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“AGRADEÇA AOS AGROTÓXICOS POR ESTAR VIVO” — O QUE ESTÁ POR TRÁS DO LIVRO.

NESTA SEMANA o Congresso em Foco revelou que Luiz Nishimori (PR – PR), relator do PL do Veneno, é dono de duas empresas que comercializam agrotóxicos. Confrontado com o flagrante conflito de interesses, Nishimori desconversou: “Minha vida pessoal não tem nada a ver com a atuação parlamentar”. Esse mesmo nível de desfaçatez parece estar presente entre quase todos os defensores da PL do Veneno. Quando aparece alguém defendendo com unhas e dentes o liberou-geral da nova lei, pode jogar o nome no Google que você encontrará alguma ligação com o agronegócio. É batata.

O livro “Agradeça aos Agrotóxicos por Estar Vivo”, lançado no ano passado, vem sendo ovacionado por grandes veículos de mídiacolunistasMBL e políticos ligados ao agronegócio como fruto de um trabalho jornalístico definitivo sobre o tema. Mas eles não nos contam o contexto que cerca o livro escrito pelo jornalista Nicholas Vital.

Para entender melhor, marquei uma conversa com o autor na região central de São Paulo. Antes de iniciarmos a conversa, Vital adoçou seu café com açúcar orgânico. Segundo ele, “porque é menos processado, não por causa dos agroquímicos”.

Ele é um jornalista paulistano que nasceu e cresceu na região da Avenida Paulista. Começou como jornalista esportivo na revista Placar em 2005, cobrindo futebol internacional. Em 2007, foi convidado para trabalhar na IstoÉ/Dinheiro Rural, onde trabalhou por 3 anos. “As pessoas ficam nessa ideia aí ‘o cara é lobista’. Não, eu caí nessa por acaso. Eu estava lá felizão (na Placar), trabalhava com uns caras top, até que um ex-chefe meu assumiu como editor na Dinheiro Rural/IstoÉ. Eles estavam atrás de alguém que não entendesse absolutamente nada de agronegócio, porque a revista era muito técnica e eles queria um olhar diferente. O salário era bem melhor e fui. Foi lá que eu aprendi o que é o agronegócio. Hoje eu sou um defensor do agronegócio.”

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Líderes do MBL entrevistam Nicholas Vidal.

 

(Reprodução/Youtube)

Mas Vital não é simplesmente um jornalista que cobre o agronegócio. Boa parte da sua trajetória profissional foi prestando serviços de relações públicas para o setor. Em 2011, ele foi convidado por Ibiapaba Netto, que havia sido seu chefe na IstoÉ/Dinheiro Rural, para trabalhar na Prole, uma empresa de relações públicas cujo lema é “influenciar a opinião pública é a nossa razão de ser”. Juntos, comandavam a comunicação de grandes setores do agronegócio e foram responsáveis por coordenar projetos para a Associação Nacional de Defesa Vegetal, a ANDEF — entidade que representa os produtores de agrotóxicos —,  com o objetivo de divulgar uma agenda positiva “para um dos setores mais atacados na mídia”.

Vital encara com naturalidade o serviço prestado para produtores de agrotóxicos: “Os caras tinham muita informação, mas não botavam pra fora. Nosso negócio era apurar as histórias que eles tinham, empacotar minimamente e tentar vender para a imprensa. Era um trabalho de assessoria de imprensa e relações públicas basicamente”.

Ibiapaba Netto, o ex-chefe e hoje amigo de Vital, já atuou também como representante da Associação Brasileira do Agronegócio e é autor do livro “A notícia relevante” — um guia para empresários entenderem o processo de decisão nas redações e aprimorar a relação com jornalistas. Hoje, ele é presidente da Citrus Br, a Associação Nacional dos Exportadores de Sucos Cítricos, cuja principal missão é defender os interesses dos exportadores de laranjas. Coincidência ou não, a laranja é um dos alimentos mais contaminados por agrotóxicos, segundo um levantamento da Anvisa de 2016.

Vital é muito bem relacionado no mundo empresarial dos agrotóxicos. Renato Seraphim, o presidente da Albaugh Agro Brasil —  empresa que comercializa agrotóxicos — recomendou em seu LinkedIn o livro de Vital, que agradeceu de uma maneira que sugere que a relação de ambos é frequente: “Obrigado pelo apoio de sempre, Renato. Ab!”. Seraphim tem amplo currículo no mundo dos agrotóxicos e já trabalhou para as mais importantes fabricantes como Zeneca, Syngenta e Bayer.

