o medo e a revolta falavam alto em cada esquina.

A extrema-direita fazia campanha política nas rádios apenas lendo a lista de imposições trazida pelos negociadores de Versalhes.

Que não eram poucas.

Nem menos que devastadoras.

Na verdade, ainda hoje soam quase inacreditáveis em se tratando de um acordo para paz — assim como soam desconcertantes as imposições decretadas aqui pelo golpe.

Keynes, em sua obra sobre Versalhes, lista alguns  exemplo:

1)  sistema econômico alemão existente antes da guerra dependia de três fatores principais: I) o comércio ultramarino representado pela sua marinha mercante –suas colônias, seus investimentos estrangeiros, suas exportações e os encadeamentos de seu mercado com o exterior; II) a exploração do seu ferro e carvão, e as indústrias baseadas nesses produtos; III) seu sistema de transporte e suas tarifas.  O Tratado de Versalhes induziu à destruição sistemática desses três pilares.

2) A Alemanha cedeu aos aliados todos os navios da sua marinha mercante com mais de 1.600 toneladas brutas; metade dos navios entre 1.000 e 1.600 toneladas e um quarto das suas traineiras e outros barcos de pesca. Mais que isso: o confisco atingia todos os barcos de bandeira alemã no exterior e  todos aqueles de propriedade de  alemães, mesmo que sob outras bandeiras, assim como todos os barcos em construção. Ainda: os estaleiros alemães, quando solicitados, deveriam construir para os aliados todos os tipos de navios, num total de 200.000 toneladas/ ano,  durante cinco anos. Ou seja, a marinha mercante alemã foi varrida dos mares. Para que o país transportasse suas mercadorias, o tratado previa que pagasse pelo frete em cascos de sua antiga frota  –ao preço que os vitoriosos arbitrassem.

3) Todos os direitos, terras e títulos das possessões e colônias alemãs no ultramar foram confiscados definitivamente pelos aliados. Diferentemente da prática adotada na maioria dos acordos bélicos da história, as propriedades privadas de alemães também foram confiscadas. Seus detentores originais poderiam ou não ser autorizados a residir, ter propriedade, exercer o comércio ou uma profissão nesse território.

4) Todos os contratos de empresas alemãs para a construção ou exploração de obras públicas foram transferidos para os governos das nações vitoriosas.

5) A expropriação em massa de propriedade privada e contratos seria feita sem qualquer compensação dos indivíduos ou grupos penalizados.

6) O parque fabril alemão na Alsácia- Lorena poderia ser expropriado sem compensação, a critério do governo francês. À França, igualmente, caberia a posse plena e absoluta, sem ônus, livre de todas as dívidas de qualquer espécie, as minas de carvão situadas na bacia do Sarre.

7) O sistema ferroviário alemão, um dos pilares do dinamismo comercial germânico, foi fatiado e redistribuído entre os vencedores com o confisco de 150 mil vagões e cinco mil locomotivas.

8) Por fim, a soma de reparações em dinheiro e o pagamento de pensões aos mutilados ou familiares de mortos na guerra, dos países vitoriosos, impuseram à Alemanha transferências anuais –sujeitas a juros arbitrados unilateralmente em caso de atrasos— de uma soma quatro vezes superior à que Keynes, por exemplo, considerava factível sem a destruição do país.
9) Pelo menos 80% do saldo do comércio exterior alemão teria que ser destinado à finalidade dos pagamentos em dinheiro previstos por Versalhes.

O não cumprimento das cláusulas, punido com juros, perpetuaria a condição devedora do país, impondo-se novas penalizações, como foi o caso da ocupação do polo industrial do Ruhr pelos vitoriosos, em 1923.

A reação dos negociadores alemães em Versalhes diante da lista leonina, apropriadamente tratada por Keynes de ‘as consequências econômicas da paz’, foi de choque.

Em um primeiro comunicado, antes de ser coagida a anuir sob risco de uma ocupação militar violenta, a comissão de representantes de Berlim desabafou:

‘A democracia alemã é aniquilada justamente no momento em que o povo alemão se dispunha a erigi-Ia –e pelas mesmas pessoas que durante toda a guerra não se cansaram de afirmar que pretendiam trazer-nos a democracia… A Alemanha deixa de ser um povo e um Estado; passa a ser um simples empreendimento comercial, colocada pelos seus credores nas mãos de um administrador de massa falida, sem ter sequer a oportunidade de demonstrar o desejo de cumprir por conta própria as suas obrigações. A comissão, sediada em caráter permanente fora do território alemão, terá nesse território direitos incomparavelmente maiores do que os do Imperador; (tal política reduzirá) a  Alemanha à servidão por toda uma geração (…) Alguns a pregam em nome da justiça (…) a justiça nunca é tão simples. E se fosse, a religião ou a moral natural não autoriza as nações a fazer recair sobre os filhos dos seus inimigos as perversidades dos seus pais ou governantes’.

Depois de resumir as principais disposições do Tratado de Paz, o relatório alemão concluía:

‘ (…) com a sua produção diminuída, depois da depressão resultante da perda das colônias, da frota mercante e dos investimentos no exterior, dentro de muito pouco tempo o país não terá condições de fornecer pão e emprego a seus numerosos milhões de habitantes, impedidos de ganhar a vida. Para implementar as condições do Tratado de Paz seria necessário, logicamente, reduzir a população alemã em vários milhões. Uma catástrofe que poderia não tardar, considerando que a saúde do povo alemão foi muito prejudicada – pelo bloqueio, durante a guerra, e pelo agravamento da fome, durante o armistício’.

Trechos do desabafo germânico poderiam ser evocados na apreciação da política de terra arrasada em curso hoje no Brasil.

À  semelhança de Versalhes, ela reserva um tratamento de tropa de ocupação a direitos sociais, salários, riquezas nacionais como o pré-sal, ademais de promover a dizimação do estoque de expertise e capacidade produtiva condensado em grandes corporações empresariais  –esfaceladas pela ação grosseira ou deliberada do lubrificante curitibano, de marca Lava Jato, que auxiliou na derrubada do governo Dilma Rousseff.

A história fará esse relatório minucioso em algum momento no futuro.

Por ora, cumpre observar que o repto à virulência em curso é inexorável.

Ilude-se quem confunde a perplexidade com resignação.

Sim, há prostração intensa em alguns segmentos.

Ele decorre, em boa parte, do largo período de avanços incrementais no consumo, na renda e nos direitos, sem a contrapartida de uma armadura política, organizacional e midiática capaz de defende-los na hora do confronto que viria.

Como veio, antecedido, astutamente, de uma caçada à corrupção.

Nesse ambiente deliberadamente turvado pelo descrédito paralisante na política, a regressão anunciada reveste-se de imposições e sacrifícios insuportáveis em uma nação marmorizada por carências e urgências apenas proteláveis sob o abrigo da esperança.

A esperança é esse sentimento que agoniza dentro dos lares, nas ruas, nas escolas, nas fábricas, nas grandes metrópoles e nos campos distantes, nesta sombria despedida de 2016.

A atmosfera de um rolo compressor sob o qual nada se mantém de pé reflete, no entanto, a força de um martelete midiático que ecoa mais do que pode de fato.

A agenda antissocial e antinacional do golpe carrega o seu limite e vulnerabilidade na própria ferocidade que ordena o seu escopo, assim como as imposições do ‘Tigre’, em Versalhes.

A rota bruta virulenta e cínica de colisão com pleitos, bandeiras e projetos torna inevitável a emergência de uma nova  referência de desenvolvimento e de futuro para a nação, a economia, a sua gente e o seu sonho.

A chance de as forças progressistas retomarem a iniciativa política depende da sua capacidade de prover  escala e consistência à demanda por esse repto.

Há um requisito mais geral para isso: a determinação e o desassombro para se enxergar o esgotamento de um ciclo histórico e as balizas que podem pavimentar o próximo.

A resistência socialista e democrática alemã não conseguiu construir a unidade de forças necessária à modelagem desse repto nos anos 20.

Hitler o fez pela chave sanguinária do nazismo, nos anos 30.

No caso brasileiro, o que se requisita é a articulação de um protagonista social com força e consentimento para acionar os novos motores do desenvolvimento –identificados pelo golpe como sendo o desmanche dos direitos sociais e a entrega do patrimônio público que resta ao país.

Antes que um Hitler sinalize a rota alternativa no totalitarismo de um Estado policial, as forças democráticas e progressistas devem oferecer ao discernimento social as linhas de passagem de uma travessia crível e desassombrada de repactuação do país e do seu desenvolvimento ancorado em uma pedra angular inegociável: a construção da democracia social no ambiente saturado da desordem neoliberal em nosso tempo.

Resgatar o espaço da democracia social nas ruas do Brasil é a tarefa que empresta frescor e esperança a 2017.

Que seja um bom Ano Novo, são os desejos de Carta Maior.

“Lula e Dilma estão fortes para resistir”, afirma Cristina Kirchner

EFE

Kichner falou do valor estratégico da aproximação entre forças populares brasileiras e argentinas para repensar o significado do avanço do neoliberalismo.

Darío Pignotti

Militantes ocuparam a entrada da Casa de Portugal, no tradicional bairro da Liberdade, para receber as ex-presidentes Cristina Kirchner e Dilma Rousseff, as principais oradoras do encontro “A Luta política na América Latina hoje”. O “hoje”, ao qual o nome do evento se refere, remete provavelmente ao consenso que existe entre as forças democráticas e populares da Argentina e do Brasil de que se deve dar respostas imediatas à onda conservadora – que, no caso brasileiro avança rumo a um modelo autoritário e repressivo.
Antes de participar do ato junto com Dilma, Cristina foi recebida pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na sede do seu instituto, no centro da capital paulista.
“Me reuni com Lula e com Dilma, e os vi muito bem, muito fortes” para resistir aos embates propostos por seus inimigos, respondeu Cristina Kirchner quando Carta Maior perguntou sobre os encontros que manteve nesta sexta-feira (9/12).
Não foi fácil escutar o que diz a ex-presidenta argentina, já que ao seu redor havia muitos jovens militantes, especialmente mulheres, tentando tirar uma selfie.
Ela acabava de concluir sua exposição durante o evento, que foi organizado pela Fundação Perseu Abramo e que teve como anfitriã a “sempre presidenta Dilma”, segundo a secretária de Relações Internacionais do PT, Mônica Valente.
A líder argentina, que finalizou seu mandato em 2015 com níveis de aprovação altos, lembrou do valor estratégico da aproximação entre as forças populares brasileiras e argentinas.
“É cada vez mais importante desenvolver nossa capacidade de articulação, é necessário que nos unamos, para repensar o que significa este avanço do neoliberalismo, e ver como construímos uma nova maioria com todos os setores afetados, que serão cada vez mais”.

Cristina fez um paralelo entre a atual conjuntura do Brasil e da Argentina: “nós, na Argentina, deixamos de ser um país voltado à inclusão e ao consumo, para ser o da paralisia, da exclusão, que começa a deixar as pessoas de fora (das políticas públicas), a ver os comércios fechando (…) além do mais, também devemos saber que quando o Brasil vai mal, pela articulação que tem com o nosso aparato produtivo, nós também somos afetados”.
Consultada sobre o cenário brasileiro sete meses depois da chegada de Michel Temer ao poder, ela afirmou que “é necessário reconstruir a relação de forças capaz de enfrentar politicamente o governo (de Temer), que eu diria que é ilegal, porque não se respeitou a constituição, e também ilegítimo, pois não possui nenhum grau de representação política. Creio que o sistema de representação política é o que está em crise, e que esta se agravou com a destituição de sua presidenta legítima”.
Dilma e Cristina foram as encarregadas de abrir o seminário, no qual participam vários dirigentes políticos, cientistas e delegados de países da região, como o deputado do Mercosul Oscar Laborde, representante da Argentina.
Na exposição de Cristina se mostraram os dados de sua gestão em comparação com os números do governo de Mauricio Macri, e apresentadas desde uma perspectiva regional.
“Hoje faz exatamente um ano do fim do nosso governo. Naquele 9 de dezembro, a Argentina registrava um índice de desemprego de 5,9 %, o mais baixo das últimas décadas, e desde então já subiu a quase dois dígitos (…) o neoliberalismo precisa do desemprego de dois dígitos para que as pessoas briguem (pelos empregos disponíveis)”.
No auditório da Casa de Portugal, que estava lotado, com muita gente do lado de fora querendo entrar, a maioria era de jovens e mulheres. Um grupo de estudantes da USP recebeu Cristina com o coro “somos da gloriosa juventude peronista”, como uma forma de homenagear a militância juvenil da líder argentina, segundo explicou o estudante de sociologia Alexandre Pupo.
A ex-mandatária argentina também expôs, durante sua apresentação, uma radiografia do primeiro ano de governo de Mauricio Macri, vencedor do segundo turno nas presidenciais de 2015.
Até o momento, a gestão do direitista tem se caracterizado pela traição às suas promessas de campanha: garantiu que não desvalorizaria o peso, e o dólar não para de aumentar, prometeu manter o preço dos serviços públicos no mesmo nível, e sua primeira medida ao assumir foi aplicar um aumento, entre outros exemplos citados por Cristina.
Também disse que é “graças à blindagem midiática” que Macri conseguiu convencer o eleitorado de que era possível aplicar um modelo neoliberal sem consequências sociais. “O neoliberalismo é uma doença que se contagia por muitas vias, uma delas é a cultural, outra é a midiática”.
Ao retomar a perspectiva regional Cristina, mencionou o paradoxo sul-americano onde se retoma a lógica dos ajustes ortodoxos, precisamente quando os países ricos começam a revisá-los devido às consequências que acarretam.
Dilma Rousseff fez um gesto de aprovação quando Cristina se centrou nos malefícios do ajuste e do desemprego impulsados por Macri e por outros governos conservadores que se estabeleceram na América Latina.
Durante sua conferência, Dilma fez um repasso dos quatro governos do PT, o último deles inconcluso, com profusão de dados, como já fazia quando estava no Palácio do Planalto. Logo, avançou em sua análise política, e foi então que recebeu o aplauso e algumas ovações do púbico.
Ela alertou sobre a deterioração acelerada da administração Temer e o risco de que derive num formato cada vez mais repressivo.
“Modelos como o nazismo já não são admissíveis depois da queda do Muro de Berlim, (porém) toda a América Latina vive agora uma tentativa de retorno do neoliberalismo e o surgimento de medidas de exceção, não há dúvidas de que corremos riscos (…) o risco é o de um golpe dentro do golpe”, que afaste Temer para dar lugar a um governante ainda mais implacável.
“Como ocorreu durante a ditadura: o golpe número um foi em 1964 e o golpe número dois foi em 1968, e o segundo golpe costuma ser mais duro. Diante desta crise, não podemos aceitar uma solução indireta, a única saída aceitável é o voto democrático, as eleições diretas”. O público ovacionou a ex-presidenta quando ela concluiu sua participação, com muitas pessoas gritando “diretas já”, enquanto ela era cumprimentada por Cristina.
Lula em Heliópolis
Antes do evento na Casa de Portugal, Cristina Kirchner se encontrou com Lula, com quem conversou depois que o ex-presidente e ex-líder sindical terminou sua visita à comunidade de Heliópolis, uma das favelas mais conhecidas de São Paulo – onde ele falou sobre o ódio à divergência política alimentado pelo governo pós-democrático, após o afastamento de Dilma do cargo, no 31 de agosto, data da conclusão do processo de impeachment.
“Na minha opinião, o ódio contra o PT, contra mim, contra a Dilma não tem outra razão senão (atacar) o que foi feito neste país nestes 13 anos. Lembram quando criamos o Bolsa Família, e eles a chamavam de Bolsa Esmola?”, contou Lula em Heliópolis. Ele também disse que a saída para os problemas do Brasil é voltar a incluir os mais pobres no orçamento, e investir no crescimento. “Esse povo ainda vai voltar a sentir orgulho de ser brasileiro”, garantiu o ex-presidente.
Sete meses de Temer
Na próxima segunda-feira (12/12), Michel Temer completará sete meses na condição de “intruso” (assim o chamou Dilma) instalado no escritório do terceiro andar do Palácio do Planalto. Agora residindo no Palácio da Alvorada (desde setembro, se mudou somente depois da conclusão do processo de impeachment), o magnífico edifício modernista desenhado por Oscar Niemeyer, quando concebeu Brasília como uma cidade de grandes espaços públicos e republicanos. Utopia incompleta, já que desde a sua fundação, em 1960, a cidade conviveu por 26 anos com presidentes que chegaram ao poder sem voto, entre militares e civis que herdaram o poder de forma indireta.
Nesse prédio de colunas estilizadas como pescoços de garças, Dilma e Cristina se reuniram no dia 17 julho de 2015, após uma cúpula do Mercosul, evento no qual, pela primeira vez, se comparou os processos destituintes latino-americanos – iniciados com os casos de Honduras, em 2009, e do Paraguai, em 2012, além das tentativas que fracassaram na Bolívia e no Equador – com a Operação Condor que assassinou opositores durante as ditaduras da América do Sul de forma coordenada, entre os anos 70 e 80. Precisamente nesta semana se cumpre 40 anos da morte do presidente brasileiro João Goulart, durante seu exílio na Argentina, fato que ainda não está totalmente esclarecido, embora exista sim a certeza de que ele foi um dos alvos da Operação Condor.
Naquela calorosa sexta-feira de julho, data do seu último encontro, as então presidentas conversaram por mais de duas horas, depois das quais não realizaram a esperada coletiva de imprensa – um sinal da preocupação instalada no Planalto pela avançada destituinte, que avançou um pouco mais naquele mesmo dia, com o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) anunciando sua ruptura com o governo e abrindo o caminho para o plano golpista, em sociedade com Michel Temer.
É provável que aquela crise tenha sido um dos temas da conversa entre Dilma e Cristina. Porém, certamente não imaginavam a vertigem com a qual se desencadeariam os fatos, nem o prematuro desgaste de Cunha e Temer, os dois protagonistas daquela traição.

