Muitos equívocos os homens cometem seduzidos pelos signos lingüísticos. Tomam os enunciados pelo objeto, crendo ter alcançado seus corpos perceptivo ou intelectivo. Forjam existências, crentes em uma realidade irrefutável. Por elas lutam e morrem, mas nunca suspeitam do imaginativo/lingüístico. Definem-se como identidade inalterável. A identidade sem experiência do real que enunciam. Assim, definiram-se esquerda. Uma definição sem atuação. Não se é apanhado em uma experiência transformadora, mas por uma superstição lingüística. Brada-se: “Sou da esquerda!”. Nos últimos estertores da ditadura, aqui em Manaus, aconteceu muito disso. Muitos esquerdas resíduos castradores familiais. Ódio/amor pai/pastor/mãe complacente/marimacho projetados aleatoriamente. Como diria o filósofo Deleuze: muitos falsos drogados, falsos esquizofrênicos, falsos rebeldes escritores, atores, pintores…, tudo sem exame do real. A maior parte emergidos no fim de 70, quando ninguém era mais preso, e 80, menos ainda. Hoje, estabelecidos, continuam não suspeitando de sua esquerda. Não pensa direita e esquerda com Deleuze como percepção/ponto. A direita como um cartão postal. Parte de casa, chega a rua, o bairro, a cidade, o país, o mundo. Se tudo corre bem para si, lutará para assim permanecer: em sua casa cartão postal. A esquerda percebe no ponto/ horizonte. Caminha do distante periférico para a casa. Primeiro pensa o mundo fora. Lá no ponto/horizonte onde as políticas não chegaram. Lá onde não há vaidade e segurança burguesa, o que é próprio da direita. Muitos desses esquerdas são deleuzianamente direita. Eis porque é impossível as transformações pensadas por Marx acontecerem por aqui. Aqui brincou-se e brinca-se de esquerda. Até governantes direitas gostam de brincar de esquerda.
Pois bem, a razão deste esquerdismo enunciatório, deve-se ao comentário enviado a este bloguinho intempestivo pela filósofa, educadora e amiga Humsilka Amorim. Em seu comentário ela trata de um texto publicado por nós em maio com o título Parla! Parla! Lamento, onde examinamos os juízos do deputado estadual Eron Bezerra (PCdoB-AM), sobre os pronunciamentos do deputado federal Francisco Praciano (PT-AM) quanto à adesão do comunista ao governo de Eduardo Braga, um direita apresentado pelos direitas Amazonino e Gilberto Mestrinho, ex-governadores, e sua afirmação de ser o criador da esquerda no Amazonas. A filósofa, em seu comentário, rebate a afirmação do comunista e lista os nomes, para ela, atuantes na construção da esquerda amazonense. Para que nossos amigos blogueiros, principalmente os que ainda não leram, fiquem inteirados do texto, republicamos no afinsophia.blog.com e publicamos no afinsophia.wordpress.com. Assim como também o texto da filósofa…
Nietzsche diz que as ações dos homens são valorações apresentadas de duas formas: adotadas e refletidas. As primeiras, em maior quantidade, são transportadas na infância e conservadas na vida adulta. Negação do atual. A segunda, bem menor, é atualizada racionalmente na vida adulta. Embora ambas sejam antagônicas, nas práticas sociais elas se confundem e são confundidas. A filosofia apresenta exemplos concretos. O filósofo alemão Heidegger, ao ser questionado por sua participação como reitor no governo nazista de Hitler, se defendeu dizendo que cometera um erro. O filósofo francês Sartre, percebendo a armadilha lingüística/moral, defendeu-o, afirmando que o alemão cometera um equívoco. Erro e equívoco. O erro apresenta-se como efeito resultante de uma idéia adotada como única verdade possível em um território temporal. Uma estreiteza do pensamento. O equívoco, uma escolha variante em uma multiplicidade de idéias transportadoras de elementos virtuais imprevisíveis cuja atualização/futurante depende do entrelaçamento das variações das potências. No primeiro caso, a não realização apresenta um julgamento moral: sou culpado. No segundo, um convite a novos movimentos por outros territórios: idéias. Não há culpa. Há sempre um pensamento livre construtor. Pois bem (sem ser um bem), a ‘parla’ dos dois parlamentares, o camarada Eronildo Bezerra e o companheiro Francisco Praciano, no nosso humilde e restrito entendimento de manaura, é mais um lamento que fala dado o emaranhado de erros (auto-produzidos), em maior quantidade, e equívocos (menos importantes a ambos).