Vital garante que seu livro foi feito de maneira totalmente independente. “O livro teve zero financiamento. Não teve nenhum tipo de patrocínio. Eu nem quis para não ter nenhum tipo de interferência no meu trabalho. Quando eu saí da Prole, fiquei 10 meses sem trabalhar, focado no livro. Por quê? Porque eu acreditava nessa história”.

A editora que topou publicar o livro é a Record, indicada para Vital pelo jornalista Leandro Narloch. A Record é conhecida por publicar livros “liberais e conservadores”, e cujo proprietário, Carlos Andreazza, defende nas redes sociais que Donald Trump ganhe o prêmio Nobel da Paz.

Apesar de prestar serviços de comunicação para o agronegócio e vender palestras para empresas e entidades representativas do setor, Vital rechaça a ideia de que faz um trabalho de relações públicas. “Meu trabalho é de jornalista. Eu nunca liguei pra jornalista para oferecer pauta. Meu trabalho era apuração e venda de pauta. E é o que eu faço até hoje. Continuo fazendo reportagem na Plant Project. Às vezes faço branded content, mas eu não assino, só faço. Eu nunca fui RP”, afirmou, apesar de ter admitido inicialmente ter prestado esse tipo de serviço serviço para a Andef quando trabalhava na Prole.

A Plant Project é uma revista com tiragem de 10 mil exemplares. Não é vendida em bancas e é voltada para as lideranças do agronegócio. Foi fundada por um ex-diretor da IstoÉ, Luis Fernando Sá, o criador da Dinheiro Rural, onde Vital começou sua carreira no agronegócio.

Em uma de suas matérias para a Plant Project, Nicholas escreveu sobre o lobby do agronegócio — um “lobby do bem”, segundo ele —, tentando desmistificar o lobismo. Ele entrevistou Silvia Fagnani, diretora executiva do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal, uma entidade que representa 35 produtores de pesticidas e está à frente do lobby pela aprovação do PL. “Às vezes, para chocar, em tom de brincadeira, eu me apresento às pessoas como lobista da indústria de agrotóxicos. É a pior imagem que uma pessoa pode ter”, afirma ela, que defende a atividade de lobista. “A negociação que seu filho faz para comer chocolate fora de hora é lobby.”

No mês passado, Nicholas palestrou na Conferência Nacional em Defesa da Agropecuária, realizado em Salvador (BA). O evento foi patrocinado pelo governo do estado da Bahia, pelo Ministério da Agricultura, pela Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária, pela  Associação Nacional de Defesa Vegetal, entre outros. Além de Nicholas Vital, palestraram também Luiz Nishimori — o atual relator do PL do Veneno — e o ministro da Agricultura Blairo Maggi, que criou o PL em 2002.

Nos fim do livro, Nicholas faz um agradecimento pelo “apoio ao longo do projeto” a 14 “executivos”, todos eles — sem exceção — trabalham (ou já trabalharam) para as principais entidades representantes da indústria do agrotóxico.

Ilustração: The Intercept “PAI, NUNCA MAIS VOU VER VOCÊ DE NOVO” – DOIS MENINOS BRASILEIROS DESCREVEM COMO É VIVER SEPARADOS DA FAMÍLIA

NO COMEÇO DA SEMANA PASSADA, Amy Maldonado, advogada de imigração em Michigan, fez uma visita ao escritório do Centro de Crianças Heartland Alliance Internacional, em Chicago. Maldonado foi até lá se encontrar com seus clientes: dois meninos brasileiros que haviam sido separados de seus pais um mês antes pelas autoridades de fronteira dos EUA, no estado do Novo México. Os meninos, que não são parentes e têm 9 e 15 anos, chegaram ao escritório vindos de um lugar não divulgado. Por razões de segurança e privacidade, a localização exata do abrigo onde estão sendo detidos é um segredo guardado a sete chaves até mesmo de sua advogada. Maldonado só sabe que o prédio tem pelo menos quatro andares, e que, até onde conseguiu descobrir, parece ser operado de forma profissional.