Tradução: Victor Farinelli

Ouça, Fidel tem algo a nos dizer

Wikipedia

Num tempo em que a utopia perdeu seu horizonte de transição, ele ergueu uma ponte inconclusa que fala aos nossos desafios e hesitações.

O percurso de Fidel Castro foi tão intenso que por muito tempo será como se continuasse por aqui.
Sua relevância vincula-se à da ilha na qual lutou como um leão para provar que certas ideias pertenciam ao mundo através da ação.
Deixar uma obra inconclusa, porém não derrotada, em disputa, foi sua maior vitória.
Num tempo em que a utopia perdeu o seu horizonte de transição, Fidel ergueu pilares de uma ponte inconclusa, mas não derrotada, que dialoga com nossos desafios e hesitações.

Cuba ainda magnetiza, a ponto de ostentar uma estatura geopolítica dezenas de vezes superior ao seu tamanho demográfico e territorial.
Ali, mesmo ameaçada por escombros, pulsa a ideia de um mundo novo e fraterno. Enquanto essa pulsação respirar em nós, Fidel será relevante.

Para começar, digamos aos céticos que não é comum que um país tenha seu nome imediatamente associado, em qualquer lugar do mundo, a sinônimo de audácia, soberania e justiça social.

Tampouco é trivial uma nação ser confundida com a legenda da bravura e da resistência heroica ao imperialismo predador e desumano por mais de meio século.
Todas essas exceções viram regra quando as letras se juntam para formar a palavra Cuba, imediatamente associada a outra, ‘Fidel’.

A pequena ilha do Caribe, na verdade um arquipélago de 4.195 restingas, ilhotas e ilhas,  soma um território de apenas 110 861 km² (pouco maior que o de Santa Catarina).

Os cubanos formam um povo de 11,2 milhões de pessoas.

Cuba, porém, está a léguas de ser uma simples ocorrência ensolarada no cardume das pequenas nações.

Por uma razão que ela transformou em referências desde 1959: ali se experimenta uma outra organização da sociedade humana, alternativa à fundada na exploração, no consumismo e no individualismo.
Esse reduto desassombrado acaba de agregar um novo epíteto ao seu trunfo: Cuba é considerada a experiência social e econômica mais próxima daquilo que se almeja como sociedade ambientalmente sustentável no século XXI.

É assim que a lendária ilha do Caribe se agiganta no concerto das nações: sendo a ponta de lança da humanidade em muitas frentes.
As quatro letras de seu nome condensam um dicionário de experiências, de esperanças, de vitórias, de tropeços, de lições e de problemas no caminho da construção de uma sociedade mais justa e convergente.

Depois do desmoronamento do mundo comunista, tornou-se a mais longeva e atribulada experiência no gênero trazida do século XX para o XXI.
Isso faz dela essa ponte de múltiplas conexões que singularizam e magnificam a sua presença em um tempo em que a utopia socialista perdeu o seu horizonte de transição.
Ao mesmo tempo em que a razão de ser dessa travessia avulta torridamente atual.

Os picos de desigualdade no capitalismo, o ocaso ambiental da humanidade, e tudo o que isso denuncia em relação às formas de viver e de produzir em nosso tempo, são uma evidência dessa teimosa pertinência.

Tome-se o caso dos EUA, para deliberadamente radiografar o cenário mais favorável da opulência produzida pelo capital.
Os perdedores do sistema compõem um contingente grande o suficiente, e desesperado a um ponto que se desconhecia, que um semi-fascista acaba de ser eleito por eles com a promessa de acudir uma aflição sem resposta nos mecanismos convencionais do mercado.

Nunca a desigualdade foi tão aguda. Jamais a probabilidade de que ela solape as bases da sociedade foi tão presente.

Não é Fidel Castro quem o diz.

A advertência foi feita em 2015 pela contida presidente do Federal Reserve (Fed), o banco central americano, Janet Yellen.

Os abismos sociais no núcleo central do capitalismo atingiram o ponto em que, segundo a discreta Yellen, os americanos deveriam se perguntar se isso é compatível com os valores dos Estados Unidos.

Em uma conferência em Boston, a presidente do Fed informou que os níveis de desigualdade nos EUA são os mais altos em um século.
“A desigualdade de renda e riqueza estão nos maiores patamares dos últimos cem anos, muito acima da média desse período e provavelmente maior que os níveis de boa parte da história americana antes disso”, afirmou.

Cuba não poderia ser tomada como um contraponto histórico a esse espiral.

A ilha jamais concluiu a transição para onde decidiu caminhar em 1960.

Tangido pela truculência imperial norte-americana, Fidel Castro proclamou, então, a natureza socialista e marxista do governo.

Um ano antes havia derrubado a ditadura de Fulgêncio Batista e iniciara uma reforma agrária que intensificou a guerra da elite local e estrangeira contra o novo regime.

Cuba nunca se propôs a ser um modelo.

Desde o início foi uma aposta.

De olhos voltados para o relógio da história.

Quem já não ouviu a velha glosa segundo a qual ‘se não existe socialismo em um só país, quanto mais em uma só ilha’?

Nem os irmãos Castro, nem Che, nem nenhum dos pioneiros que desceram de Sierra Maestra para tomar o poder no réveillon de 1959 imaginavam desmentir esse interdito estrutural.

A aposta alternativa, porém, tampouco se consumou.

Um punhado de golpes de Estado sangrentos e preventivos que tiraram a vida de milhares de pessoas e seviciaram um contingente ainda maior em toda a América Latina, fizeram dos anos 60 e 70 um cinturão profilático em torno da grande esperança cubana.

Todas as artérias que poderiam misturar seu frágil metabolismo ao corpo vigoroso de uma integração regional progressista latino-americana foram cirurgicamente seccionadas.
Lembra algo em curso no continente nesse momento?
Não é uma miragem. É uma tranca da história que nunca se recolheu de fato.
A ação conjunta das elites, da mídia e dos exércitos, das federações empresariais, dos judiciários carcomidos de ideologia conservadora, dos partidos conservadores orientados e auxiliados pela mão longa do Departamento de Estado e da CIA, foi e é implacável.
Cuba é o limite da resistência a isso. Razão pela qual parece agonizar permanentemente. Mas, ao mesmo tempo, resistir.

Durante meio século o cerco asfixiante –que teve no embargo econômico iniciado em 1962 a sua fivela mais arrochada– não cedeu.

A obsessão conservadora contra a aposta cubana, símbolo de múltiplas transgressões em relação aos valores e interesses das plutocracias regionais, ficou comprovada mais uma vez nas eleições presidenciais brasileiras de 2014 .

Em um dos debates mais virulentos da campanha, o candidato conservador Aécio Neves, que derrotado passou a operar o golpe ora no poder, trouxe a ilha para o palanque.

O tucano acusou o governo da candidata à reeleição, Dilma Rousseff, de cometer duas heresias do ponto de vista do cerco histórico à audácia caribenha.

A primeira, o financiamento de US$ 802 milhões para a construção de um porto estratégico de um milhão de containers na costa cubana de Mariel, a 200 quilômetros da Flórida.
A obra, capaz de transformar Cuba em uma intersecção relevante do comércio entre as Américas, foi denunciada por Aécio como evidência de cumplicidade com o castrismo.

Mariel se somou a uma ampla parceria na área da saúde, igualmente bombardeada. Através dela, mais de 11 mil médicos cubanos ingressaram no país, onde asseguram assistência a 50 milhões de pessoas.
O programa Mais Médicos, que levou doutores cubanos a lugares onde profissionais brasileiros não querem trabalhar, é um dos alvos do desmonte social em curso no Brasil assaltado pelo golpe de Estado de 31 de agosto que uniu a mídia à escória, ao dinheiro grosso e ao judiciário dos juízes de exceção.

O reatamento das relações diplomáticas entre EUA e Cuba –em águas incertezas, após a vitória de Trump– trincou as patas desse discurso.

A calculadora política do conservadorismo opera –e age–  ancorada na certeza ideológica de que a ‘ilha’ é apenas uma ditadura enferrujada, falida, desmoralizada e fadada à reconversão capitalista.

Jamais uma fonte de lições ao regime de mercado ou aos limites da democracia tolerada pelo capital.

Cambaleante, servia à demonização de qualquer traço de planejamento econômico que viesse afrontar a proficiente autorregulação dos mercados.

Morta, jogaria a pá de cal nos resquícios estatistas e socializantes teimosamente colados à tradição da esquerda  latino-americana.

O vaticínio sincronizou o tempo de vida do regime ao do metabolismo de Fidel Castro –cujo epílogo antecipado foi tentado inúmeras vezes pela CIA e fracassou.

Paciência. Sua morte, finalmente concretizada, é esse o diagnóstico da grande Miami instalada na alma das elites locais, fará a implosão do regime diante da qual os agentes e os mercenários tropeçaram, desde a desastrosa tentativa de invasão da baía dos Porcos, em abril de 1961.

A impressionante resistência daquilo que se imaginava mais frágil do que tem se mostrado ingressa, a partir deste 26 de novembro de 2016, num período novo, mas dificilmente de fastígio das previsões conservadoras.

Em edição de 2014, a revista New Left Review arrolou dados interessantes sobre a resiliência da frágil sociedade cubana diante da dupla adversidade imposta pelo embargo americano e o fim do apoio russo, após o esfarelamento do bloco comunista.
No momento em que toda a América Latina, o Brasil à frente, depara-se com uma encruzilhada histórica encharcada de regressão, é inescapável a atualidade da lição de luta e desassombro embutida nessa travessia.

Por maior que tenha sido a rigidez política de que se acusa o regime –e até por  conta da explosão que esse fator unilateral acarretaria–  Cuba só não virou pó graças a três fatores: planejamento público, à organização social, consciência política de amplas camadas de sua gente.

Não se trata de mitificar um caso de custo humano e social elevadíssimo.
Mas de enxergar na experiência extrema da adversidade, o alcance  mitigador da variável política, reafirmada no reatamento diplomático norte-americano.

Nesse sentido, o retrospecto da épica luta do povo de Cuba fala aos nossos dias e à realidade que constrange as forças progressistas brasileiras

Ao contrário da presunção que vê no degelo que precedeu a morte de Fidel o atalho da conversão capitalista tantas vezes frustrada, a resistência pregressa enseja outras esperanças.

O discernimento político e social acumulado pela sociedade cubana figura talvez como o mais experimentado laboratório de ponta da história para resgatar o elo perdido do debate latino-americano  sobre a transição para um modelo de desenvolvimento mais justo, regionalmente  integrado, cooperativo, democraticamente participativo e sustentável.

Se a morte de Fidel –assim legada por ele como mais uma aposta política– desmentir a derrocada desses valores, dará inestimável contribuição para fixar o chão firme capaz de desenferrujar a alavanca histórica.

Não é pouco.
E pode ser muito do ponto de vista do imaginário e da agenda regional, assediados no momento pelo coro diuturno da restauração neoliberal.

A épica sobrevivência da pequena ilha, cuja morte anunciada era um poderoso trunfo conservador, expõe heroicamente a chance de se quebrar a rigidez das circunstâncias econômicas com o peso dos interesses históricos da maioria da população (leia editorial http://cartamaior.com.br/?/Editorial/O-lodo-o-povo-e-a-rua/37327)
Isso confere algum otimismo para brindar o final de 2016 como um horizonte em aberto na história brasileira e latino-americana. Nenhuma experiência em marcha reúne mais provações e adversidades que aquelas afrontadas e vencidas por Cuba.

