“O capitalismo é um mal e não se pode regulamentar o mal. Você tem que eliminá-lo e construir algo que seja para o bem de todos. Isso se chama democracia.”

Finalmente este bloguinho assiste ao último documentário do cineasta, escritor, ativista político Michael Moore, que tem por título o mesmo que leva esse texto. Lembra-nos que no primeiro semestre do ano passado, um crítico de cinema, desses que assistem às avant premier, aliado ao coro dos que chamam Moore de “manipulador”, até chega a elogiar algumas cenas de Capitalismo – Uma história de amor, mas diz que o cineasta “extrapola” e chega ao ridículo ao pegar um carro forte e ir até as maiores agências bancárias exigir a devolução do dinheiro do contribuinte que foi parar, em um “golpe de mestre”, às mãos dos banqueiros.
Como Capitalismo não teve sessões nas salashopipocolas do Brasil, onde só se projetam as grandes bilheterias norte-americanas, e, principalmente – já que de qualquer modo jamais iríamos até essas salas -, não pudemos piratear pela internet, com uma conexão discada que mal chega a 40k – alô, Dilma, urgente banda-larga em Manô! -, tivemos que esperar ser liberado para as locadoras, e, mais ainda, aparecer na única locadora da malfadada “Princesinha do Norte” que aloca às vezes tais cinemas… Assistimos.
Como ocorre desde aquele Roger e Eu no ‘finzinho’ da década de 1980, a primeira coisa que chama a atenção nos documentários de Moore é a presença do cineasta como um dos personagens principais. “Personagem”? Sim, pois como ele mesmo disse a respeito de Fahrenheit 11 de Setembro, “a não-ficção também pode ser uma forma de escrever para cinema, tal como a ficção”.
E não é só nesse sentido que os documentários de Moore são inovações cinematográficas. Moore não só se torna personagem, como parece levar adiante o enunciado de Dante Alighieri, que diz que “os lugares mais quentes do inferno estão reservados para aqueles que em época de grande crise moral se mantiveram na neutralidade”. Ou talvez atualize aquela questão lênin colocada n’O Vento do Leste por Godard e Gorin: Que fazer para realizar um cinema que escape à montagem imagem/som dominante? Moore toma partido. Não fica preso à chamada imparcialidade documental do documentário. Muito menos faz cinema para quem quer entretenimento reto ou confirmação moral do status quo. Também não reduz a sua linguagem a mero aprofundamento dos noticiários de televisão. Pode-se ver isso em todos os seus cinemas. Por exemplo, Tiros em Columbine, no qual ele leva adiante outras questões para além dos assassinatos cometidos por adolescentes em Columbine, como a facilidade de se conseguir armas de fogo nos Estados Unidos, que tem como ponto alto o encontro de Moore com o garoto-propaganda de armas, o já octogenário Charlton Heston. É um embate no plano existencial e no plano estético. As perguntas de Moore, mais do que desmascarar os sentimentos petrificados nazistas de Heston, mostram que este é na verdade um produto hollywoodiano explosivo e perigoso, formador de subjetividades embrutecidas e potencialmente assassinas. Hiperrealidade.
A essa forma de fazer cinema-documentário de Moore chamaremos aqui neste bloguinho de dokinema para diferenciá-lo dos documentários tradicionais. Assim como em Godard não há separação entre cinema e documentário, em Moore não há separação entre documentário e cinema. Não há separação entre estética e existência.
O dokinema de Michael Moore
Em Capitalismo, a partir da crise financeira e imobiliária dos Estados Unidos, Moore aproveita para aprofundar as verdadeiras causas da crise, ou das crises, assim como fazer uma avaliação da política e da subjetividade norte-americana, não apenas no plano do sentido (significado), mas também no das imagens (significante), fundindo as cenas filmadas por ele com filmes, discursos presidenciais e outros registros da “vida americana”. E vai além…
Para não deixar dúvidas quanto à ironia do subtítulo, logo no início um ator esclarece que Capitalismo não é para pessoas sensíveis e sugere para que estas saiam do cinema. Logo em seguida vem as imagens de assalto a um banco filmadas por câmeras de segurança, que instauram logo a questão brechtiana: “Qual a diferença entre fundar um banco e roubar um banco?”
