
Em memória de Dona Marisa Letícia
Imagino que começou assim. Eu deveria ter 4 ou 5 anos quando passando por uma rua com minha mãe vi um cachorro morto na sarjeta. Pela primeira vez minha atenção se fixou em um animal morto. Já havia visto outros, mas nunca minha atenção havia se fixado em um animal morto com tal grau de intensidade. E foi essa visão intensiva que me trouxe, também pela primeira vez, o questionamento sobre a morte.
Durante todo o trajeto de volta para casa, minha consciência era o cachorro morto. Não o cachorro morto em si, jogado na sarjeta, mas o sentido da morte emergido dele. O sentido impalpável, diferente de seu corpo na rua. Não era o cachorro, era um muito além que eu não sabia responder para mim.
Já em casa perguntei à minha mãe o que era a morte. Ela respondeu que era o fim da vida. O momento em que Deus termina a sua obra em relação ao que antes era vivente. Completando com a afirmação de que tudo que nasce morre. Minha mãe imaginando que minha pergunta se tratava de uma preocupação pessoal, procurou me confortar afirmando que eu não deveria me preocupar com a morte, porque eu era uma criança e ainda tinha muita vida para viver.
As afirmações de minha mãe foram boas para ela, na medida em que lhe confirmavam ser ela uma pessoa que acreditava ter preocupação com o filho. Todavia, para mim não acrescentaram nada a minha inquietação. Eu não era uma criança gênio, mas já havia experimentado os nascimentos e as mortes de dois gatinhos que um amiguinho tinha. Eles nasceram e viveram somente dois meses. O que minha mãe me dissera só afirmou o que antes eu havia vivenciado: a morte fora de mim.
Foi quando eu estava com 6 anos que a minha inquietação dirigida à morte com seus corpos físicos e metafísicos se dissiparam e em mim se revelou o que me conduziu durante a maior parte de minha existência: o impulso para matar. Foi exatamente no grupo escolar que senti friamente esse impulso. Havia na sala que eu frequentava um garoto valentão que metia medo nos outros colegas, principalmente nos mais fracos. Uma manhã, na hora do recreio, o vi batendo covardemente em um garotinho de uma série abaixo da que era eu aluno. Fui tomado por um afeto intenso que me causou medo. Aliás, foi o primeiro medo que tive.
Como se não fosse mais eu, peguei o valentão, que era muito maior que eu, libertei o garotinho de seus braços afastando-o para distante, e com força o joguei o valentão no chão. Ele se apavorou e revelou seu medo diante de mim. Hoje, depois de meus estudos filosóficos, entendi o que Sartre escreveu sobre a consciência empastada, coagulada, a consciência do sujeito tornado objeto pelo olhar do outro. Era essa a consciência do valentão: uma consciência que perdeu a liberdade. Pura facticidade.
Esse impulso, que me conduziu durante a maior parte de minha existência, não era o que alguns etologistas, como Konrad Lorenz chamam de instinto. E que foi aproveitado por Freud para desenvolver sua teoria tanática. Ou a luta de Eros e Morte, expressada também nos seus dois princípios: princípio do prazer e princípio de realidade. Ou ainda, a teoria da libido. Era impulso puro de querer matar que não era uma tensão que procura um alvo qualquer para descarregar e voltar a se energizar para outro ato homicida. Nada de estado compulsivo psicopata.
Com passar do tempo, ao entrar na adolescência, se afirmou mais o impulso. Então, com ele, procurei estudar autores que tratassem desse tema. Foi quando entrei em contato com a psicanálise que me levou logo ao berço de Édipo. O menino deseja a mãe, mas teme seu pai que é o senhor da mãe. Diante do temor ele toma o pai como rival, e como rival ele fantasia matá-lo para ficar com a mãe. É nesse momento que eclode no menino o medo de ser castrado pelo pai. O que Freud chama de complexo de castração. Foi também nessa fase que consegui comprar uma pistola alemã.
Foi então que comecei a me questionar: será que esse impulso tem um alvo específico e esse alvo é meu pai? Será que eu, como Édipo, devo matá-lo para me tornar livre e ser uma pessoa autônoma e viver minha existência em concreta liberdade? Compreendi que não era meu pai que deveria matar. Eu gosto muito dele e ele de mim. É um gosto recíproco que foi criado pela respeitabilidade que cada um tem pelo outro. Uma respeitabilidade distribuída nas relações com outras pessoas. Sim, não era meu pai que eu queria matar.
Cada percurso que eu ultrapassava mais se intensificava o impulso para matar. Depois que casei, terminei o curso superior, mestrado, doutorado e pós-doutorado, me fixei em um emprego que muito me gratifica, e tive os meus dois amores, duas meninas maravilhosas, em nenhum momento concebi que o impulso iria diminuir, porque já entenderá que o que ocorria comigo não estava nos signos que Sartre chama de realidade humana. E muito menos em um mundo teologicamente- metafísico.
Pois foi quando estudei Marx e compreendi com ele que o homem é ele, o Estado, a sociedade e o mundo, e encadeie essa concepção transmundana com o dizer de Nietzsche Ecce Homo, que concebi que quem eu deveria matar tinha que ser essa singularidade, no sentido que trata o filósofo Michel Serres.