Alguns tópicos do retrospecto criterioso feito pela New Left Review comprovam isso

 

        1. Ao perder o apoio russo nos anos 90 e diante da ‘teimosa recusa’ em embarcar em um processo  de liberalização e privatização, a “hora final” de Fidel Castro parecia, finalmente, ter chegado;

          2.Cuba enfrentou o pior choque exógeno de qualquer um dos membros do bloco soviético, agravado pelo saldo do longo  embargo comercial norte-americano;

          3.A dramática recessão iniciada em 1990 exigiria uma década  para restaurar a renda real per capita anterior à derrocada do mundo comunista;

          4. Sugestivamente, porém, Cuba saiu-se melhor em termos de resultados sociais, comparada às economias do bloco comunistas atingidas pela mesma borrasca e ancoradas em uma base econômica até mais sólida;

          5. A taxa de mortalidade infantil em Cuba, em 1990, foi de 11 por mil, já muito melhor do que a média no leste europeu; em 2000 ficaria ainda abaixo disso, apenas 6 por mil, uma melhora mais rápida do que a verificada em muitos países da Europa Central que haviam aderido à União Europeia;

          6.Hoje, a taxa de mortalidade infantil em Cuba é de  5 por mil ;  um desempenho superior ao dos  EUA, segundo a ONU, e muito acima da média latino-americana;

          7.Não só. A expectativa de vida da população cubana aumentou de 74 para 78 anos na década de 90 –mesmo com a ligeira alta das taxas de mortalidade entre grupos vulneráveis nos anos mais difíceis;

          8.Hoje, após 55 nos de embargo e 26 de fim do apoio russo, a ilha  ostenta uma das expectativas de vida mais altas do antigo bloco soviético e de toda a América Latina;

          9.Não se subestime as terríveis privações, o custo humano,  econômico e político cumulativos. A solitária busca de uma luz em um túnel claustrofóbico, década após década, cobrou um preço alto do povo cubano;

          10. A superlativa dependência da economia em relação às exportações de açúcar para a Rússia era proporcional ao estrangulamento da estrutura produtiva decorrente do bloqueio norte-americano—um garrote estava ligado ao outro, em dupla asfixia;

          11. A conta só fechava graças a uma cotação preferencial paga pelo Kremlin: uma libra de açúcar enviada à Rússia gerava US$ 0,42 em receitas a Havana; cinco vezes a cotação mundial do produto (US$ 0,09);

          12. Até a derrocada do bloco comunista, as importações cubanas equivaliam a 40% do PIB; delas dependiam 50% do abastecimento alimentar da população e mais de 90% do petróleo consumido. Era um pouco como o superciclo de commodities que ao se esgotar desencadeou as pressões políticas e econômicas afloradas agora na América Latina e no Brasil;

          13. Mesmo com o ‘superciclo do açúcar’, o déficit comercial cubano de US $ 3 bilhões tinha que ser refinanciado generosamente pela União Soviética;

          14. Essa rede de segurança se rompeu abruptamente em janeiro de 1990 e sumiu por completo há 23 anos. As receitas propiciadas pelo açúcar cairiam em 79%: de US $ 5,4 bilhões para US $ 1,2 bilhão.  As fontes de financiamento externo que mitigavam o embargo americano evaporaram;

          15.Washington viu aí a oportunidade de bater o último prego no caixão de Havana, como se fez aqui, com o golpe. As sanções e represálias comerciais e financeiras contra países e instituições que facilitassem o acesso de Cuba ao crédito comercial foram acirradas. Deu certo: enquanto nos países do leste europeu, a transição pós-Muro (1991-1996) amparou-se em um fluxo de crédito externo da ordem de US$  112 dólares per capita/ano, em Cuba esse valor foi de US$ 26 dólares per capita/ano.

          16. O resultado foi um dramático cavalo de pau no comércio exterior: Cuba caiu de uma das taxas de importações mais altas do bloco comunista (de 40% do PIB), para uma das mais baixas (15% do PIB). Todas as tentativas de Havana de diversificar e ampliar seu leque de exportações esbarravam no embargo norte-americano.

 

Alguma surpresa pela gratidão emocionada de Fidel em relação a Chávez, que por anos a fio garantiu um fluxo de petróleo à ilha, na base do escambo, em troca de serviços médicos e sociais?

17. Ainda assim, a penúria foi de tal ordem, que o manejo puro e simples do racionamento não explica a sobrevivência do regime;

18. Quando o ferramental econômico já não respondia mais e patinava em círculos, Havana viu-se diante de duas escolhas: render-se ao lacto purga ortodoxo (como está sendo imposto ao Brasil) e rifar a ilha numa apoteótica rendição capitalista, ou apostar no seu derradeiro trunfo: a resposta coletiva liderada pelo Estado, ancorada em uma longa tradição de planejamento, mobilizações de massa, debate popular e participação direta da sociedade nas tarefas nacionais;

19. A opção escolhida instalou uma rotina de prontidão na ilha, como se a população vivesse permanentemente na antessala de uma catástrofe natural em marcha;

20. Cortes ensaiados em serviços essenciais treinavam a sociedade para a defesa civil em mobilizações coordenadas envolvendo fábricas, escritórios, residências, escolas, hospitais;

21. A segurança alimentar básica foi planejada com disciplina férrea e mantida em condições de escassez extrema;

Cuba soçobrou, gemeu, contorceu-se e acumulou recuos.

O regime recorreu às forças extremas de sua organização política e social para enfrentar restrições equivalentes às de uma guerra, que se estende por meio século, a mais longa de que se tem notícia no mundo moderno.

Mas a sociedade não se desmanchou, nem se rendeu.

Sem ilusões.

Cuba continua a ser uma construção inconclusa, que independe de suas próprias forças para se consumar.

Como tal, enseja debate, comporta retificações e, sobretudo, cobra agendas desassombradas  – e não apenas em Havana.

O reatamento das relações diplomáticas com os EUA, por exemplo, poderia ser um acelerador desse processo.

A morte de Fidel, ao contrário da rendição inapelável prevista nos prognósticos conservadores, pode levar a ilha a surpreender de novo, ao não sucumbir à fatalidade tantas vezes anunciada.
Mas se mantendo como uma ponte inconclusa, a cobrar de outros povos e nações a
reinventar a transição rumo a uma sociedade mais justa e libertária no século XXI.
O ano de 2016 está sendo muito, muito duro com a esperança progressista brasileira e latino-americana.

Mas foi muito mais dura por 55 anos com a esperança cubana.
Fidel e sua gente não desistiram.
Ao contrário: ‘Não há um átomo de arrependimento em mim’, dizia.
Obrigado, companheiro Fidel, por esse legado.
Agora é a nossa vez,
‘Hasta la victoria, siempre!

CENTRO DO RIO VIRA CAMPO DE BATALHA CONTRA PACOTE DE AUSTERIDADE

RICARDO MORAES REUTERS

 

Centenas de servidores públicos do Estado do Rio de Janeiro, entre bombeiros, policiais civis e militares, professores e profissionais da saúde, ocupam nesta segunda-feira o entorno da Assembleia Legislativa fluminense no quinto dia de protestos contra um pacote de medidas do Governo estadual para tentar sanear as deficitárias contas públicas. A maioria tem os olhos avermelhados, lacrimejam e exibem a pele irritada, consequência das bombas lançadas pela Tropa de Choque da Polícia Militar. Os policiais tentaram reprimir a manifestação quando um grupo conseguiu derrubar uma das grades que cerca a Assembleia desde o final de semana.
O pacote do governador Luiz Fernando Pezão (PMDB), que levantou a ira dos funcionários públicos que só no Executivo são mais de 470.000, contempla o aumento da alíquota previdenciária de 11% a 14% e a suspensão de gratificações, que atingem diretamente o bolso dos servidores. O ambiente é de revolta depois de mais de um ano de atraso nos salários e precariedade dos serviços. À exceção dos agentes da área de segurança pública e educação, os demais não receberam ainda os salários de outubro, que serão parcelados em até sete vezes.
Aos atrasos soma-se a falta de materiais básicos o trabalhoque se arrasta há meses. Um grupo de inspetores da Policia Civil que não quis se identificar relatou a situação nas respectivas delegacias. Eles levam de casa o próprio papel higiênico e não têm mais papel nem tinta para imprimir. Professores contaram sobre a falta de Internet e telefone por falta de pagamento em escolas técnicas, falta de limpeza e manutenção e goteiras. Policias militares apontaram a falta de verba para abastecer viaturas e um bombeiro responsável por dirigir uma ambulância relatou a falta de luvas, agulhas e material básico para trabalhar. Muitos deles não quiseram se identificar para “evitar represálias”.

O protesto começou às 10h desta segunda na frente da Assembleia Legislativa, onde os deputados devem votar o pacote proposto pelo Estado até dezembro. Por volta das 13h um grupo de manifestantes começou a tentar derrubar a cerca que protege o edifício, enquanto outros manifestantes – a maioria policiais- tentou impedi-lo. O grupo insistiu e a grade finalmente caiu sob os gritos de euforia da multidão. A polícia demorou a agir, manteve a calma e reagiu usando spray de pimenta. Depois de lançar a primeira bomba, no entanto, uma chuva delas caiu em cima dos manifestantes que correram para se dispersar. O protesto chegou a ser cercado pela Tropa de Choque sob os gritos dos colegas policiais que pediam calma aos companheiros fardados. Vídeo de Julio Trindade, publicado pelo jornal O Globo, mostra o momento em que dois integrantes da Tropa de Choque desiste da segurança e se junta aos manifestantes.

Após uma hora de confusão, os manifestantes se reagruparam e voltaram a cercar a Assembleia, enquanto os blindados do Choque se retiravam. Os servidores exigem que nenhuma das medidas seja aprovada sem prévia consulta com os trabalhadores.

Na jornada também houve momentos de hostilidade contra a imprensa. O jornalista da TV Globo, Caco Barcelos, fazia uma entrevista quando manifestantes lhe lançaram garrafas e o perseguiram aos gritos de “Globo golpista”. O jornalista teve que se esconder num canteiro de obras, até deixar a região escoltado pela Polícia Militar.

Créditos da foto: RICARDO MORAES REUTERS

ANÁLISE DO TEXTO DA MP DA REFORMA AGRARIA

reprodução

Medida provisória é marcada pela mercantilização da terra e desoneração do INCRA das obrigações junto às famílias assentadas.

Sérgio Sauer – Universidade de Brasília (UnB)

Em entrevista, sob o título “Medida Provisória marcará uma nova fase da reforma agrária no país”, veiculada no dia 18/10/2016, o presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), senhor Leonardo Góes, confirmou informações de que o governo deverá publicar, em breve, mudanças no programa de reforma agrária por meio da edição de uma Medida Provisória (MP). Essa MP, segundo a entrevista, deverá estabelecer regras e critérios para regulamentar a titulação de lotes em projetos de assentamentos e a selecionar famílias para novos assentamentos.

Apesar do presidente do INCRA ter destacado “que toda e qualquer mudança virá com o objetivo de aprimorar os instrumentos utilizados pelo Incra na execução do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA)”, a já batida retórica de agilizar e melhorar as políticas e “dar maior segurança jurídica àqueles que têm terra e produzem” alimentos, o objetivo central é “marcar uma nova fase da reforma agrária no país”.

Diante do acesso à uma versão (preliminar?) do texto da Medida Provisória (não há nenhuma segurança que o mesmo será apresentado ao Congresso como está), faço aqui algumas análises sobre esta “nova fase”, nitidamente marcada pela mercantilização da reforma agrária.

1. Conteúdo geral do texto (preliminar) da MP

Conforme versão, a MP deverá promover mudanças significativas em três leis, ou seja, na Lei nº 8.929, de 25 de fevereiro de 1993 (a assim chamada “Lei da reforma agrária”), Lei nº 13.001, de 20 de junho de 2014 (sobre créditos de famílias assentadas) e Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009, sobre o Terra Legal (regularização de posses na Amazônia Legal).

A proposta em apreço faz mudanças em mais de uma dezena de artigos da Lei de 1993, particularmente nos Art. 5º (possibilidade de pagamento de indenização de desapropriações em dinheiro) e Art. 19 (processo de seleção de famílias beneficiárias da reforma agrária). Propõe também uma série de mudanças na Lei do Terra Legal, começando por estender a sua validade até 2022 e para além da Amazônia Legal (inclusive de projetos de colonização). Faz ainda propostas de alteração nos valores a serem cobrados das terras regularizadas (Art. 12 da referida lei) até o limite de 15 módulos fiscais, conforme veremos detalhes abaixo.

2. Comentários sobre mudanças propostas na Lei nº 8.929

A primeira grande mudança na Lei da Reforma Agrária está relacionado à titulação dos lotes nos projetos de reforma agrária, conforme já amplamente anunciado. O texto atual da lei (§ 4o do Art. 18) estabelece que “é facultado ao beneficiário do programa de reforma agrária, individual ou coletivamente, optar pela CDRU [Concessão de Direito Real de Uso], que lhe será outorgada na forma do regulamento”. Este § passaria a ter a seguinte redação, “regulamento disporá sobre as condições e a forma de outorga do título de domínio e da CDRU aos beneficiários dos projetos…”. A mudança é bastante simples, ou seja, não há mais a opção da família beneficiária, abrindo a possibilidade para que o INCRA emita todos os títulos por “decreto”.

Ainda de acordo com o texto da MP, uma mudança de redação no §1º, do mesmo Art. 18, deixa claro o prazo que o beneficiário terá para negociar o título. De acordo com o texto, esses títulos de domínio passarão a ser negociáveis após 10 anos, “contando da celebração do contrato de concessão de uso ou de outro instrumento…”, sendo que todos os projetos de assentamentos e a distribuição de lotes devem ter sido feitos por meio de tais títulos (caput do Art. 18 da lei em vigor). Em outras palavras, assim que for emitido o título, todos lotes em assentamentos com mais de 10 anos são negociáveis, portanto, estão no mercado de terras.

Outra mudança importante está relacionada à seleção das famílias beneficiárias dos programas de reforma agrária. Em primeiro lugar, essa seleção deverá ser feita via edital (chamadas públicas), com ampla divulgação (§1º do Art. 19). Esse será um edital de convocação no município (parte do processo de municipalização da reforma agrária) onde o projeto de assentamento será localizado.

Vale destacar a “tendência de municipalização” das ações de reforma agrária no conjunto da proposta. Essa unidade da Federação – inclusive ignorando todos os debates das últimas décadas sobre os problemas desse tipo de delimitação geográfica e ausência total da discussão territorial – passa a ser o limite para as possíveis famílias beneficiárias (§1º do Art. 19), sendo prioridade para assentar as famílias da “lista de espera” (de acordo com Inciso II, do Art. 19-A, a segunda prioridade são as famílias a mais tempo residentes no município) e as famílias acampadas no município (Inciso IV do mesmo artigo).

Ainda sobre a seleção, o texto da MP propõe seis (6) critérios para classificar as famílias beneficiárias, dando preferência “ao desapropriado” (Inciso I, do Art. 19). Em outros termos, o primeiro beneficiário da desapropriação é o (pretenso) proprietário que, além de receber indenização (valor de mercado pela terra que não cumpre a função social), poderá ficar assentado no projeto. Claramente é uma tentativa de “economizar recursos” (?) nas aquisições de terras, pois afirma que o desapropriado terá “preferência para a parcela na qual se situe a sede do imóvel”, sendo que, nesse caso, “será excluída da indenização”.

Além dos benefícios já mencionados acima, esse tipo de regra deverá resultar em: a) sua total inviabilidade, portanto, uma regra absolutamente insólita; ou, b) na geração ou acirramento dos conflitos e disputas por terra. Nitidamente é um critério ou regra que expressa o total desconhecimento – tanto no sentido de falta de conhecimento como de desconsideração ou retirada da importância política – das disputas históricas por terra no campo brasileiro.