Maldonado e as crianças, juntamente com um intérprete de português, escolheram uma mesa em um canto do escritório da Heartland. Ela explicou que não trabalhava para o governo, e que fazia parte de uma equipe cada vez maior de advogados atuando para tirá-los da detenção e reuni-los com seus pais, que permanecem presos a mais de mil quilômetros de distância: os meninos são autores de uma ação que contesta a separação em curso entre eles e seus pais. (Um representante do escritório da Procuradoria Federal do Distrito Norte de Illinois se recusou a comentar o caso, alegando uma política do Departamento de Justiça.) Eles são identificados nos processos por suas iniciais. O mais velho é identificado como W.S.R., e o mais novo, como C.D.A. The Intercept também não está divulgando os nomes de seus pais, a pedido dos próprios, que estão envolvidos em procedimentos delicados de pedido de asilo.

“Eu gostaria de estar com meu pai no meu aniversário, que vai ser dia 6 de julho.”

Maldonado passou duas horas com os garotos. W.S.R. se concentrou em redigir uma carta para o juiz de seu caso enquanto conversavam. Ele preencheu duas páginas com letra cursiva em português. O menino de 15 anos explicou que, depois que foram presos e levados para um centro de detenção do Departamento de Segurança Nacional [DHS, Department of Homeland Security], ele e seu pai receberam instruções para assinar um documento. Caso recusassem, ficariam separados por um período indeterminado; se assinassem, a separação duraria apenas alguns dias. “Já faz um mês desde que vi meu pai pela última vez”, ele escreveu ao juiz, acrescentando que “nunca mais” acreditaria em um agente da imigração. “Achei que seria por pouco tempo e mal me despedi do meu pai, e agora estou com muita saudade dele.” E acrescentou: “eu quero ficar com meu pai não importa onde, mas de preferência aqui.”

“Eu gostaria de estar com meu pai no meu aniversário”, ele escreveu. “Que vai ser dia 6 de julho” – hoje.

Enquanto W.S.R. se dedicava à sua carta, C.D.A., de 9 anos, se ocupava com um conjunto de giz de cera e folhas de papel. Maldonado fez algumas perguntas ao menino enquanto ele desenhava. O relato de Maldonado sobre a conversa, posteriormente protocolado em juízo, produziu algo raro: uma narrativa em primeira pessoa de uma criança arrastada pela investida de “tolerância zero” do governo Trump na fronteira.

“Não me lembro muito bem o que aconteceu quando a polícia de imigração nos pegou”, começou C.D.A., segundo a declaração que deu a Maldonado. A família passou dois dias no centro de detenção da fronteira, disse ele, o mesmo que W.S.R. havia descrito em sua carta. “Meu pai pediu para ligar para a minha mãe, e eles nos deixaram ligar”, ele lembrou. “Estava muito frio, e não tinha cama.” Ele e seu pai dormiram no chão. “As luzes ficavam acesas o tempo todo”, disse C.D.A. “Nós comemos burritos e suco de maçã. Eles às vezes nos davam água limpa, e às vezes enchíamos as garrafas vazias na torneira.”

“Eu bebi com as mãos e a água estava branca, mas eu estava com sede e bebi mesmo assim”, ele disse.

C.D.A. contou a Maldonado que seu pai havia explicado a ele que eles seriam separados. Logo em seguia, ele disse, “um policial chamou o meu nome e o do [nome de W.S.R.] e juntou outras crianças, pegou nossas coisas e me colocou em um carro de polícia e me levou para outro lugar sem o meu pai. Dentro do carro estavam uma mulher grávida e duas crianças. Também não havia camas para dormir ainda, só alguma coisa que parecia uma cama elástica. As luzes lá também ficavam acesas o tempo todo.” Sendo dois meninos brasileiros solitários em seu novo centro de detenção, C.D.A. se apegou ao mais velho W.S.R.

“Nenhum dos policiais lá falava português”, ele disse. “Eles usavam o Google Translate, os policiais digitavam e depois traduziam. Nós só comíamos macarrão lamen no almoço e no jantar, e burrito no café da manhã, ou cereal e suco de maçã. Eu pedi para ligar para a minha mãe quando cheguei lá e eles disseram que não.”

