As apresentações de Caetano Velosos e Gilberto Gil em Israel continuam em questão. São inúmeros manifestantes no mundo que pedem para que a dupla reconsidere suas posições, e para isso mostram a perversidade, conhecida em todo mundo, que o Estado autoritário militarista de Israel vem impondo ao povo da Palestina. Além dos constantes bombardeiros, crianças, jovens, idosos e civis vêm sendo assassinados continuamente. Mas os dois estão resolutos e tentam apresentar argumentos, talvez nem tanto para convencer os que lhes pedem para desistir das apresentações, mas para eles se autoconvencerem.
O ex-líder do Pink Floyd Roger Waters, lhe enviou duas cartas tratando sobre o tema. Na primeira, ele realizava o pedido, na segunda ele respondeu o que Caetano argumentou para sua decisão. Caetano, que é tido, por si, e por alguns, mais do que é, para sustentar seu argumento usou uma afirmação muito distante da verdade. Ele afirmou que os filósofos franceses “Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir morreram pró-Israel”. E Roger Waters acreditou e respondeu afirmando que “até pode ser, mas isso foi naquele tempo, talvez à época eles não soubessem ou não compreendessem a brutalidade da ocupação da terra palestina”. Sartre é de 1905 e 1980. Simone de 1908 e 1986.
Em sua afirmação Caetano comete dois grandes erros. O primeiro é afirmar que os dois “morreram pró-Israel”. Não morreram, porque ninguém morre por ninguém. Cada mortal morre em si mesmo, como diz Sartre, em situação promovida por sua liberdade de ser humano. Nem Cristo, que era um revolucionário, morreu por nós, como inventou Paulo, para deixar Cristo pregado na cruz para com isso prender os incautos e propagar, pela culpa, a submissão dos fiéis. Segundo Sartre e Simone tinham, como existencialistas, como fundamento da existência a liberdade do homem. A escolha autêntica ou inautêntica ontológica do homem. O homem como existência que precede a essência. A existência autêntica é aquela que se escolheu em liberdade pelo homem. A existência inautêntica é aquela que se escolheu como malogro, má-fé, mentira, subterfúgios, fugas, medos, covardias como a existência burguesa.
Caetano cometeu o segundo erro porque não tem conhecimento da filosofia de Sartre e dos engajamentos pela liberdade dos povos juntamente com sua companheira necessária, Simone de Beauvoir. O povo é devir e como devir antecede o Estado que com sua máquina abstrata de sobrecodificação captura o povo transformando em segmentaridade dura – estratos, epistratos e paraestratos – através de corpos territorializantes distribuídos em instituições que formam e estabelecem comportamentos. O Estado é um poder de comando.
Como Caetano não estudou a filosofia de Sartre não sabe que ele, na década de 40, escreveu uma obra chamada Reflexões Sobre O Racismo – I Reflexões Sobre a Questão Judaica. II Orfeu Negro. Na segunda reflexão Sartre trata do racismo contra os negros no mundo e sua condição oprimida diante do branco colonizador. Na primeira reflexão, que interessa para o tema em conta, ele examina, analisa, critica e mostra sua posição contra a condição fascista dos antissemitas. Sartre trata do povo e não do Estado. “O antissemitismo é uma livre e total escolha de si mesmo, uma atitude global que alguém adota não só em face dos judeus, como ainda dos homens em geral, da história e da sociedade; é, a um só tempo, uma paixão e uma concepção do mundo. Se trata de uma afecção de ódio e de cólera”, escreve Sartre. Em tempo: cabe bem aos fascistas que atacam o governo Dilma e o PT. E continua Sartre. “Todo antissemita é, portanto, numa medida variável, o inimigo dos poderes regulares; deseja ser membro disciplinado de um grupo indisciplinado; adora a ordem, porém a ordem social”. O antissemita escolheu o judeu como o mal que deve ser aniquilado para estabelecer a harmonia, fascista paranoica.