O camarada afirma — em cores sem o riso tese de Lênin, como via o filósofo Althusser e o humor de Marx que pertubava a burguesia — que construiu a esquerda do Amazonas pedra por pedra, tijolo por tijolo (cabe Chico Buarque: “Tijolo por tijolo num desenho lógico”. A lógica, uma criação do homem para tranqüilizar a consciência de quem teme o intempestivo). E os outros companheiros? Ricardo Parente, Sardinha, Rui Brito, Humsilka… Robinson Crusoe, solitário na ilha, cria seus objetos materiais tendo como referência sua memória-social, resultante de sua vivência coletiva. Mesmo a idéia de homem refletida em seu ‘caso’ Sexta-feira, se atualiza como coletiva. Confirma a história construída pelas forças sociais nos propósitos de Marx. O Eremita, solitário na floresta, diz ao Zaratustra de Nietzsche, que se recolheu por não suportar mais os homens. Todavia, continua pensando coletivo. Nada está posto só. Nenhum homem constrói sozinho. Mesmo ficção. O feito sozinho carrega a ilusão do Mito do Herói. Enunciação hercúlea. Um homem temeroso e esperançoso, diria o filósofo Spinoza. Nos mostram os norte-americanos: Homem-Aranha, 3000… Cristo, real e não metafísico, renegou. Desespero dos judeus. Poucos entendem. Em suas teses sobre Feuerbach, Marx, afirma que “o ser humano não é uma abstração inerente ao indivíduo isolado. Na sua realidade, o conjunto das relações sociais”. Marxistamente, infere-se que a propalada esquerda é uma mistificação.
A MORTE RONDA
O camarada lembra do perigo dos contestadores serem mortos. A última prisão no Brasil aconteceu em fins da década de 70: em Recife o ativista cristão Cajá. De lá para cá ficou por conta da nostálgica heroicidade. A truculência havia arrefecido lenta e gradualmente. Mesmo com os aparelhos de segurança ainda em função. Coisa que nenhum estado abdica. E a maior parte dos homens, também. Entretanto, sejamos justos com a prisão do ator Greco, comemorada entusiasticamente depois de uma manifestação pela Amazônia na praça da matriz. Fim de 70 e começo de 80, ser preso era a glória. Correr da força policial local e se esconder no ICHL, entre a Major Gabriel e Emílio Moreira, era o bicho. Metamorfoseia-se até em fato histórico das lutas populares em livro didático. As passeatas consentidas, clamando, historicamente, ao já anêmico refrão (que afirmasse Vandré): “Quem sabe faz a hora…”. O revolucionário chavão: “O povo unido jamais será vencido!”. Se a repressa ainda tivesse força para prender, torturar, e matar teria feito. Nada segura a irracionalidade. Nem herói. A subjetividade era outra. Lembremos João Batista de Figueiredo. Mesmo pedindo que o esquecesse. Nos parece que o camarada toma sua história como uma moralidade própria para comparar como superioridade sobre outras. Como um status de engajamento esquerdista chega a dar ordem ao companheiro para que ele deixe o PT, lembrando o tempo da ditadura com o seu: “Brasil, ame-o ou deixe-o!”. Ingenuidade duas vezes: a história de um homem só diz a ele: não serve para comparação com outras — são suas partículas corporais e incorporais que o conduzem ao ser social. As comparações de currículos nos remete ao patriarcalismo-fálico freudiano, com sua teoria da rivalidade genital em grande parte dos homens: todo homem é meu rival sexual. Por fim, tudo que aconteceu com um homem, como afirma Sartre, está tematizado. Não conta mais. O que conta são suas atualizações nos movimentos intensivos presente/futuro.
FRAGMENTAÇÃO DO MATERIALISMO
Se no caso não contar, contemos, pois, sobre o argumento crítico do camarada para defender sua participação e de seu partido no governo estadual (municipal também), com o camarada Lênin, em seu artigo de 1901, Por Onde Começar, quando se refere a situação semelhante dos comunistas amazonenses como “praticismo estreito”. Ou quando, em Que Fazer?, se opõe à crítica socialista daquele momento muito parecida com a hodierna: “Aqueles que não fecham os olhos, deliberadamente, não podem deixar de ver que a nova tendência “critica” no socialismo nada mais é que uma nova variedade do oportunismo”. Nos parece saltar do argumento um empirocriticismo e um neokantismo: puro Idealismo. Mistificação teocrática. Nada de Materialismo Histórico e Materialismo Dialético. Se Marx diz na Ideologia Alemã que “as circunstâncias moldam os homens, do mesmo modo que os homens moldam as circunstância”, até onde poderemos acreditar que os comunistas amazonenses moldarão o governo que servem sem o materialismo? Se mostrarão, no poder,os problemas que a direita procura sempre esconder(Deleuze). Ainda mais quando o camarada promete falar sobre o governo no devido tempo.