Os demais critérios estabelecidos para a seleção de famílias, apesar de legítimos – incluem trabalhadores vítimas de trabalho escravo, retirados de outras terras, em situação de vulnerabilidade social, entre outros – desconsideram completamente a histórica demanda social por terra e reforma agrária. Esta demanda social é, pelo menos nas últimas 4 ou 5 décadas, expressa por meio de ocupações e acampamentos. Para além de expressão política, as pessoas e famílias organizadas em acampamentos e ocupações corporificam uma demanda histórica (é uma demanda social ativa!), completamente ignorada nos critérios propostos.

Além do desconhecimento da demanda social, o texto da MP (Art. 19) estabelece mecanismos absolutamente burocráticos como, por exemplo, a criação de “lista de candidatos” (§3º) nos casos em houver demanda maior que a capacidade de alocação das famílias no projeto.  Esgotada a lista de candidatos, abre-se nova chamada via edital (§4º). Baseado nos processos históricos, e mesmo em tentativas do passado recente como inscrição via correios, são mecanismos burocráticos fadados ao fracasso na seleção de famílias para fins de reforma agrária.

Há ainda outros elementos extremamente problemático, os quais deverão contribuir pouco para a tal “nova fase da reforma agrária”. Primeiro, é o caso da presença irregular de ocupantes de lotes (Art. 18-B e 26-B). Ao longo do texto fica clara a intenção de regularizar todos os casos, desde que se enquadre nos critérios estabelecidos no Art. 20, ou seja, não ser proprietário de outra terra (Inciso II do Art. 20).

O segundo elemento refere-se ao resgate de Títulos da Dívida Agrária (TDA) imitidos nos programas de reforma agrária. Não está sendo proposta mudanças nos atuais prazos de resgate (resgates a partir do segundo ano, escalonados de acordo com o tamanho do imóvel desapropriado, conforme Art. 5º da lei vigente), mas incluindo nesses a possibilidade de resgatar também todos os imóveis desapropriados por “acordo administrativo” e/ou realizado pela Lei Complementar 76 (§ 4º). A lei atual (mesmo § 4º) restringe ao “caso de aquisição por compra e venda de imóveis rurais”, ou seja, na aplicação do Decreto 433, de 24 de Janeiro de 1992, sendo que a redação da MP abre para todos os casos.

3. Comentários sobre mudanças propostas na Lei nº 11.952

O texto da MP propõe uma série de mudanças no conteúdo e extensão da Lei, portanto, no programa Terra Lei. Um dos itens principais, conforme já mencionado, é o seu alongamento até 2022 (Art. 33), sendo que a lei em vigor (mesmo artigo) “estabeleceu o prazo de cinco anos”. O Decreto 8.273, de 26 de junho de 2014, em seu Art. 1º, havia prorrogado este prazo por mais três anos (até 2016).

Além de mudança na redação para alongar esse prazo, o texto da MP transfere as competências do INCRA de regularização fundiária para o agora extinto Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA). Redação que deverá ser alterada, ou resultar em outras mudanças institucionais (?).

Um segundo aspecto fundamental do texto em apreço é a aplicação da Lei 11.952 em todo o território nacional. De acordo com nova redação (Art. 40-A), poderão ser aplicadas “as disposições desta Lei à regularização fundiária das ocupações fora da Amazônia Legal em áreas rurais da União e do Incra”. Consequentemente, as regras do Terra Legal, diferente dos dispositivos estabelecidos para regularização fundiária do Incra, passam a valer para todo o País.

Terceiro, apesar de manter o limite de 15 módulos fiscais que não excedem a 1500 hectares, a MP complementa a Lei em vigor e propõe um escalonamento para o pagamento do imóvel regularizado (§ 1º, Art. 12). Extrapolando o estabelecido no § 3º da Lei (“poderão ser aplicados índices diferenciados para a alienação ou concessão de direito real de uso das áreas onde as ocupações não excedam a 4 módulos fiscais”), a MP estabelece percentuais de 10% (imóveis acima de 01 a 02 módulos) até 80% (imóveis de 12 a 15 módulos) da Planilha de Preços Referenciais (PPR) para a terra nua. A MP cria cinco faixas para os imóveis acima de quatro (04) módulos, partindo de 40% da PPR (imóveis entre 4 e 6 módulos) até os 80% do valor da terra nua (imóveis entre 12 e 15 módulos).

Em relação às áreas regularizadas, dois aspectos relacionados às cláusulas resolutivas (área titulada deveria cumprir certas condições) chamam a atenção. Em primeiro lugar, há uma substituição de termos da Constituição sobre a função social por “termos insólitos”. Além de negar conquistas históricas, a exigência de “aproveitamento racional e adequado da área” é substituído por “manutenção da destinação agrária, por meio de prática de cultura efetiva”. Claramente há, mais uma vez, uma tradução (e restrição) do “racional e adequado” como apenas exploração produtiva (mesmo sendo impreciso o uso da expressão “cultura efetiva”).

Além de manter que uma das cláusulas são “as condições e forma de pagamento” (Inciso V do Art. 15), prevê a extinção dessas “condições resolutivas caso o beneficiário opte em realizar o pagamento integral do preço do imóvel” (§ 2º). No entanto, é ainda mais estranho que, em dispositivo separado (§ 3º) estabelece que este só vale as áreas regularizadas de até um (01) módulo fiscal.

Além de estabelecer percentuais para pagamento da terra regularizada e abrir para pagamentos à vista (Art. 17, § 2º, etc.), a MP cria possibilidades para alienar (vender/comercializar) terras regularizadas de até 15 módulos, sem respeitar os prazos já estabelecidos. Nos termos da Lei em vigor (§ 3º, do Art. 15), “os títulos referentes às áreas de até 4 (quatro) módulos fiscais serão intransferíveis e inegociáveis” por um prazo de 10 anos, o que é suprimido do texto proposto. Consequentemente, esta nova redação (na verdade simples supressão do § 3º na nova redação) abre a possibilidade de alienar áreas regularizadas sem qualquer restrição temporal.

Apontamentos sobre perspectivas dessa “nova fase”

Conforme já mencionado, essa breve análise tomo como base um texto “apócrifo”, ou seja, uma versão não oficial e preliminar (provavelmente uma proposta em elaboração) da Medida Provisória anunciada como “marca de uma nova fase da reforma agrária” no Brasil. Além de todos esses pontos críticos já mencionados, é preciso destacar – certamente tentando responder às acusações e apontamentos do Tribunal de Contas da União – que há alguns passos que poderão ser benéficos às famílias assentadas.

Um exemplo de avanço seria que, atualmente, entre os critérios de exclusão dos programas de reforma agrária está a pessoa que (Art. 20, Inciso I) “for ocupante de cargo, emprego ou função pública remunerada”. A MP cria uma exceção de não exclusão da pessoa que, sendo enquadrada nesse critério, “o exercício do cargo, emprego ou função pública seja compatível com a exploração da parcela pelo núcleo familiar beneficiado” (§2º, do Art. 20). Segundo o texto da MP, não serão excluídos dos projetos de assentamentos aquelas pessoas que exercem um cargo público (professor, agente de saúde, vereador, deputado estatual, advogado, etc.). Esta regra resolve muitos casos em que o acesso à terra criou oportunidades para crescimento pessoal, profissional, exercício de liderança, etc.

Concluindo, apesar das narrativas de agilizar e atualizar os processos, essa nova fase parece ser caracterizada por: a) decisões impositivas do INCRA ou de outras instâncias de governo (municípios ou entidades da administração indireta) como, por exemplo, decisões sobre a emissão de títulos sem consulta à família; b) mercantilização da terra (pagamento de desapropriação em dinheiro; liberação para negociar títulos; pagamento à vista da parcela regularizada, etc.) e, c) descentralização, na verdade, municipalização e desoneração do INCRA das obrigações junto às famílias assentadas e execução de programas de desenvolvimento no campo.

TORTURA LEGALIZADA?

Rovena Rosa

A prática da tortura é um câncer que se propaga de Norte a Sul. Apesar do que se pensa, ela não foi erradicada com a redemocratização.

Leneide Duarte-Plon, de Paris*

Nem em pesadelo pensei ler um dia uma recomendação de emprego de tortura por parte de um juiz brasileiro, em pleno século XXI, contra jovens que estão lutando contra uma lei qua ameaça a Educação. Já não sendo ideal, a educação no Brasil pode piorar consideravelmente.

Pois agora, a realidade é pior que o pior dos pesadelos. Um juiz recomendou a tortura. E por escrito. Nem a ditadura militar ousou tanto: a tortura era praticada – contra os opositores do regime, os revolucionários que combatiam a ditadura com ou sem armas e eram tratados de « « subversivos » ou de « terroristas » – mas sua prática era permanentemente negada.

Banida nos textos das democracias, inclusive no Brasil, a prática da tortura é, hoje, um câncer que se propaga de Norte a Sul. « Ninguém será submetido a tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. » Esse é artigo 5° da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Esse mesmo texto é o artigo 5°, inciso III, da Constituição Federal do Brasil.

Apesar do que se pensa, ela não foi erradicada com a redemocratização.

Cito um trecho do prefácio que o filósofo Vladimir Safatle fez para o meu livro « A tortura como arma de guerra, da Argélia ao Brasil », lançado no Rio, em junho deste ano :

« Se lembrarmos que, no Brasil, tortura-se mais hoje do que na época da ditadura militar (segundo estudos da socióloga norte-americana Kathryn Sikkink), ficará claro como tal tanatopolítica é base normal de nossos modos de governo mesmo para além de situações explícitas de ditadura. Ela se baseia em uma concepção de tortura que não é vista sob a ótica moral, mas como uma “arma de guerra” como outra qualquer no interior de uma batalha cujo inimigo interno é composto por setores da própria população ».

Depois que vim morar na França, em 2001, passei a acompanhar de perto o trabalho da ACAT – Action des Chrétiens pour l’Abolition de la Torture – e me engagei na causa de combate à tortura e à pena de morte.

A tortura é considerada um crime contra a humanidade e, como tal, imprescritível. Mesmo assim, na França, no fim da Guerra da Argélia, e no Brasil, em 1979, recorreu-se a um instrumento legal para anistiar militares que torturaram.

Os militares torturadores brasileiros eram fiéis seguidores da « doutrina francesa », como mostrei no livro citado. A « doutrina francesa », que está no DNA das ditaduras latino-americanas, teorizou todo o aparato no qual se funda o terrorismo de Estado posto em prática nas ditaduras sangrentas  da Argentina, Brasil e Chile.

Hoje e sempre, é preciso que se denuncie a tortura onde existir, seja em Guantânamo, seja nas escolas ocupadas, seja nas delegacias e prisões brasileiras.

Por um Brasil mais justo

No livro « Um homem torturado », co-escrito com Clarisse Duarte de Meireles, contamos a história de frei Tito de Alencar, que precisa ser conhecida das novas gerações de brasileiros. A maioria dos jovens ignoram a história dos que morreram sob tortura, desapareceram, sofreram prisão e exílio porque lutavam por um Brasil mais justo.

Tito atuou com um grupo de frades dominicanos que davam apoio à Aliança Libertadora Nacional, grupo revolucionário criado por Carlos Marighella ao deixar o Partido Comunista Brasileiro, pelo qual tinha sido eleito deputado na década de 40. Alguns frades do Convento das Perdizes, em São Paulo, ajudavam a esconder pessoas perseguidas pelos órgãos de repressão. Frei Betto, no Rio Grande do Sul, fazia parte de um esquema para ajudar revolucionários a deixar o Brasil pela fronteira.

Como presidente do diretório acadêmico do Instituto de Filosofia e Teologia (IFT) Tito participou do 30° Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), que foi invadido pela polícia. Todos os mais de 700 estudantes que se encontravam no sítio, em Ibiúna, naquele dia 12 de outubro de 1968 foram presos, inclusive Tito.

Preso novamente em 1969, foi mais brutalmente torturado porque a polícia descobriu que intermediara a cessão do sítio para aquele congresso.

Na introdução que fez para o livro, o dominicano Xavier Plassat, escreveu :

« Sem a elucidação constante da verdade, particularmente em relação às sombras mais trágicas da nossa história, tornam-se incompreensíveis e insuperáveis as recorrentes e brutais manifestações de violência, de barbárie, que continuam pontuando nosso tempo, nos presídios, nas delegacias, nos morros, nas fazendas: a matança de jovens, de posseiros, de negros, de índios, de migrantes, de travestis, de prostitutas; a comercialização de gente e sua escravização; a confiscação da esperança; a negação do bem-viver. »

É inevitável ver na trajetória daquele que foi o amigo mais próximo no último ano de vida de Tito um claro legado do frade brasileiro. Desde 1989, é numa pequena cidade no meio da Amazônia, no estado do Tocantins, numa região de constantes conflitos de terra, que pode ser encontrado o francês Xavier Plassat, hoje coordenador da Campanha Nacional da Comissão Pastoral da Terra – CPT –  pela Erradicação do Trabalho Escravo.  

Marx e Cristo

Tito foi um revolucionário profundamente habitado pelo Evangelho de Jesus Cristo. E, como ele, vejo o Evangelho como uma mensagem de libertação e de Justiça.

Os frades dominicanos das Perdizes, assim como outros em toda a América Latina nos anos 60 e 70, tentavam conciliar Marx e Cristo, dois discursos radicais de transformação e justiça social. Basta ler os Evangelhos para constatar que Jesus não prometia prosperidade a quem entregasse todo seu dinheiro aos « representantes » de Deus.

A Teologia da Libertação nasceu como uma resposta aos anseios de Justiça, mostrando que Jesus Cristo se interessava pelo homem encarnado, por sua vida na terra e não apenas por almas.

Apesar das dificuldades, Tito prosseguiu no exílio que começou em janeiro de 1971 as denúncias contra a ditadura e as torturas. Nesse dever de testemunhar colocava toda sua energia. Em agosto de 1971, seu texto “A situação da Igreja no Brasil” foi publicado no Boletim da Frente Brasileira de Informação. O texto é uma profissão de fé no Evangelho e na Revolução.

Nele, Tito revela a mesma visão do Evangelho que impulsionou o padre colombiano guerrilheiro Camilo Torres:  

“A igreja do Brasil mostra sinais de uma profunda transformação que nasce de uma consciência evangélica que se desenvolveu nos homens em coerência com sua missão terrena. Nós não existimos para salvar as almas, mas para salvar as criaturas, os seres humanos vivos, concretos, no tempo e no espaço bem definidos. Temos uma compreensão histórica profunda de Jesus. (…) Para nós quem é o povo de Deus, concretamente? São os trabalhadores, os operários, os explorados, os oprimidos, enfim, toda a massa imensa que tem uma condição de vida desumana. Entre tais, Jesus toma o nome de Zeferino ou Antônio, um qualquer”.

Na prisão, ele havia visto Zeferinos e Antônios sendo torturados porque queriam mudar a sociedade. Seu texto continua falando da perseguição dos religiosos pelo engajamento na busca “de um mundo mais justo e mais humano”:

“O cristianismo não pode se calar diante das injustiças pois calar é trair. Seu dever é tornar-se sal da terra, luz do mundo”.