Como tudo que aparece como novo, há uma tentativa extremada de rotular Moore. Alguns autores comunistas chamam-no de liberal; enquanto outros, liberais, chamam-no de comunista ou mesmo de anarquista.
Os liberais não o aceitam como liberal, uma vez que ele parece arremeter sozinho contra a Goldman Sachs ou o Citybank, por exemplo, assim como fez contra Bush; mas não de forma individualizada liberal, mas justamente contra os valores defendidos pelos liberais e neoliberais. Moore vai como uma potência ativa de resistência e revolução.
Já alguns comunistas não o aceitam como comunista porque não está filiado a um partido ou não desfralda abertamente a bandeira de grupos comunistas. Outra questão é que ele, assim como fazem Toni Negri e Michael Hardt, funda sua posição em autores não necessariamente comunistas ou revolucionários, principalmente vozes discordantes; no caso de Moore, entre economistas e mesmo pessoas que lucram dentro dos crimes capitalistas, como o rico corretor de imóveis que explora as desapropriações e especialistas de Wall Street.
Por falar em Negri e Hardt, Moore diferencia sua análise da perspectiva revolucionária tradicional ao perceber nos Estados Unidos não um polo imperialista dominante, mas as características de centro nervoso imperial, principalmente o Império Romano, observando logo nas primeiras imagens como ele se constitui e como entra em colapso. Ele intercala para isso não tanto, ou não apenas, o discurso, mas as imagens dos tiranos romanos com os magnatas modernos, dos escravos romanos com trabalhadores assalariados e do pão e circo aos cassinos de Las Vegas e o vale-tudo.
A partir daí a questão fundamental do cinema é colocada: como será julgado no futuro o Capitalismo americano? Pela antropomorfização besteirol fantasiosa de um desenho animado onde um gato puxa uma descarga ou pela tensão real de uma família na Carolina do Norte que vê inúmeras viaturas chegando, sendo a casa invadida brutalmente, a família covardemente despejada e a casa selada friamente.
Há durante todo o cinema, que não segue uma estrutura linear, inúmeras facetas da violentação capitalística, que vão desde a internação em centros de reabilitação de crianças e adolescentes para enriquecer juízes corruptos, passando pela situação perigosa que faz com que pilotos de aviação nos Estados Unidos venham a ter um segundo emprego – garçonete ou podador de cães, por exemplo –, até os seguros de vida secretos que empresas e bancos americanos fazem de seus funcionários, sem autorização e conhecimento destes. Como diz Juraildes da Cruz na música Desatando nó, “no capitalismo quem tem água nos olhos quando vai no enterro se não lhe pagar não chora”. Neste caso, não chora e ainda ri-se por ganhar com isso.
Mas tais demonstrações não ocorrem para apelar-se “para a filantropia dos corações e bolsos burgueses”, como diriam Marx e Engels sobre os objetivos dos comunistas utópicos. Também não tenta inculpar a classe média por ter acreditado e creditado o “sonho americano”. Ao contrário, quando alguns governantes, como Roosevelt e Jimmy Carter, a despeito de conhecidas incongruências de suas gestões, já haviam alertado para sua falácia, é que o sentido de “sonho americano” é catexizado, justamente quando não existe mais sequer sua poeira onírica. 4 de novembro de 1980. O dia em que o cowboy Ronald Reagan salta da tela diretamente para a cadeira presidencial americana. Washington passa a ser uma superprodução de Wall Street. Para além do monopólio e da oligarquia, funda-se a plutocracia (“governo dos ricos”).
Mas não são apenas as ligações espúrias do Senado com os bancos hipotecários, tampouco o Departamento do Tesouro como uma divisão de Wall Street, completamente preenchido pela Goldman Sachs. Auxiliando a obnubilação pela hiperrealidade hollywoodiana, há uma linguagem despótica incompreensível criada para não ter sentido, que são os chamados “derivativos” que operam nas maiores bolsas de valores do mundo, e que nem seus criadores conseguem explicar de forma lógica e racional.