Um dia me perguntei se não estava me equivocando acreditando que o impulso era para um homem. Será que, em verdade, quem eu deveria matar era uma mulher? Fiz o entendimento de minha relação com minha mãe e não concebi qualquer signo que indicasse ser ela. Nenhuma relação mística mariana. Nunca odiei qualquer mulher como nunca odiei qualquer homem, assim como jamais tive ciúme. O ódio é o pai da inveja e nunca tive inveja de ninguém. Muito antes de estudar o anti-psiquiatra sul-africano David Cooper que afirma que a inveja é querer ser o outro, e o ciúme querer ter o outro, eu já era assim.
Essa modalidade de existência me fez crer que o impulso de matar que procurava não era provocado por esses sentimentos expressos como sintomas de uma cruel repressão. Essa compreensão piorou meu estado, posto que os homens se destroem impulsionados por essas paixões tristes, como afirma o filósofo Spinoza.
Todavia, mesmo sabendo que o impulso para matar não era agenciado por essas paixões tristes, procurei observar homens considerados como importantes no Brasil. Quem sabe eu estivesse errado e algum deles fosse, na verdade, o que daria um fim ao meu impulso assassino com sua morte. Então, uma noite deitado no sofá da sala, liguei a TV sem qualquer interesse nas imagens exibidas, comecei a lembrar desses homens. Lembrei-me de Fernando Henrique, não presenciei qualquer singularidade. Moro, idem, também nenhuma singularidade que me impulsionasse a mata-lo. Dallagnol, idem, idem. Os ministros e ministras do Supremo Tribunal Federal (STF), também não. Rodrigo Janot, nada. Os irmãos Marinhos, nada de importante. Jornalistas da imprensa tida como dominante, também nada. Empresários, o mesmo. Temer, Serra, Aécio, Jucá, Renan, Sarney, Alckmin, Alexandre Moraes, Arthur Neto, Eduardo Braga, Omar Azi, Pauderney, Moreira Franco, Padilha, Geddel, todos os que participaram sem que nenhum me afetasse.
No transcurso desse desfile imagético, minha filha menor, chegou perto de mim me admoestando perguntando como eu tinha coragem e dignidade de ainda ligar em TV que fala contra Lula. Prestei atenção na TV e vi que era mais uma reportagem acusando Lula. Os milhões de pontinhos coloridos das imagens e o som metálico se fundiram em minha mente e um frêmito imperioso tomou conta de meu corpo e minha alma. Uma força envolvente me dominou. Fiquei parado não sei quanto tempo e ouvindo muito distante minha filha dizer que era Lula e ia desligar a televisão. Aos poucos fui adormecendo.
Meu sono foi continuamente conturbado com imagens e pessoas que não conseguia identificar. Foi aí que fui tomado de total surpresa. Acordei dominado por uma intensa alegria dizendo para mim que era Lula o homem que deveria matar. A certeza era tamanha que rapidamente fiz buscas sobre o endereço de Lula, e me certifiquei se ele estaria lá onde morava. Comprei a passagem e fui para São Bernardo. Hospedei-me em um pequeno hotel, e às dez horas em ponto estava na frente do prédio onde Lula.
Pensei entrar no prédio e ir logo ao encontro de Lula e acabar com o impulso assassino. Não precisou porque chegaram alguns trabalhadores e Lula apareceu na frente do prédio de bermudas, camisa da CUT e tênis. Foi chegando e sendo abraçados pelos trabalhadores que disputavam sua atenção. Com a mão no bolso esquerdo da calça, fiquei segurando a pistola. Não sei quanto tempo passou, mas fiquei paralisado quando vi Lula. Paralisia geral com sensação intensiva de deslocamento e quebra espacial-temporal. Síncope ontológica, diria Sartre.
O meu lugar, meu passado, os meus arredores, meus amigos, meus objetos, minhas ideias, minha morte, tudo como situação expressa pela liberdade e facticidade, o Para-si que se ultrapassa rumo ao ser do Em-si, como diz Sartre, tudo se dissipara. Não posso afirmar que fui nadificado, porque vivenciei minha volta ao Estar-no-Mundo. No mundo com Lula.
Voltei ouvindo Lula me chamar de companheiro pedindo que eu me aproximasse dos trabalhadores. Ele me abraçou e perguntou se eu era chegada a uma pinga, eu sou, mas não respondi. Ele lhe pegou pelo braço esquerdo e pediu que eu entrasse. Já na sala, olhei as paredes com fotos de dona Marisa Letícia. Ele me viu olhando as fotos e disse em um profundo suspiro, minha grande estrela companheira. Tomei um trago da melhor pinga que já provara, conversei com os trabalhadores, e quando já começava a noitecer, me despedi, e disse que tinha que ir para uma reunião em outro lugar. Lula me abraçou e me aconselhou para que eu tivesse cuidado.
Na rua, me senti como se tivesse pela primeira vez existindo. Tudo era tão claro e distinto. Tudo tão compreensivo e aconchegante, tão sublime. Era isso que eu procurava: o sublime. Meu impulso não era para matar um homem, mas encontrar um homem que me auxiliasse a matar, em mim, o homem-dogmaticamente paranoico que me impedia de existir autenticamente. E só Lula poderia realizar essa transmutação. O sublime-Lula era o movimento real, de Marx, a vontade de Potência, de Nietsche, o conatus, de Spinoza, o Devir-Povo. O corpo constituinte da democracia.
O júbilo! Lembrei-me do filósofo Clèment Rosset, com seu entendimento de júbilo como alegria a força maior. Era o que vivenciava. Jubilosamente dei um pulo sobre um bueiro e a pistola saltou de meu bolso caindo no bueiro disparando um tiro. Um grupo de jovens, ao ouvir o estampido, bradou eufórica, gol do Corinthians!
Leitores Intempestivos