A esquerda comunista, que acusava a religião de « ópio do povo » segundo a fórmula de Marx, viu que tinha na Igreja progressista um aliado para as profundas transformações sociais de que o Brasil necessitava. Carlos Marighella foi quem melhor compreendeu isso.

Ao acompanhar a atuação da Igreja Católica no Brasil de hoje, percebo que parte dela continua fiel ao Evangelho e à tradição profética que consiste em denunciar os desvios do opressor, como faziam os profetas do Antigo Testamento.

Por isso, sei que ela não adotará um silêncio omisso diante da tentativa de legalizar a prática de tortura.

 * Leneide Duarte-Plon é autora de « A tortura como arma de guerra-Da Argélia ao Brasil : Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado » (Editora Civilização Brasileira, 2016)

Segurem-se, o piloto sumiu!

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Sequestrada a ordem democrática, os três poderes se golpeiam, enquanto Estado mínimo estrangula o Estado Social esculpido na Constituição Cidadã de 1988.

Joaquim Palhares – Diretor da Carta Maior

O Brasil está desgovernado. Sequestrada a ordem democrática, os três poderes (Judiciário, Executivo e Legislativo) se golpeiam. Enquanto isso, o Estado mínimo, imposto pelo núcleo econômico do governo, essencialmente tucano, estrangula o Estado Social esculpido na Constituição Cidadã de 1988.

A desordem atinge todos os níveis. Basta acompanhar os sucessivos fatos:

Na sexta-feira (21.10.2016), a Polícia Federal invadiu o Senado, sem autorização do presidente da Casa ou do Supremo Tribunal Federal (STF). Prendeu quatro policiais do Senado, inclusive o chefe da polícia, sob alegação de que eles atrapalharam as investigações da Lava Jato.

Como?

Realizando, a pedido de alguns senadores, varredura de escutas se existentes ilegais, supostamente plantadas em gabinetes e residências de parlamentares.

Na segunda-feira (24.10.2016), antes tarde do que nunca, Renan Calheiros, presidente do Senado, em entrevista coletiva muito concorrida, achincalhou o juiz de primeira instância que determinou a operação; e também Alexandre de Moraes, o ministro da Justiça. Aproveitou o momento para revelar uma lista com nomes de senadores que haviam requerido a varredura. Entre eles, grãos tucanos, como Aloysio Nunes e Tasso Jereissati, mas também do baixo clero, como Magno Malta, o arauto da moralidade.

No STF, dois ministros se pronunciaram sobre o episódio de forma distinta. A presidente da Corte, Carmem Lúcia, criticou a fala de Calheiros, defendendo a autonomia entre os poderes. O ministro Gilmar Mendes (STF) passou recado ao juiz que determinou a invasão e, por consequência, a Sérgio Moro, à frente da Lava Jato.

A manchete da Folha na última sexta-feira (28.10.2016), “Odebrecht diz que caixa dois para Serra foi pago em conta na Suíça”, dá o tom do próximo round no ringue instalado no Planalto. Em delação premiada, executivos da Odebrecht afirmaram que o ministro José Serra (Relações Exteriores) recebeu R$ 23 milhões (R$ 34 milhões em valores atualizados) em caixa dois da empreiteira durante a eleição de 2010.

Estranho para os tucanos é caixa dois, para os petistas é propina.

Para os tucanos uma pequena notinha de pé de página na Folha e no Estadão e nenhuma linha no JN de ontem (29.10.2016).

Para os petistas, manchetes em todos os jornais, revistas, rádios e televisões.

E ainda tinha gente que defendia a regulação da mídia através do controle remoto !

Operação Métis

A invasão da PF na Casa Legislativa, com direito ao carnaval midiático de sempre, escancarou a fissura entre os poderes da República.

Ao justificar a Operação Métis – deusa da astúcia, capaz de prever todos os acontecimentos… – a PF afirmou que a varredura promovida pelos policiais legisladores nos gabinetes e residência dos senadores, “utilizando-se de equipamentos de inteligência”, criou “embaraços às ações investigativas” da Lava Jato (G1, 21.10.2016) ???

O sinal de alerta do Legislativo sobre o avanço do Judiciário foi dado pelo senador Renan Calheiros, presidente da Casa. Para que a Lei fosse obedecida, antes de invadir o espaço, a PF deveria ter solicitado autorização a Calheiros (presidente da Casa) ou ao STF que encaminharia a ele um requerimento para isso.

Com 11 inquéritos no STF, oito relacionados com a Lava Jato, Calheiros foi um dos que requereram a varredura, autorizada por ele mesmo. Em coletiva de imprensa, além de defender o trabalho da polícia legislativa, dentro da lei e restrito à detecção de escutas ilegais, ele atacou o juiz federal, Vallisney de Souza Oliveira, da 10ª. Vera Federal de Brasília, responsável pela Operação:

“Um juizeco de primeira instância não pode, a qualquer momento, atentar contra um poder. Busca no Senado só se pode fazer pelo Senado, e não por um juiz de primeira instância. Se a cada dia um juiz de primeira instância concede uma medida excepcional, nós estaremos nos avizinhando de um estado de exceção, depois de passado pelo estado policial”. (G1, 24.10.2016)

Em relação ao ministro Alexandre de Moraes (Justiça), Calheiros foi além, utilizando expressões como “truculência”, “intimidação” e até mesmo “métodos fascistas”:

“É lamentável que isso aconteça num espetáculo inusitado, que nem a ditadura militar o fez, com a participação do ministro do governo federal que não tem se portado como ministro de Estado, no máximo tem se portado como um ministro circunstancial, de governo, chefete de polícia”.

Disse mais: “A nossa trincheira tem sido sempre a mesma, a Justiça, o processo legal sem temer esses arreganhos, truculência, intimidação. Eu tenho ódio e nojo a métodos fascistas, por isso, como presidente do Senado Federal, cabe a mim repeli-los” (Bom dia Brasil, 25.10.2016).

Durante a coletiva, da segunda-feira (24.10.2016), Calheiros anunciou ter ingressado no STF com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) com o objetivo de definir “claramente” a competência entre os poderes.

Algumas perguntas sobre o episódio:

Se grampos são permitidos, com autorização judicial, nas companhias telefônicas, como os policiais do legislativo poderiam atrapalhar a Lava Jato ?

A Operação Lava Jato, de Sérgio Moro está fazendo escuta física, colocando grampo em gabinetes ou nas residências das pessoas ? Como os grampos encontrados no cárcere de Alberto Youssef, dentro da Polícia Federal?

Em tese, não haveria como prejudicar a Lava Jato com a varredura, porque se houvesse escuta física, a Lava Jato não poderia utilizar esse material. A Justiça autoriza GRAMPOS efetuados nas Operadoras de telefonia. Os policiais do Senado se debruçaram sobre escutas físicas, ou seja, aparelhos colocados nos escritórios e ou nas residências das pessoas de forma ilegal.

É correto, portanto, que o presidente do Senado autorize varredura. E um equívoco a ação da PF e do juiz em determinar a prisão dos policiais e o recolhimento de um equipamento utilizado para evitar uma possível ilegalidade ou crime. A autorização de Calheiros não tem nada de ” ilegal”.

Golpistas intimidados?

Além do clima de guerra entre os Três Poderes, o episódio escancara o clima de terror promovido pela Lava Jato entre os golpistas.

Sim, golpistas.

Na lista dos senadores que solicitaram serviços da polícia legislativa porque “se sentiam intimidados nas suas relações familiares”, conforme justificativa de Calheiros para autorizar o procedimento, constam:

Aloysio Nunes (PSDB-SP); Álvaro Dias (PV-PR), Ciro Nogueira (PP-PI), Eunício Oliveira (PMDB-CE), Fernando Collor (PTC-AL), Gleisi Hoffmann (PT-PR), Ivo Cassol (PP-RO), Magno Malta (PR-ES), Omar Aziz (PSD-AM), Raimundo Lira (PMDB-PB), Renan Calheiros (PMDB-AL), Simone Tebet (PMDB-MS), Tasso Jereissati (PSDB-CE), Vicentinho Alves (PR-TO), Waldemir Moka (PMDB-MS), Lobão Filho (PMDB-MA) e Vital do Rêgo (PMDB-PB). (G1, 24.10.2016),

Com exceção da senadora Gleisi Hoffmann, a relação dos “intimidados” é composta pela tropa de choque do impeachment.

Não à toa, que essa lista não foi referida no Jornal Nacional da Rede Globo e nem estará no Fantástico do domindo (30.10), permanecendo restrita aos onlines e impressos, preferencialmente em pequenos espaços..

Entre os nomes, apenas a Senadora Gleisi, o Senador Collor e ex-Deputado Eduardo Cunha, também citado, sofreram busca e apreensão em suas casas o que permitiria, em tese, a PF ter plantado uma escuta física. Outros senadores, apesar de terem seus nomes referidos ou investigados na Lava Jato, não sofreram qualquer ” constrangimento” a mando do Judiciário.

Por que Aloysio Nunes, Tasso Jereissati, Álvaro Dias estariam se sentindo intimidados?

Não há dúvidas: tem boi nesta linha.

Convite recusado

O passa-moleque dado pelo presidente do Senado na última terça-feira foi duramente criticado pela presidente do STF, a ministra Carmem Lúcia. Exigindo respeito aos demais poderes da Justiça, ela disse: “todas as vezes que um juiz é agredido, eu e cada um de nós juízes somos agredido” (ODIA, 25.10.2016).

A crise estava escancarada.

O presidente decorativo Michel Temer entrou em ação, sem sucesso. Convocou uma reunião entre os Três Poderes que foi declinada pela ministra, alegando “agenda cheia” (OESP, 25.10.2016). O encontrou aconteceu somente na última sexta-feira, com uma estranha pauta sobre Segurança, Calheiros, claro, pediu desculpas (FSP, 28.10.2016).

Esta semana, aliás, será apreensiva para o presidente do Senado. Nos próximos dias, a Corte Suprema votará o impedimento – ou não – de que parlamentares com processo criminal no STF ocupem cargos que possam levá-los a substituir o presidente da República na linha sucessória. Com onze inquéritos no STF, esse é o caso de Renan Calheiros atrás, na fila, do prestativo Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Presidente da Câmara dos Deputados, também citado na Lava Jato (JCNE, 26.10.2016), Maia afirmou sobre a Operação Métis: “tem que se tomar muito cuidado quando um juiz de primeira instância dá decisão em relação a entrar no poder [legislativo]”.

Ele também alertou sobre a ilegalidade da escuta física afirmando que “vale” a atuação da Polícia Legislativa para evitar grampos ilegais. O grampo legal, apontou, “fica no telefone, não precisa, não tem como você evitar grampo legal, porque é autorização judicial e está na central telefônica”. (G1.24.10.2016).

Maia entende do assunto, seu nome surge em mensagens telefônicas trocadas com o empreiteiro Léo Pinheiro, envolvendo doações de campanha da OAS (OESP, 11.06.2016, FSP, 21.01.2016, EPOCA, 14.06.2016).

Mas, também deve se tratar apenas de caixa dois !

Sua atuação impecável na implantação do Estado mínimo, na defesa da PEC 241 – agora PEC 55 no Senado – e das 10 medidas contra a corrupção do Ministério Público (G1, 26.10.2016), podem lhe garantir um refresco.

Sem falar dos financiadores de sua campanha – a maioria bancos e empresas do sistema financeiro (FSP, 15.07.2016) – que têm nele um forte representante dentro do Congresso. Não é à toa que Maia vem tentando se reeleger na presidência da Câmara em 2017 e à revelia da Constituição exigir uma eleição de deputado entre as disputas pela vaga (AE, 07.10.2016).

No último dia 13, o deputado se reuniu com o ministro Gilmar Mendes para discutir reforma política. Imagine a conversa entre ambos sobre a proibição do financiamento privado de campanhas em curso.

Maia deu uma palha: “Não haverá mais financiamento de pessoa jurídica. Então, nós teremos financiamento ou de pessoa física ou público. Com [apenas] estes dois modelos, o sistema vai entrar em colapso em 2018” (IG, 13.10.2016).

Resta a pergunta: Qual a legitimidade de Gilmar Mendes para discutir reforma política com o Presidente da Câmara?

Vem chumbo grosso por aí.

Salve-se quem puder

É sempre bom lembrar que Mendes e Maia têm um amigo em comum: o sumido senador Aécio Neves. Investigado em dois inquéritos no STF na Operação Lava Jato, citado em várias delações, Aécio foi considerado um grande articulador da vitória de Maia na Câmara em julho deste ano (R7, 16.07.2016).

Sua presença também pode ser suposta nas críticas, cada vez mais constantes, do amigo Gilmar Mendes sobre a atuação de Sérgio Moro.

Nesta semana, o todo-poderoso do STF destacou que “a Lava Jato tem sido um grande instrumento de combate à corrupção”, mas “daí a dizer que nós temos que canonizar todas as práticas ou decisões do juiz Moro e dos procuradores vai uma longa distância”.

Ele também pediu “escrutínio crítico” em relação às dez medidas do MPF.

A mais inquietante de suas declarações, apesar de assegurar que o Brasil vive seu mais longo período de “normalidade institucional”, disse respeito à Operação Métis. Gilmar Mendes foi categórico em relação à invasão da PF no Senado: “medidas em relação ao Senado devem ser autorizadas pelo Supremo”.

Chegou, inclusive, a mencionar a cautela dos militares em 1964: “Se tem que tomar todas as medidas para não botar a polícia dentro do Congresso. São coisas que não se compatibilizam. Existe um elemento simbólico. Até os militares foram muito cautelosos em fechar ou colocar a Polícia dentro do Congresso. É preciso ter cuidado com isso”.

Em suma: o senador Calheiros não ofendeu a Justiça e a Ministra Presidenta do STF, ficou pendurada no pincel.

De quebra, Mendes defendeu o projeto de lei contra o abuso de autoridade de juízes e promotores, criticando abertamente Sérgio Moro: “alguns chegam a dizer exageradamente que comprometeria a Lava Jato. Significa que eles precisam de licença para cometer abuso? Me parece um absurdo”. (OGLOBO, 21.10.2016).

Não esquecer que as rusgas entre Gilmar e Janot datam de 2015, tendo porém se tornado mais agudas nos últimos tempos.

A disputa interna entre os golpistas será tórrida no próximo ano.

Gilmar Mendes, inclusive, passou a agenda: “já tivemos muitas denúncias recebidas. Esse processo prossegue e certamente, no ano que vem, já iremos ter decisões do Supremo, ou condenações ou absolvições” (G1, 24.10.2016).

Bye-bye

É neste contexto que os boatos sobre o afastamento de Temer se fortalecem no Planalto Central. No horizonte, as delações da Odebrecht – nas quais Serra já entrou no bolo – prometem atingir pesos pesados do atual governo como Eliseu Padilha (Casa Civil), Geddel Vieira Lima (Secretaria de Governo) e Moreira Franco (Parcerias de Investimentos), além de Rodrigo Maia (CEM-RJ). (FSP, 26.10.2016). Enquanto isso, Eduardo Cunha permanece bem guardado sob as asas de Moro.