E Sartre se mostra psicanalista existencialista – escreveu em sua obra inigualável O Ser E O Nada, um tomo com o título A Psicanálise Existencial – ao afirmar que “um dos seus componentes de seu ódio é uma atração profunda e sexual pelos judeus. Trata-se, antes de tudo, de uma curiosidade fascinada pelo Mal, que procede principalmente, creio eu, do sadismo”. Mas, Sartre, apresenta um convincente conceito do que é ser antissemita que serve para todas as formas nazifascistas, como as que ocorrem hoje no Brasil. “O antissemita é um homem que tem medo. Não dos judeus, certamente: de si próprio, de sua consciência, de sua liberdade, de seus instintos, de suas responsabilidades, da solidão, da modificação, da sociedade e do mundo, de tudo, salvo dos judeus. É um covarde que não quer confessar sua covardia; um assassino que recalca e censura sua tendência ao homicídio sem poder refreá-la e eu, no entanto, só ousa matar em esfinge ou no anonimato de uma multidão; um descontente que não se atreve a revoltar-se por receio das consequências da sua revolta. (…) O antissemitismo, em suma, é o medo diante da condição humana. O antissemita é o homem que deseja ser rochedo implacável, torrente furiosa, raio devastador: tudo menos homem”.
Esses breves enunciados tratam exclusivamente do povo judeu perseguido pelo antissemitismo mundial. Não trata de uma defesa do Estado de Israel como afirmou Caetano. Sartre, como filósofo da liberdade do homem, jamais poderia ter reduzido a sua luta em defesa de um só povo preterindo um outro povo. Que mostrem o povo argelino, o povo cubano, o povo russo e a até o povo brasileiro, porque não foi por turismo que veio ao Brasil em 1961. Sartre, já na década de 70, sabia que o Estado de Israel estava militarizando e tomando decisões contrárias a liberdade do povo palestino. Mas Roger Waters acreditou em Caetano também por não estudar Sartre.
O que os dois não sabem é que em 1967, Sartre e Simone, em suas muitas viagens pelo mundo sempre em condição de convidados políticos, visitaram o Cairo que fazia uma experiência socialista tendo como chefe Nasser, com quem Sartre conversou por mais de três horas. E visitou a Faixa de Gaza, que no tempo não mostrava as atrocidades de hoje promovida pelo Estado Militar de Israel. Em seguida, os dois filósofos, a convite de membros de partidos e movimentos esquerdistas, visitaram Israel, onde foram recebidos de forma acalorado por dois motivos. Um a importância internacional de Sartre, e outro pelo livro que escrevera contra o antissemitismo. Motivo que levou os israelenses a o chamarem de semitósofo. Nessa visita Sartre conversou uma hora e quinze minutos com o chefe do Estado de Israel. Visitaram também a experiência socialista dos Kibutzs, comunidades onde, principalmente as crianças tinham uma educação verdadeiramente socialista. Resultado: Sartre de manteve neutro na questão de Israel e Palestina, afirmando que havia viajado para aprender e não ensinar.
O argumento de que Caetano é profundamente insustentável, porque ele não está entendendo a passagem de um Estado totalitário para um Estado fascista, como nós mostram os filósofos Deleuze e Guattari com o conceito de máquina de guerra. Uma máquina de guerra é um agenciamento de desejos que processa novas formas de existências fazendo com que corpos capturados por sobrecodificações molares, pontos paranoicos, buracos negros, através das linhas de fugas moleculares se manifestem em suas intensidades mutantes e desterritorializantes.
O que significa que um Estado totalitário, embora seja um corpo opressor, ele ainda mantém vizinhança, mesmo sem querer, com a máquina de guerra. Todavia, quando a máquina de guerra se transforma em máquina de guerra de destruição acaba o Estado totalitário para se manifestar paranoicamente uma máquina de destruição contra a vida. É o Estado fascista. É o Estado militar de Israel como poder paranoico contra o povo palestino. Uma máquina de guerra de destruição da vida palestina. Daí que tudo que Sartre afirmou sobre a patologia dos antissemitas cabe bem ao Estado militar de Israel.
E o grande perigo de uma máquina de guerra fascista de destruição, como mostram os filósofos Deleuze e Guattari, é que ela não se satisfaz em matar apenas os que ela considera como inimigos. Ela deseja o fim de tudo, como mostraram os nazistas quando se viram derrotados. Destruir cidades, pontes, museus, laboratórios, poluir água, destruição total. Não importa que nós morramos, contanto que eles morram também. Como diz Sartre o fascista não quer o humano. Ele quer é a morte.
Embora Roger Waters tenha sido iludido por Caetano, o que ele quer juntamente com a comunidade anti-nazifascista é a liberdade e o direito do povo palestino e não a condenação do povo judeu. Waters compreende a diferença entre povo e Estado fascista, mas Caetano confunde e ainda quer implicar Sartre e Simone de Beauvoir. Coisa de Caetano.
Leitores Intempestivos