Neste “cassino louco” das bolsas de valores e dos bancos de investimento, aquele que foi presidente do Federal Reserve (FED), o banco central americano, por 18 anos, Alan Greespan, aproveitou para comandar o jogo, dizendo para que as pessoas investissem no valor de sua casa; ou seja, que a hipotecassem. Todos os americanos se tornam jogadores em uma mesa viciada. Greenspan já é há muito conhecido deste bloguinho intempestivo por ter dito que a crise faz parte da natureza humana. Humano Demasiado Humano!
Neste momento, Moore dá uma aula de roteiro cinematográfico. Ele traz novamente uma família do início da película, que se coloca agora numa situação abjeta de receber um cheque para promover seu próprio despejo. Assim, na sua fabricação contínua de crises, onicrises, no enunciado de Deleuze e Guattari, o sistema capitalista vai criando seus próprios coveiros, como afirmavam Marx e Engels, ou seus próprios abutres, no dizer mooreano. É uma situação limite. Enquanto no Imperialismo o trabalhador era alienado, no Império ele desaparece. Uma questão lênin: Que fazer? Ou se pega uma arma e arremete paranoicamente contra os outros, como ocorreu ontem mais uma vez nos Estados Unidos, ou se engaja num processual revolucionário de transformação do mundo. Michael Moore pega sua câmera e se coloca a tarefa de eliminar o sistema capitalista.
O manifesto democrático de um cidadão-cineasta
Em apenas um momento Moore refere-se ao socialismo, quando conversa com um senador socialista, que lhe explica o que é o socialismo, e ele diz alguma frase em concordância. Seu movimento, no entanto, é para criar outra coisa que não o capitalismo. Mas não há utopia em Moore, ele é todo movimento intensivo e real. A ambiguidade do subtítulo – uma história de amor – remete diretamente como paródia das historietas de amor dos filmes americanos. Além disso, as fantasias de uma história de amor não permitem uma relação real e acabam de forma desastrosa e estúpida qualquer relacionamento. Mas o subtítulo pode ser visto também a partir do profundo amor que Moore nutre por seus personagens – todos nós! – nesse planeta errante.
Após acompanhar as pessoas em situações abjetas e humilhantes, o cineasta acompanha incansavelmente greves de ocupação em fábricas, a solidariedade de donas de casas com os grevistas, protestos de movimentos sociais contra os mega bancos, pessoas e entidades que se lançam na luta contra os despejos, deputados que denunciam os crimes do sistema financeiro e pregam a desobediência civil às violentações impostas por um governo sem métodos e sem regras… Moore também apresenta várias formas de organizações alternativas, como fábricas pertencentes a uma coletividade de operários, agricultura comunitária e até bancos alternativos… (Aqui, comunistas que criticam a chamada autogestão – palavra que surge após o Maio de 68 na França – como sendo ainda uma forma capitalista, devem observar que elas apontam ao menos para uma possibilidade quando no Estado foi dado um “Golpe de Estado financeiro”.)
Politicamente, Moore vê como um ponto de convergência de todas essas lutas a eleição de Barack Obama… Mas não vê isso como o ponto final, mas na necessidade de que todos percebam não apenas suas questões individuais, mas o mal – mal não no sentido moral maniqueísta, mas mais no sentido de moléstia, de doença – maior e causador de todas as sequelas: o Capitalismo. O Capitalismo que suplantou o idealismo da Constituição norte-americana com o hedonismo brutal – embora com luvas de pelica – da “livre iniciativa”.
Já que, para além da dominação imperialista, o Império age no plano da biopolítica, individualizando a todos a partir da planificação subjetiva, Moore percebe que é preciso romper as grades do egocentrismo. É por isso que Moore é chamado de manipulador, porque não acredita na defesa dos individualismos, no “eu” psicológico burguês, e se lança ao Outro como resistência e criação. É aí que começa realmente o papel do personagem Moore. Se Reagan salta da tela para fundar a hiperrealidade, Moore percebe que é preciso lutar lá onde a luta se trava. Na tela. Se o Capitalismo individualizou a todos, e isso ocorre a partir da desrealização do Mundo, Moore se lança ao dokinema para realizar a Imagem-Mundo. Talvez Moore tenha percebido o papel de seu dokinema quando um xerife decide não despejar uma família devido às câmeras. O que pode uma câmera transformada em máquina de guerra (Deleuze e Guattari)? Alguém pode objetar que é pouco, já que a família foi despejada no dia seguinte. Não é pouco. Sabe o que é um sistema, com toda a sua insensibilidade, toda a sua truculência, toda a sua arrogância ter que recuar um dia por causa de que ali está um Michael Moore com a sua câmera?