A pergunta se coloca: qual será o nome que eles vão impor, nas eleições indiretas, após o chisparem com Temer e cia. do planalto?

Seja qual for, terá de ser alguém que abrirá, ainda mais, a atuação do núcleo tucano instalado no centro econômico do poder. Alguém forte capaz de conter os excessos – só agora incensados – da Lava Jato. E com a estatura de uma pulga, em termos sociais, para promover o desmonte de um país que poucos anos atrás ascendia em justiça social, soberania e perspectiva de futuro.

A verdade é que uma possível delação premiada de Eduardo Cunha e família e dos executivos da Odebrecht, têm potencial destruidor de uma bomba atômica, como reconhece o próprio Juiz Moro, neste final de semana.

Desta forma, o povo brasileiro deve estar atento a essas movimentações e possibilidades, que podem levar um aventureiro à Presidência da República, com o rótulo de salvador da Pátria.

Lembram? Já foram mencionados Joaquim Barbosa, mais recentemente Sergio Moro, quem será o próximo?

‘Os americanos entenderam que a mudança era irreversível’

reprodução

Mesmo que Hillary Clinton seja eleita, a campanha eleitoral de 2016 ficou marcada pelo ‘tsunami Trump’ e pelo ‘tornado Sanders’.

Christophe Ayad

Depois de oito anos na Casa Branca, Barack Obama pode fazer um balanço no mínimo satisfatório: o fantasma da recessão foi afastado, o crescimento está de volta, o país, mal ou bem, saiu de duas guerras em que estava mergulhado – no Afeganistão e no Iraque. No entanto, os americanos ainda estão angustiados pelo declínio e indignados com as injustiças e desigualdades.

Mesmo que Hillary Clinton seja eleita a 45ª presidenta americana, a campanha eleitoral de 2016 ficou marcada pelo “tsunami Trump” e pelo “tornado Sanders”. Donald Trump, especialmente, deu um rosto e uma voz ao desconforto e às obsessões de parte do país. Seu nacionalismo reacionário e xenófobo está de volta à cena política americana. Para Clifford Young, especialista em pesquisas de opinião, esse fenômeno vai perdurar.

A raiva é o sentimento dominante, hoje, nos Estados Unidos?

Diria que os sentimentos que dominaram a campanha eleitoral foram sobretudo o medo, especialmente medo do futuro, e o sentimento profundo de ter sido traído. Hoje, nos Estados Unidos, predomina a sensação de que o sistema está com defeito e é manipulado, e que os partidos e os políticos não se preocupam com as pessoas comuns.

O que origina este medo e ressentimento? Como não os vimos surgir?


É um processo de acúmulo de longa data. O mesmo fenômeno pode ser visto na Europa. Há razões econômicas e culturais. Economicamente, há uma longa estagnação. O desemprego – ou subemprego – é alto por causa da globalização e da uberização do mundo atual. Entre 30% e 40% da população não enxergam um futuro melhor do ponto de vista econômico.

Enquanto isso, profundas mudanças demográficas afetam os Estados Unidos: estamos deixando de ser uma sociedade branca do tipo europeu para nos tornarmos uma sociedade não-branca. Se tomamos a geração de baby boomers nascidos durante a guerra do Vietnã, 76% são brancos. Se analisamos a população entre 0 e 5 anos, 50% são brancos. Estas duas tendências de longo prazo combinadas conduziram ao cenário que vemos hoje.

De todo modo, este pessimismo é paradoxal, uma vez que a economia dos EUA saiu da recessão, após a crise de 2008, muito mais rápido do que os outros países ocidentais.

As pessoas entenderam que não estamos mais em ciclos econômicos regulares, com altos e baixos, mas em um fenômeno inexorável, uma mudança irreversível. Os cidadãos economicamente ativos hoje não vivem melhor do que seus pais e sabem que seus filhos vão viver pior do que eles. A noção de que as coisas sempre iam melhorar é um componente fundamental do “sonho americano”. Hoje, não existe esta certeza. Talvez a economia dos EUA seja mais flexível, mais reativa, mais adaptável, mas esse sentimento de que a mobilidade social acabou não está relacionado com a crise dos subprimes. Vem de mais longe.

Quem é mais afetado por esta sensação de depreciação?

A classe média e a classe média baixa. Trata-se, é claro, dos operários, dos trabalhadores manuais, ou mesmo profissões como médicos do interior, cujo prestígio não é mais o mesmo. Esta pequena classe média era a mais tocada pelo “sonho americano”: a possibilidade de ganhar bons salários e de se sentir parte de algo maior. É isso que está mudando. As pessoas já não têm a impressão de serem especiais só porque são americanos. Mesmo quem foi para a universidade e que possui cargos administrativos está sendo substituído por trabalhadores mais baratos de outro lugar, ou por máquinas, algoritmos.

Concorda que o cenário político americano se parece cada vez mais com o da Europa, com o surgimento de uma extrema direita populista e xenófoba e de uma esquerda radical?

Uma coisa é certa: os Estados Unidos vão se parecer cada vez mais com a Europa em termos de valores da sociedade e liberdades individuais. A geração mais jovem é mais progressista do que a anterior neste aspecto. É mecânico: em uma meia geração, não haverá mais nenhuma diferença nesta área. No entanto, os americanos continuam não acreditando e sendo resistentes ao estado de bem-estar social.Os princípios libertários do país permanecem fortes.

Outro ponto que nos aproxima da Europa é o nacionalismo reacionário e xenófobo de parte dos republicanos. A principal questão agora é o que vai acontecer após a eleição e a provável derrota de Trump. O que vai acontecer com o Partido Republicano? Trump representa hoje metade da base do partido.

Qual é o espaço dos valores religiosos? Não parecem ter desempenhado um papel importante nesta campanha.

Quem quer que seja o presidente e sua orientação política, deve ser cristão. É da natureza da política americana. É uma questão moral pública. Em um nível partidário, os republicanos se valem mais do trunfo religioso durante as últimas três décadas, centrando-se em valores, através de questões como o direito ao aborto, casamento e orientação sexual. Trump não é um conservador religioso, e a religião esteve ausente da campanha eleitoral.

Mas a partir do momento em que teve problemas com a moralidade tradicional, a religião passou a importar. Parte do eleitorado conservador atribui grande importância à retidão moral. Estes se afastaram de Trump, visto como amoral, e esta será uma das razões de sua provável derrota.

Qual é a relação entre o movimento Tea Party, que tem dominado o Partido Republicano durante os dois mandatos de Obama, e o “Trumpismo”?

Trump literalmente depenou o Tea Party, que foi absorvido pelo “Trumpismo”. Muito do que ele diz – que o sistema está defeituoso, que a América era melhor antes, que o governo explora os desfavorecidos – vem do Tea Party. Ele soube encarnar esse discurso. O Tea Party preparou o terreno para Trump.

O medo do terrorismo está de volta aos Estados Unidos, junto com uma onda de desconfiança sem precedentes em relação aos muçulmanos?

A segurança é tema um importante, mas não central: está em segundo lugar em nossas pesquisas. A primeira preocupação é a situação econômica, o emprego. O medo do terrorismo e as preocupações com a segurança estão relacionados com a situação internacional, particularmente aos ataques terroristas em solo americano. Por exemplo, os ataques na França tiveram um forte impacto sobre a opinião pública americana, mas por pouco tempo.

O Occupy Wall Street parecia um movimento sem desdobramento político até a chegada de Bernie Sanders. Está surgindo um polo de esquerda, no sentido europeu?

Occupy Wall Street foi um evento menor e isolado, mas expressava o que estava por vir. É como o Tea Party, que se achou que fosse acabar passando. Na verdade, Bernie Sanders e Donald Trump são dois lados da mesma moeda. Há uma maioria, nos dois campos, que pensa que o sistema é falho e fraudulento. A diferença está na forma como a constatação é analisada. Para Sanders, a ideia é que o mundo das finanças, juntamente com o establishment político, manipula o sistema a seu favor. Há uma mensagem equivalente à direita, mas prevalece o discurso contra os imigrantes. Esta narrativa, esta suposição inicial de que o sistema não funciona mais, veio para ficar, pelo menos, ainda pelos próximos dez anos.

Tradução de Clarisse Meireles

Clifford Young é especialista em pesquisas de opinião e dirige o Instituto Ipsos Public Affairs em Washington. É doutor pela Universidade de Chicago e professor nas universidades Johns Hopkins e Columbia.

DEBATE EM PARIS DISCUTE PROTAGONISMO ‘PERIGOSO’ DO JUDICIÁRIO NO BRASIL

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Durante debate, cientista política lembrou que ‘numa democracia consolidada, Judiciário e mídia não podem celebrar juntos’.

Márcia Bechara – RFI

 O Observatório Político da América Latina e Caribe (OPALC), do Instituto de Ciências Políticas de Paris (SciencesPo), reuniu três especialistas nesta quinta-feira (27) para discutir a crise política no Brasil, além dos “superpoderes” da magistratura brasileira, entre outros efeitos colaterais do esgotamento do “presidencialismo de coalizão”.

No menu do encontro, temas como a tradição política da destituição de presidentes na América Latina, as causas e consequências da ultrapolarização política da sociedade civil brasileira, as fricções entre as narrativas que tentam relatar o episódio do impeachment de Dilma Rousseff e o surgimento de uma nova “entidade” reguladora de poder: o Judiciário brasileiro, cada vez mais politizado, que toma para si de maneira perigosa as decisões primordiais da Nova República do século 21, segundo afirmaram os especialistas reunidos no seminário “A crise no Brasil”.

Para o cientista político Aníbal Pérez-Liñan, é de fundamental importância entender “a destituição de Dilma Rousseff no contexto latino-americano”. O professor da Universidade de Pittsburgh lembrou que, entre o impeachment de Fernando Collor de Mello, em 1992, e o de Rousseff, em 2016, nada menos do que oito presidentes da República foram depostos pelo poder Legislativo no continente: Carlos Pérez, na Venezuela, em 1993; Abdalá Bucaram, no Equador, em 1997; Raúl Cubas, no Paraguai, em 1999; Lúcio Gutiérrez, no Equador, em 2005; Fernando Lugo, no Paraguai, em 2012, e Otto Pérez Molina, na Guatemala, em 2015, além dos dois chefes de Estado brasileiros.

Recessão econômica e protestos

“Um estudo que desenvolvi com 19 países latino-americanos, de 1945 a 2010, mostrou que o aumento da recessão econômica e a intensificação de protestos populares estão diretamente e proporcionalmente ligados ao aumento dos riscos de golpes militares e de processos de impeachment no continente”, afirmou o especialista.

“A maioria das destituições presidenciais latino-americanas não apresentava argumentos sólidos, tratava-se de uma manipulação para encontrar desculpas para os processos de impeachment”, lembra Pérez-Liñan, que fez questão de ressaltar a ausência do Exército em cada uma das destituições e o fato do impeachment na América Latina atingir tanto presidentes de direita como da esquerda, o que, para ele, descaracteriza a “narrativa brasileira de um golpe”.

“A outra narrativa presente no Brasil, que celebrou o impeachment de Dilma como um acerto de contas benéfico para a população, também não funciona, porque sabemos muito bem das fragilidades do ataque parlamentar feito à ex-presidente, sabemos da completa falta de solidez do argumento da maquiagem das contas públicas”, finalizou Pérez-Liñan. Além dos oito presidentes latino-americanos destituídos em pouco mais de uma década, o especialista lembrou também dos golpes militares “clássicos” que atingiram os presidentes Jorge Serrano (Guatemala, 1993); Jamil Mahuad (Equador, 2000) e Manuel Zelaya (Honduras, 2009), além dos três chefes de Estado latino-americanos que renunciaram espontaneamente no mesmo período, como Alberto Fujimori, no Peru, Fernando de la Rúa, na Argentina, e Gonzalo Losada, na Bolívia.

O esgotamento do “presidencialismo de coalizão” e um Judiciário “superpoderoso”

Para Marilde Loiola, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, o sistema de “presidencialismo de coalizão” chegou a um esgotamento definitivo. “Vivemos um momento de ruptura com este modelo presidencialista brasileiro, causador de uma extrema fragmentação partidária num contexto de relação deteriorada entre o Legislativo e o Executivo”, afirmou. “O Poder Judiciário vive um protagonismo político problemático e perigoso, em detrimento da soberania nacional, uma vez que não é legitimado pelo voto”, atacou a especialista.

Loiola citou o exemplo do juiz Sérgio Moro, que posou para fotos com candidatos às eleições municipais como o tucano João Dória, em São Paulo, e que aceitou prêmios como o da Rede Globo de televisão. “Numa democracia consolidada, Judiciário e mídia não podem celebrar juntos”, lembrou a cientista política. “Houve também episódios de incriminação seletiva com o vazamento dos áudios da presidência”, lembrou Marilde Loiola, que citou a crítica da Ordem dos Advogados do Brasil na ocasião: “apenas em regimes totalitários processos penais e políticos se confundem”.

“Existe atualmente uma sintonia perigosa entre o Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal, que revela a falta de independência entre quem acusa, quem investiga e quem julga, tudo isso numa democracia de baixa densidade, como o Brasil de 2016 ”, afirmou a especialista. “Além disso, existe uma ‘judicialização’ do poder. Como o Legislativo se nega a se posicionar sobretudo em questões morais ou religiosas, por medo de perder o eleitorado, ele transfere essa função para o Judiciário; que acaba tomando espaços inéditos de decisão na vida pública brasileira”, finalizou.

O impacto da destituição de Dilma Rousseff nas eleições municipais

“Quem deverá se aproveitar do ‘crime de responsabilidade’ que destituiu Dilma Rousseff?”, indagou Frédéric Louault, da Universidade Livre de Bruxelas, em sua análise “O Impeachment e suas consequências eleitorais”. Louault descreve o voto da Câmara dos Deputados de 17 de abril de 2016 como “um espetáculo parlamentar destinado a preparar as bases eleitorais para as eleições municipais”. “Os argumentos usados para defender o impeachment de Rousseff deixavam claro, sobretudo, a presença dos lobbys que financiaram as campanhas dos deputados. O argumento da maquiagem fiscal foi utilizado por apenas dois dos 367 deputados que votaram pela destituição da ex-presidente”, explicou.

Para o cientista político, “o linchamento político de Lula visou o pós-impeachment”, para obter efeitos também na disputa das prefeituras. “Fiquei particularmente surpreso com a incapacidade política do ex-presidente de transferir votos para candidatos diretamente ligados a ele, como foi o caso de Fernando Haddad em São Paulo”, analisou Louault.

O especialista afirmou que o resultado das eleições municipais brasileiras, mesmo antes do segundo turno, demonstrou a grande derrota sofrida pelo Partido dos Trabalhadores. “O PSDB foi o partido que mais se fortaleceu neste pleito e o PT, que conquistou 644 prefeituras em 2012, caiu para 256 cidades em 2016”. “Existe também uma fragmentação de partidos políticos em níveis locais. Mesmo o PT, que era tradicionalmente muito forte em nível local, acabou se fragilizando ”, concluiu Louault.