DA IGUALDADE CAMARADA E COMPANHEIRO
A igualdade não existe, mas como abstração, sim. Portanto… O camarada e o companheiro em dois momentos se mostram iguais. I–Momento: Quando falam de esquerda tomam como posição o conceito topos-anatômico-realeza: a esquerda do Rei. Não percebem que a esquerda faz parte do corpo possuidor da direita. Conjunção de partes-totalidade: a esquerda está ligada à direita. Faz até carinho. Unidade corporal. Daí a confusão: O que é esquerda? O que é direita? Não tomam o conceito do filósofo Deleuze, para quem esquerda é uma questão de percepção horizontal: o que encontra-se distante de mim. O que me compromete com o Outro em uma linha periférica, me obrigando ao contínuo movimento deviriano como potência de ser. Direita, a territorialidade imóvel: o que está em mim sem o Outro. Minha alienação. Meu Em-Si: nada me escapa, nada me sopra. Os meus quereres: prepotência, ambição, vaidade, egolatria, preconceito, reacionarismo, reconhecimento, capachismo, subserviência arrivista…
Fixado no conceito topos-anatômico-realeza, o companheiro afirma que as esquerdas estão ganhando espaço no Amazonas. Temos deputado, senador… A eleição de alguém está ligada à opinião valorativa do eleitor. O eleito foi Alfredo, não João Pedro. Como se diz: ele está senador por cortesia da lei eleitoral. Mas se dissermos que o ministro Alfredo é esquerda? Bem, aí o senador João Pedro é esquerda expansiva. Se um corpo rígido e o Manifesto Comunista no sovaco não faz o esquerda, pelo menos uma enunciação faz. II-Momento: Quando conceituam o talento de Márcio Souza. Em homenagem na Assembléia ao ex-membro do governo Fernando Henrique, o camarada considera sua literatura simples, fácil, de bom agrado. Inteligente. Se acredita analista literário por ser um privilegiado: ter lido mais de mil livros. Não se lê um livro, nem mil. Um livro é um devir-afeto não quantificado. Escapa como intensidade indivisível. Quando quantificado é um conglomerado de enunciados sobrecodificados do discurso da semiótica dominante. Envolvido em seus conceitos reconhecedores, não percebe que um escritor, como fala Foucault, escreve para perder o rosto. Não para ser reconhecido. Se perder nas hecceidades intempestivas, impessoais, nas zonas de indiscernibilidade. O que transforma o mundo. Ou Deleuze: “Todo escritor é uma sombra… Não pode haver narcisismo de uma sombra”. A melancolia do ritual acadêmico e as lágrimas do acadêmico ritualizado imortal. O rosto é do burguês. Um significante ecolálico. Uma vaidade capitalista. Uma estratégia de pôr o já posto. Vide: Paulo Coelho. Falar das massas, só com romantismo europeu. Nada de corte. Nada de ruptura. Só a glória desnarcisada. Lawrence, Beckett, Kafka não tinham rosto: não eram escritores. O companheiro, ufanista, pede que a Câmara Municipal outorgue um prêmio ao talentoso ajuricabano, por seu sucesso na Globo. Petistas enciumados protestam. Mas o companheiro tem razão: um escritor rostificado é para TV. Território nobre da dolência existencial. Ponto central das celebridades do Show voyeur do espectro possessão da mente. A crueldade inútil, para o cineasta Rossellini.
No mais, observando de longe nossas esquerdas diáfanas, respeitamos o que elas tomam como suas posições, pois compactuamos com Brecht: Todo homem se sente melhor em sua própria pele.
O TEXTO DA FILÓSOFA
Camaradas e companheiros que construiram a esquerda em Manaus através do movimento estudantil nuniversitário e secundarista: Francisco Wilmar (Autor de 3 Manifestos Socialitas, visando combater a ditadura militar e fazer a revolução), Jorge e Ivanete Machado (atuação política no sindicato dos jornalistas e no CREA/Arquitetura-Secretaria de Estado, que fez o projeto da nova Ponta Negra), Lilian Farias e Cristina Tolentino (titulares na EBN e Faculdade de Medicina-Diretório Acadêmico), Nestor Nascimento (líder do MOAM-Movimento Alma Negra), Guto Rodrigues e Orlando Farias (atuação no sindicato dos bancários e dos jornalistas), Laerte Aguiar (advocacia e magistério), Humsilka Amorim (Voz da Unidade e Dirigente do Comitê do PCB/Amazonas), Lúcia Cordeiro (atuação no sindicato dos jornalistas).
Outros: Nonato Pereira, Luiza Garnelo, Xisto, Ana, Dayse.
Secundaristas: Marivon, Marinelson, Pai da Mata, Carril, Pinto, Mara…
Companheiros: Marco Aurélio, Luis Marreiro, Marcos José, Ricardo Parente, Maciel, Beckinha, etc…
Vale um artigo sobre a construção da esquerda em Manaus, vale incrementar uma cultura oposicionista, vale relembrar velhos amigos.
Obrigada,
Humsilka Amorim – Filósofa e Professora
Leitores Intempestivos