É talvez essa cena que vai dar origem aquela outra cena do carro forte que falamos no início desse texto. Não só nos opomos à visão daquele crítico – e todo crítico é um artista frustrado! – como acreditamos que a supracitada cena é, na verdade, uma das maiores desse cinema de Moore. De quantos analisam há um ano o Capitalismo no Brasil, ninguém observou que a cena toda – que ocorre com uma versão em inglês da música socialista, a Internacional, cantada por Tony Babino – é uma sátira aos típicos heróis brutamontes hollywoodianos. Mas Moore está mais para um Dom Quixote ou um Brancaleone… Mas Moore não está com a cabeça refestelada de aventuras western. (Perdoe-nos a forçação comparativa, Amadis de Gaula!) Moore brinca, brechtianiza farsescamente, arruinando a moral e a empáfia dos homens mais ricos da América das Américas.
“É uma história de crime, mas é também uma história de guerra sobre a luta de classes”. Assim fala Moore sobre Capitalismo. Podemos dizer que Moore atualiza a questão de Dziga Vertov, que chega até ele a partir de Godard – e não é à toa que no mesmo ano passado Godard lançou o seu Film Socialisme, o qual também ainda não chegou em Manô, mas vai chegar aqui no bloguinho… -, de que o cinema deve ser sincrônico com a luta de classes. E embora o Capitalismo de Moore apresente questões localizadas, elas estão em todo o mundo globalizado (como todos sabemos, a crise forjada pelo sistema financeiro norte-americano só chegou ao Brasil uma marolinha devido à pujança do governo Lula). Mas Moore não é nacionalista, ele se lança à “construção de uma luta comum contra o poder imperial” (Negri e Hardt).
Moore diz também sobre o Capitalismo: “Fiz esse filme como se fosse o último filme que eu estaria autorizado a fazer.” Foi nele onde Moore elevou ao máximo sua técnica e entendimentos cinematográficos. Se nos outros, embora às vezes questões amplas fossem abordadas, como no Fahrenheit, elas eram mais específicas. Aqui é todo um sistema que é colocado sob suspeição e ataque. E se esse sistema é um Império, é preciso miná-lo por todos as fissuras. É preciso fazer fissuras. É esse o convite de Moore no final. Não é nenhuma revolução bolchevique. Mas é. Michael Moore encontra o WikiLeaks, encontra a blogosfera, e encontra todos que inventam todos os dias lutas para afirmar um outro mundo possível. E Moore não é nenhum burguês a “servir de língua”, para usar a expressão de Cervantes, para o operariado. Ao contrário, ele se põe na luta, tornando-se o que podemos chamar doravante de cineasta-cidadão. O que Moore demonstra é que não existe heroísmo individual, pois a luta é sempre coletiva, sempre comum. Comunismo. A revolução de Cantona, ex-jogador de futebol, na França, contra os bancos não causaria medo nenhum aos banqueiros, mas acontece que em poucas horas milhares de pessoas afirmaram que também retirariam seu dinheiro dos bancos. Precisamos nos unir a Moore. Se a bilheteria de Capitalismo foi pequena e sua difusão dificultada, precisamos levá-lo a escolas, fazer sessões em ruas, sindicatos, igrejas, associações comunitárias…
No prefácio da edição italiana do Manifesto Comunista, Engels diz que “o fim da Idade Média feudal e o início da era capitalista moderna são marcados por uma figura gigantesca: a de um italiano, Dante, que foi ao mesmo tempo o último poeta da Idade Média e o primeiro poeta moderno”. Um dia, quando os eventos que estão ocorrendo agora estiverem cristalizados como passado, Michael Moore será conhecido como um dos personagens que, a partir da revolução cinematográfica, lutou para eliminar o capitalismo e afirmar a democracia. E por democracia compreendemos o comunismo, o socialismo. Democracia e capitalismo são antagônicos. O capitalismo só existe soterrando a democracia.
O dokinema Capitalismo – Uma história de amor, do cineasta-cidadão Michael Moore, é, em sua totalidade, um formidável manifesto democrático.
Leitores Intempestivos