‘A prioridade da esquerda é impulsionar um novo ciclo de mobilização social’

Mídia Ninja

Guilherme Boulos adverte que o governo Temer é o mais perigoso para os trabalhadores desde o início da Nova República.

Luís Leiria – Esquerda.net

Aos 34 anos, Guilherme Boulos assumiu um protagonismo decisivo nas mobilizações contra o novo governo nascido do impeachment de Dilma Rousseff, sob o lema “Fora Temer”. O MTST, por ele dirigido, é o mais dinâmico dos movimentos sociais que atuam no Brasil e o que mais cresceu nos últimos anos.
Chegou atrasado ao nosso encontro, marcado dias antes num café no centro de S. Paulo, para conceder esta entrevista aoEsquerda.net. Pede-me desculpas pela demora, mas eu tranquilizo-o: conheço bem esse tipo de vida repleta de reuniões que muitas vezes se prolongam inesperadamente. Pergunto-lhe de quanto tempo dispomos. Uma hora. Mais do que suficiente.

Mas não me deixa começar de imediato. Pede-me que antes fale um pouco da situação política portuguesa. Apanhou-me de surpresa, habituei-me a que ninguém no Brasil, mesmo na esquerda, tenha o mínimo interesse pela política de Portugal. Bom sinal. Será que a geração do Boulos está menos enfurnada no Brasil e menos de costas voltadas para o exterior? Explico-lhe a “geringonça” e as contradições que ela envolve, o jogo de forças entre a Comissão Europeia de um lado, e as pressões da esquerda para que seja cumprido o acordo com o Bloco, o PCP e os Verdes do outro, acordo esse que permitiu viabilizar o governo de António Costa.

Começa então a entrevista e a certa altura pergunto-lhe se tem ambições políticas. Responde-me corretamente que o que ele faz é altamente político e que política não é apenas a intervenção institucional. Dito isto, não fecha a porta a uma participação institucional no futuro: “Acho que isso não é algo que ninguém possa descartar a priori”, diz. Ainda vamos ouvir falar muito dele.

Filho de médico, formado em filosofia, especializado em psicologia, começou muito jovem a militância política. Apaixonado pela capacidade de organização do MTST, acabou indo viver para um acampamento de ocupação do movimento, e a dedicar-se de alma e coração à causa da moradia digna para os trabalhadores, da reforma urbana, do direito à cidade.

Que avaliação faz das últimas eleições municipais no Brasil, as primeiras a realizar-se já depois do impeachmentda presidente Dilma e já sob o governo do vice Michel Temer?

Nós podemos dizer, grosso modo, que houve uma vitória dos setores mais à direita que representam um projeto neoliberal na economia e um projeto conservador na política. Fundamentalmente com um crescimento do PSDB, que teve uma vitória em S. Paulo de proporção surpreendente. E, entre as maiores cidades do Brasil, o PSDB foi o maior vitorioso.
Ao mesmo tempo, podemos dizer que foi uma grande derrota do PT, inquestionável. O PT perde dois terços das suas prefeituras, vence apenas em uma capital pequena, Rio Branco, de todas as capitais brasileiras, e vai a segundo turno em Recife. E o voto petista – e isso é o mais preocupante – saiu do PT e via de regra não foi para a esquerda. Foi canalizado pela direita.
Dito isso, acho que há dois fatores que são dignos de nota. Um deles é o crescimento do PSOL. Não foi um crescimento suficiente para alavancar o PSOL como uma alternativa de esquerda que venha a tomar o lugar do PT, mas o PSOL vai ao segundo turno em duas capitais, uma delas o Rio de Janeiro. O PSOL elege os vereadores mais votados em várias capitais, teve candidatos a prefeito com mais de 20% dos votos…
Alguns desses candidatos a vereadores mais votados foram mulheres…
Sim, a maioria foram mulheres.
Isso é interessante…
Claro. Em Belo Horizonte foi uma mulher negra, em Porto Alegre a Fernanda Melchionna, em Belém a Marinor Brito… Ou seja, o PSOL se coloca como um segmento de representatividade de novos movimentos sociais com um dinamismo importante de representação.
E um outro fator que precisamos considerar é o avanço do “não voto”, ou seja, as abstenções, o voto nulo e o voto em branco. Isso não foi um facto novo, houve um avanço progressivo nos últimos processos eleitorais. Mas, nas grandes cidades, foi um pico. Em S. Paulo, o Dória, o prefeito eleito, teve menos votos do que esses três somados. No Rio de Janeiro foram 42% os eleitores que não votaram, ou votaram nulo ou branco.
Isso num país em que o voto é obrigatório.
Claro. Belo Horizonte, foram 43%, o maior resultado deste voto entre as capitais, quase metade. É algo que tem de se analisar. Isto reflete uma desilusão com a política, uma rejeição à política, que, convenhamos, é justificada, porque o sistema político brasileiro está falido, está em pandarecos, mas ao mesmo tempo também pode ser canalizado pela direita. O João Dória é eleito com um discurso antipolítico, “eu não sou político”, sou um gestor, sou um empresário. Isso pode levar à tecnocracia, efeito Donald Trump, efeito Berlusconi.
Acho que o balanço que podemos fazer destas eleições é um avanço da direita inquestionável, uma derrota do PT também muito forte e, não podemos deixar de dizer, pelos erros do PT, mas não só; o PT tem vindo a ser alvo de um linchamento mediático desde há dois anos sem precedentes. É difícil ver um partido que resistiria a isso.
Refere-se à operação Lava-Jato?
Refiro-me à operação Lava-Jato mas refiro-me também ao linchamento mediático que tem sido regra, e que é extremamente direcionado contra o Partido dos Trabalhadores. Mas evidentemente, reitero aqui, também pelos seus erros. Isso abre um campo de disputa onde a esquerda deve se colocar. Além de enfrentar os governos de direita, a disputa é por canalizar essa insatisfação do eleitorado.
Disse no dia das eleições que o PT já não tem autoridade para ter a hegemonia da esquerda. O que tinha em mente ao dizer isso?
Isso não vem apenas desse resultado eleitoral. Não é ele que estabelece essa sentença para o PT. O PT foi, na minha opinião, a força política, nos últimos 35 anos, capaz de produzir um guarda-chuva que unificou o eleitorado progressista, unificou com a parte dos movimentos sociais e populares, do movimento sindical, da intelectualidade progressista. Por mais que haja críticas e questionamentos, o PT era a alternativa que aparecia a esse campo. Foi a aposta dos governos petistas num pacto social, com Lula, mantido por Dilma, o “ganha-ganha”, em que a burguesia continua ganhando mas, pela primeira vez em muito tempo, ganham também os trabalhadores, com o aumento gradual do salário mínimo, da massa salarial, do crédito popular, dos programas sociais.
A crise económica solapou as bases para que esse projeto continuasse indo adiante, porque esse processo de “ganha-ganha” foi feito sem qualquer combate efetivo aos privilégios históricos no Brasil, sem nenhuma reforma popular. Nós costumamos dizer que o Estado brasileiro é o Robin Hood ao contrário: ele tira dos pobres, por um sistema tributário extremamente regressivo, onde se tributa o consumo e não a renda, e dá aos ricos, por um sistema de dívida pública baseada em juros usurários. Essa lógica de funcionamento do Estado brasileiro é concentradora. Mas o PT não mexeu nisso. Foram treze anos em que isso não foi tocado. Não se trabalhou a democratização do sistema político, a democratização das comunicações que são oligopólicas no Brasil.
Os avanços sociais que, na minha opinião, são inegáveis, dos governos petistas, foram feitos à custa de manejo orçamentário. Houve um crescimento económico em que as políticas adotadas pelo governo contribuíram para que esse crescimento acontecesse, mas também surfou a onda do crescimento chinês, do aumento do preço das commoditiesinternacionalmente. Esse crescimento permitiu um aumento da arrecadação, um aumento orçamentário que deu base a essa política. Só que depois de 2008, acabou a festa.
Com a queda dos preços internacionais das commodities, a crise económica…
A retração do mercado internacional… Um exemplo: o Brasil é o 2º maior exportador do mundo de minério de ferro. Em 2008, a tonelada do minério de ferro custava 200 dólares; agora está custando 40, 50.
Ou seja: não era mais possível manter esse modelo. E o PT não foi capaz de apresentar outro projeto. Pelo contrário, quando a Dilma se reelege, em 2014, quando a crise já está estourando, o que ela faz é adotar o programa de austeridade, de mais uma vez tentar repactuar com a burguesia, jogando a conta da crise para as costas dos trabalhadores. E isso fez com que a base progressista, a base popular responsável por sustentar os governos petistas desde 2006 rompesse com este governo, que perdeu a credibilidade perante esta base.
Isso deu condições para o golpe institucional que tivemos no país, o golpe parlamentar, em que o governo se torna flutuante, perde a sua sustentação social, e a direita percebe a situação e se aproveita para dar um golpe, e isso deixa o PT sem autoridade política e moral para conduzir um novo projeto de esquerda no Brasil.
Eu não sou daqueles que acham que o PT acabou, que o PT está morto. Acho que esse é um juízo precipitado. O Lula continua sendo a principal liderança social e política do país. Não é à toa que está sendo caçado e achincalhado pelo sistema judicial e pelos média. Agora, desde um ponto de vista de esquerda, principalmente porque o PT não faz uma autocrítica desse processo, faz apenas autocríticas pontuais e fragmentárias, desde um ponto de vista de esquerda, não me parece que o PT tenha condição de ser o condutor de um processo de reorganização da esquerda brasileira. Foi isso que eu quis dizer naquele momento. E acho que as eleições municipais atestam ainda mais esse processo.
Aparentemente, o PT, mesmo prevendo uma catástrofe eleitoral, manteve a mesma política: fez muitíssimas alianças com partidos que votaram a favor do impeachment de Dilma Rousseff, por exemplo…
O PT manteve as suas alianças com os partidos golpistas. Quando ocorreram as eleições para a Presidência da Câmara dos Deputados, setores do PT compuseram com a direita mais oligárquica e atrasada, que é o DEM do Rodrigo Maia, que se tornou presidente da Câmara. Defenderam a composição em nome da derrota de Eduardo Cunha. Ou seja: não foi questionada a lógica de acreditar nos acordos, de se tornar refém dos setores mais conservadores.
Na minha opinião, uma das coisas que o golpe demonstra é o fracasso de uma política de conciliação. A burguesia não quis mais. Quando a burguesia quer prender o Lula, que foi a voz que permitiu esse consenso construído na sociedade, isso tem um simbolismo histórico muito forte. A burguesia disse: “acabou o momento da conciliação, agora é espoliação pura, eu não quero mais o PT, agora eu preciso acumular e espoliar. Preciso acabar com os direitos dos trabalhadores, preciso fazer um programa de terra arrasada, de destruir os investimentos sociais, que é o programa de Michel Temer, é o programa do golpe.
Quem do lado de cá não entender isso, não está entendendo o que está acontecendo no país.
Você apoiou a candidatura do Marcelo Freixo (PSOL) para a prefeitura do Rio de Janeiro…
E continuo apoiando.
Aliás, chamou-me a atenção que ao mesmo tempo que foi ao Rio manifestar esse apoio, o Lula também lá foi mas para apoiar a candidatura de Jandira Feghali (PC do B). Tem esperanças de que o Freixo possa vencer o 2º turno?
Tenho esperanças, sim. O Freixo não é um candidato arrivista, aventureiro. Ele construiu uma legitimidade no Rio de Janeiro como liderança política de esquerda que é muito considerada. Construiu um movimento de diálogo com a base, teve uma votação expressiva, quase um terço, nas últimas eleições, fez o enfrentamento às milícias – foi assim que se notabilizou pela sua firmeza, coragem no enfrentamento a essa excrescência que são as milícias, apoiadas pelo Estado subterraneamente. Na minha opinião, o Freixo conseguiu ganhar no Rio de Janeiro o voto de opinião de esquerda, conseguiu penetrar muito bem nos setores médios, conseguiu penetrar mais do que na outra ocasião em setores populares, mas as regiões mais periféricas ainda deram voto ao Crivella.
O desafio neste 2º turno é o Freixo conseguir penetrar nessas regiões, se apresentar a esse povo e ter condições de ganhar as eleições. Eu acho que isso é possível, porque o Freixo não é um candidato elitista, longe disso, e acho que pode ter sim uma boa estratégia de comunicação e de trabalho de campanha para, na reta final, vencer. Vai ser muito duro, pelas sondagens não está fácil, mas vejo possibilidades.
E há outro fator: agora os tempos de antena são iguais. No primeiro turno, o Freixo tinha apenas 11 segundos…
Foi muito desigual. O Freixo chegar ao 2º turno, o Edmilson [candidato do PSOL de Belém] chegar ao 2º turno – principalmente o Freixo, porque o Edmilson fez uma composição maior – é um milagre.Um dos objetivos da reforma eleitoral patrocinada pelo Eduardo Cunha foi silenciar o PSOL. A campanha foi de apelo social, e com a participação de intelectuais e artistas importantes. Acho que agora no 2º turno, numa situação mais equitativa, as possibilidades de reverter o resultado são maiores.
Falemos um pouco do governo Temer. Logo que tomou posse, depois do afastamento definitivo de Dilma, houve muitas manifestações contra o novo governo, levantando a palavra de ordem “Fora Temer”. Em S. Paulo, foram quase diárias, durante uma semana. Mas, por outro lado, o Temer tem um apoio extremamente sólido no Congresso Nacional e pretende aplicar uma política de ataques muito violentos. Que avaliação faz deste governo?

Acho que o governo Temer talvez seja o mais perigoso para os trabalhadores, para o povo pobre do Brasil, desde o início da Nova República. E é perigoso porque, na medida em que não foi eleito, que não pretende reeleição, não precisa prestar contas a ninguém na sociedade brasileira. O próprio Temer diz isso em alguns momentos: “eu não sou candidato”, “não me preocupo com popularidade”, “vou fazer o que for necessário”. Ele está habilitado, pela sua falta de legitimidade social e de voto popular, para realizar o programa do Mercado, o programa de terra arrasada, que talvez sequer um governo eleito da direita teria condições de fazer. Porque teria de preservar aparências, pensaria dali a quatro anos na próxima eleição. O Temer tem um apoio consistente dos média – não é uníssono, existem críticas, mas é um apoio consistente, que os governos do PT nunca tiveram. Tem apoio de %u254 do Parlamento. Apesar de ser uma base fisiológica, ele sabe lidar bem com isso, foi um gestor do fisiologismo durante muito tempo. E o Temer tem uma sustentação em bloco do empresariado. Claro que há tensões internas dentro deste bloco de poder. Mas eu acredito que este governo vai tentar aplicar os maiores retrocessos neste país, nas últimas épocas.

Vou citar alguns exemplos.
A PEC 241 já foi aprovada em primeira votação. A PEC 241 é uma Proposta de Emenda Constitucional que prevê o congelamento dos investimentos públicos por 20 anos! Apenas com o reajuste da inflação. É colocar a política de austeridade na Constituição do país! Isso significa inclusive que nos próximos 20 anos qualquer governo de esquerda que seja eleito vai estar engessado e amarrado. Porque a esquerda – e nem digo a esquerda, o campo democrático desse país – nunca teve %u254 do Parlamento. Eles têm %u254 para aprovar uma emenda constitucional. Quando é que nós vamos ter %u254 para reverter o que eles estão aprovando agora? É um retrocesso que pode pegar as próximas gerações de trabalhadores deste país. Vai significar uma redução do investimento social do Estado brasileiro em saúde, em educação, em moradia, em políticas públicas de uma forma geral, em outros programas sociais… vai ser desastroso.
Junto a isso, a proposta da reforma da Previdência regressiva, com o aumento da idade mínima da aposentadoria, com a equiparação de homens e mulheres, com o fim do regime especial de aposentadoria rural, com a desvinculação do aumento do salário mínimo das aposentadorias.
Se for para 65 anos, há estados em que a expectativa média de vida é pouco maior que essa idade…
Claro, as pessoas vão se aposentar no caixão. E ainda há a reforma trabalhista [laboral], que embora a tenham deixado mais no canto, significa acabar com a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) que é a lei que regula o trabalho desde a década de 40, que assegura os direitos trabalhistas essenciais.
Veja uma coisa: nesse meio tempo, da década de 40 até hoje, nós tivemos 21 anos de ditadura militar. Pois nem os militares ousaram mexer na CLT. Este governo, em dois anos, quer desmontar a CLT. É um nível de retrocesso, de destruição da proteção social, de rasgar o que há de progressivo na Constituição de 1988, que é avassalador.
Eu não acredito que vá passar sem reação social e popular. Eu acho que se eles insistirem nessas medidas – e dão todos os sinais de que vão insistir – cedo ou tarde vai haver uma forte reação do movimento social organizado. É um desafio que está posto nesse sentido para a esquerda.
Quanto às manifestações: nós fizemos manifestações expressivas de 2015 para cá. Lamentavelmente isso ficou em 2º plano porque o impeachment foi vitorioso. O lado de lá, com um apoio mediático incrível, conseguiu convocar manifestações em muitos momentos maiores do que as nossas. Mas a mobilização feita pelo movimento social e pela esquerda brasileira contra o golpe, em defesa dos direitos, a partir de 2015 e principalmente no início deste ano, foi a maior mobilização social da esquerda brasileira desde as “Diretas Já” nos anos 80. Foram centenas de milhares de pessoas às ruas pelo país afora. Agora, isso não foi suficiente para barrar o golpe. E ainda não é suficiente para barrar estas medidas.
O desafio que está posto é conseguir trazer à cena os atores sociais que não vieram à rua, nem connosco, nem com eles. Que é a grande massa das periferias urbanas, são os trabalhadores precarizados, também os trabalhadores de carteira assinada [com contrato]. O grosso da massa assistiu a este processo todo pela televisão, acreditando que não era com ele, que era uma briga entre políticos, “eles que se resolvam”.
Essas medidas fazem com que a crise chegue no colo do trabalhador e do povão. Quando as pessoas começarem a perceber o que elas significam do ponto de vista do desmonte de serviços públicos, do ataque aos direitos trabalhistas e previdenciários, eu acredito que se a esquerda estiver bem posicionada e conseguir traduzir isso para a massa da população brasileira, poderemos ter um processo de reação muito significativo.
O Guilherme Boulos é o principal fundador da Frente Povo Sem Medo, que teve um papel de protagonismo muito importante nessas mobilizações. Quer explicar como vê essa frente, qual o seu papel no atual contexto?
A Frente Povo Sem Medo começou a ser articulada logo após as eleições de 2014, quando notámos dois fenómenos fundamentais. O primeiro é uma ofensiva conservadora muito forte, já naquelas eleições que elegeram esse Parlamento que está aí. Um avanço da direita. E o segundo foi quando nós percebemos também que a Dilma Rousseff, eleita com um programa de manutenção dos direitos, começou a aplicar no dia seguinte a austeridade. Então, a Frente nasce para enfrentar ao mesmo tempo a ofensiva da direita conservadora e a política de austeridade aplicada pelo próprio governo petista.
Desenvolveu uma série de lutas nesse período, mobilizações nacionais expressivas em defesa dos direitos, contra o ajuste fiscal, contra o impeachment, contra a direita. Protagonizámos o lema “Contra a direita, por mais direitos”, com várias manifestações nesse sentido.

A Frente reúne quase 40 movimentos sociais, com uma composição diversificada. Tem desde movimentos que estão no campo petista, ou do PC do B, portanto do campo que esteve no governo nos últimos 13 anos – a CUT faz parte da Frente, a UNE faz parte da Frente –, estão também movimentos ligados ao PSOL, que se colocou como oposição de esquerda ao governo petista nestes 13 anos – a Intersindical, movimentos de juventude como o Rua e outros tantos –, está o MTST e um campo de movimentos independentes – Brigadas Populares, MLP, e um espaço de diálogo com esses novos movimentos de juventude, feministas. O papel que a Frente Povo Sem Medo tem tido até o momento é de organização de lutas de resistência. É uma frente de mobilização social.

Mas naturalmente, no cenário em que está a esquerda, a Frente também se coloca um desafio de discutir os rumos da esquerda brasileira, de pensar neles. Pensar um projeto para o país, pensar o que seria um projeto de esquerda hoje. E tem feitos debates nessa direção. O que seria uma saída pela esquerda? O que seria a retomada de um programa de reformas populares estruturais no Brasil? O que seria a radicalização da democracia? Temas que começam a ser debatidos no interior da Frente Povo Sem Medo para pensar uma alternativa. Não só na resistência aos ataques, mas já apontando uma perspectiva de futuro.
Acho que é um espaço promissor. Porque tem conseguido estabelecer ligas, não é o campo petista de um lado e o campo do PSOL do outro, os movimentos pelas suas lutas corporativas… tem conseguido valorizar o que nos une mais do que o que nos separa – o que é uma dificuldade histórica da esquerda em todo o mundo. Sem, é claro, perder a dimensão da diversidade, da diferença. Estar unido por pautas que são comuns não significa ignorar diferenças expressivas que existem nesse campo. Acho que a Frente Povo Sem Medo tem conseguido lidar bem com essa contradição.
 Fale um pouco do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Acredito que as pessoas em Portugal não devem saber muito bem as diferenças entre MTST e MST. Durante um período, o grande movimento social no Brasil era o MST. Mais recentemente, o MTST tem uma dinâmica muito superior e um crescimento considerável.
O MTST não é exatamente um movimento que surgiu agora. Nós temos quase 20 anos e a origem do MTST está ligada ao Movimento dos Sem Terra. Foi uma construção junto ao MST, em 1997. Mas o MTST teve um salto de crescimento nos últimos três, quatro anos. E esse salto tem a ver com a dinâmica urbana no Brasil.

Veja: nós tivemos governos petistas num momento de expressivo crescimento económico. Um dos carros-chefe desse crescimento económico foi o setor da construção civil, que se empoderou com o crédito público, muito financiamento, se capitalizou, também pela abertura de capital na Bolsa de Valores, se internacionalizou inclusive. Ora o aumento da disponibilidade de crédito imobiliário para uma classe média que ascendia com o governo e o aumento da disponibilidade de recursos para o setor da construção gerou um surto especulativo nas grandes cidades brasileiras. Uma especulação imobiliária impressionante. Para ter uma ideia, entre 2008 e 2016 em S. Paulo, tivemos quase 220% de aumento do valor médio do metro quadrado. No Rio de Janeiro foram 260%.

No Rio também houve a ajuda dos grandes eventos, Copa do Mundo e Jogos Olímpicos…
 Claro, Copa e Olimpíadas incentivaram esse processo. Porque veio como nunca investimento público em infraestruturas urbanas, só que isso não foi acompanhado de uma regulação pública. Isso empoderou o setor privado, alçou o preço da terra e agravou os conflitos e as contradições urbanas. Principalmente o problema da moradia. Uma parte importante da classe trabalhadora urbana paga aluguer. Esta especulação refletiu-se diretamente no preço do aluguer que dobrou, triplicou em alguns lugares. E os trabalhadores não tiveram o que fazer: foram ocupar. Começaram a ser jogados para regiões mais distantes, houve um novo ciclo de expulsão para novas periferias para continuarem podendo pagar aluguer. E ocorreu uma reação, uma resistência que se expressou no aumento expressivo das ocupações nas grandes cidades.
Neste processo, o MTST cresce muito. Cresce como o movimento capaz de organizar esses trabalhadores sem teto que estão sendo expulsos das suas casas e de construir uma alternativa de política pública de habitação. Acho que o MTST teve o mérito também de não ficar ligado apenas ao tema da moradia, de estender para uma luta mais ampla por reforma urbana, por direito à cidade e de construir um diálogo no campo da esquerda que veio a se traduzir no impulso à Frente Povo Sem Medo.
Fale um pouco de si. Originariamente da classe média, seu pai é médico, você é formado…
Em Filosofia.
 Filosofia. Como é que foi parar no MTST?
Veja, eu comecei a militar muito cedo, como secundarista, no grémio estudantil e, naquele momento, o Movimento dos Sem Terra era a grande referência para a minha geração que era progressista, de esquerda. Eu organizava campanhas na escola de visitas aos acampamentos. E foi um pouco depois disso, eu já entrando na universidade, que o MTST vem atuar na região metropolitana de S. Paulo, onde eu nasci e sempre morei. Fazendo ocupações como a Anita Garibaldi em 2001, gigantesca.
Quando diz gigantesca, estamos a falar de quantas pessoas?
De 7 mil famílias, uma cidade. Depois consolidou-se num bairro, houve uma redução, coisa que sempre acontece, mas ficaram nesse novo bairro 2.500 famílias. E lá estão, no bairro Anita Garibaldi, em Guarulhos.
E eu comecei aí, me encantei com aquele potencial, aquela capacidade de mobilização, de organização, com tudo o que tinha ali de autenticidade, de poder de organização coletiva. O encontro da esquerda com a periferia – o MTST já como movimento caracterizadamente de esquerda desde a sua fundação, conseguindo chegar em lugares em que a esquerda brasileira não chegava.
Eu fui viver num acampamento, isso já em 2002, e há 15 anos atuo no movimento. Entrei depois na coordenação do MTST e hoje faço parte da sua coordenação nacional.
Você tem ambições políticas?
 Primeiro, é preciso precisar esse termo. A atuação que faço, a atuação do MTST já é extremamente política. Quando o movimento faz a disputa da cidade, quando construímos uma Frente para fazer a disputa de políticas para o país, acho que há uma atuação política muito forte.
Acho que um dos vícios da esquerda brasileira no último período foi reduzir a política à política institucional. Foi não entender que fazer política é também estar nas ruas, é também estar nas bases. Esse esvaziamento nos levou à crise em que estamos hoje.
Por isso, eu acho que a atuação que tenho é uma atuação eminentemente política, no movimento. Não é uma atuação institucional de disputa do Estado. Acho que isso não é algo que ninguém possa descartar a priori, mas neste momento eu entendo que o grande desafio que está posto à esquerda brasileira é reconstruir a sua base social, a sua vinculação com o povo, algo que já há mais de 20 anos a maior parte da esquerda deixou de fazer. A maior parte da esquerda brasileira, incluindo o PT, se reduziu à disputa institucional.
Não existe espaço vazio. Esse espaço que a esquerda fazia nos anos 80, que era o pé no bairro, o trabalho de base, ir aos bairros dialogar com o povo, construir, trabalhar a consciência social, feito pela Teologia da Libertação, pelo movimento territorial, pelo movimento sindical… Quando a esquerda deixa de fazer isso, esse espaço foi sendo tomado pelas igrejas evangélicas neopentecostais que cresceram muito no país.
Cresceram porque foram capazes de fazer o que a esquerda deixou de fazer.
Por isso eu entendo que a retomada desse trabalho de base, impulsionar um novo ciclo de mobilização social hoje é a grande prioridade da esquerda brasileira e eu me coloco esse desafio, mais do que qualquer outro.

USAR O CONTROLE REMOTO É UM ATO DEMOCRÁTICO!

EXPERIMENTE CONTRA A TV GLOBO! Você sabe que um canal de televisão não é uma empresa privada. É uma concessão pública concedida pelo governo federal com tempo determinado de uso. Como meio de comunicação, em uma democracia, tem como compromisso estimular a educação, as artes e o entretenimento como seu conteúdo. O que o torna socialmente um serviço público e eticamente uma disciplina cívica. Sendo assim, é um forte instrumento de realização continua da democracia. Mas nem todo canal de televisão tem esse sentido democrático da comunicação. A TV Globo (TVG), por exemplo. Ela, além de manter um monopólio midiático no Brasil, e abocanhar a maior fatia da publicidade oficial, conspira perigosamente contra a democracia, principalmente, tentando atingir maleficamente os governos populares. Notadamente em seu JN. Isso tudo, amparada por uma grade de programação que é um verdadeiro atentado as faculdades sensorial e cognitiva dos telespectadores. Para quem duvida, basta apenas observar a sua maldição dos três Fs dominical: Futebol, Faustão e Fantástico. Um escravagismo-televisivo- depressivo que só é tratado com o controle remoto transfigurador. Se você conhece essa proposição-comunicacional desdobre-a com outros. Porque mudanças só ocorrem como potência coletiva, como disse o filósofo Spinoza.

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CAMPANHA AFINADA CONTRA O

VIRTUALIZAÇÕES DESEJANTES DA AFIN

Este é um espaço virtual (virtus=potência) criado pela Associação Filosofia Itinerante, que atua desde 2001 na cidade de Manaus-Am, e, a partir da Inteligência Coletiva das pessoas e dos dizeres de filósofos como Epicuro, Lucrécio, Spinoza, Marx, Nietzsche, Bergson, Félix Guattari, Gilles Deleuze, Clément Rosset, Michael Hardt, Antônio Negri..., agencia trabalhos filosóficos-políticos- estéticos na tentativa de uma construção prática de cidadania e da realização da potência ativa dos corpos no mundo. Agora, com este blog, lança uma alternativa de encontro para discussões sociais, éticas, educacionais e outros temas que dizem respeito à comunidade de Manaus e outros espaços por onde passa em movimento intensivo o cometa errante da AFIN.

"Um filósofo: é um homem que experimenta, vê, ouve, suspeita, espera e sonha constantemente coisas extraordinárias; que é atingido pelos próprios pensamentos como se eles viessem de fora, de cima e de baixo, como por uma espécie de acontecimentos e de faíscas de que só ele pode ser alvo; que é talvez, ele próprio, uma trovoada prenhe de relâmpagos novos; um homem fatal, em torno do qual sempre ribomba e rola e rebenta e se passam coisas inquietantes” (Friedrich Nietzsche).

Daí que um filósofo não é necessariamente alguém que cursou uma faculdade de filosofia. Pode até ser. Mas um filósofo é alguém que em seus percursos carrega devires alegres que aumentam a potência democrática de agir.

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