Um dia, explicou o menino, “dois policiais, um homem e uma mulher, nos levaram de ônibus para o aeroporto, e o homem disse que eles tinham roupas e comida para nos dar. Nós trocamos de roupa e ele comprou água para nós.” Na viagem, contou C.D.A., ele e W.S.R. conheceram duas outras crianças que falavam português – um menino e uma menina. “Dissemos aos policiais que queríamos tomar um banho”, ele disse. A resposta foi não. “Só tomamos banho aqui em Chicago.”

Desde que chegou a Chicago, C.D.A. diz que só falou com seu pai duas vezes. Ele pode fazer duas ligações de dez minutos para sua mãe a cada semana. “Eu quero tanto falar com a minha mãe que fiz um calendário dos dias que posso falar com ela”, ele disse. “Eu quero falar com meu pai quando fico triste”, ele acrescentou. “Eu quero estar de volta com meu pai. Eu não sei onde o meu pai está agora.”

Quando acabou de falar, C.D.A. tinha terminado três desenhos que serão incluídos no seu processo. O primeiro era o avião que ele e o pai pegaram do Brasil para Cidade do México; o segundo mostrava o carro que dirigiram; e o terceiro, ele contou a Maldonado, representava sua mãe no Brasil – uma rede presa entre duas palmeiras e um céu azul.

Desenho do avião que C.D.A. e seu pai pegaram no Brasil para chegar à Cidade do México.

Desenho do avião que C.D.A. e seu pai pegaram no Brasil para chegar à Cidade do México.

 

Imagem: C.D.A.

ALÉM DE MALDONADO, os meninos brasileiros e seus pais também são representados por advogados da Aldea – Centro Popular de Justiça, um coletivo de advogados com muitos anos de experiência em representar pais e filhos no sistema de imigração, e pelo escritório de advocacia internacional DLA Piper. O processo deles faz parte de um crescente volume de litígios que contestam a sistemática separação entre crianças e seus pais que o governo Trump promoveu ao longo desse ano.

Na semana passada, o juiz federal responsável pelo processo dos brasileiros, Edmon E. Chang, concedeu uma medida liminar proibindo o governo de deportar os pais sem seus filhos. Foi uma ordem judicial oportuna, dizem os advogados das famílias. Em uma reunião com a advogada Karen Hoffman, que faz parte da equipe jurídica dos brasileiros, o pai de W.S.R. contou que tinha sido instado pelos agentes do Serviço de Imigração e Controle Aduaneiro dos EUA a assinar um formulário autorizando sua deportação voluntária, supostamente alegando que, se o fizesse, seria reunido ao filho. Segundo Hoffman, os documentos ofertados ao falante de português estavam escritos em espanhol, e os agentes que os apresentaram falavam inglês.

“Felizmente”, disse Hoffman, “ele se recusou a assinar”.

Histórias semelhantes têm surgido em várias partes da fronteira – agentes de imigração norte-americanos acenando com a possibilidade de reunificação para pais separados de seus filhos, inclusive solicitantes de asilo, sob a condição de que consintam com sua própria deportação. Em razão de uma liminar concedida por um juiz federal e uma ação coletiva ajuizada pela ACLU [União Americana pelas Liberdades Civis] na semana passada, o governo recebeu uma ordem para reunir as crianças que separou de seus pais. Até agora, o processo parece bastante desorganizado. “Centenas de pais aparentemente foram deportados sem seus filhos apenas no mês de abril”, disse um relatório publicado semana passada, com base nos dados de apreensão da Patrulha de Fronteira dos EUA, pela Transactional Records Access Clearinghouse [Central de Informações de Acesso a Dados Transacionais], um centro de pesquisas da Universidade de Syracuse que reúne informações sobre atividades de governo. Isso indica que o impacto da “tolerância zero” já era substancial bem antes de qualquer intervenção judicial.

Por toda parte, nos EUA e na América Latina, milhares de famílias foram atingidas pela decisão do governo Trump de denunciar criminalmente qualquer pessoa acusada de atravessar a fronteira de forma ilegal, sem dispor, no entanto, de um sistema capaz de lidar com o fluxo de crianças que a atuação estatal deixa desamparadas. Bebês, crianças pequenas e solicitantes de asilo, como os brasileiros, estão entre os afetados.

Em sua entrevista com Hoffman, o pai de W.S.R. explicou que ele e o filho fugiram do Brasil em razão de uma série de ameaças de uma poderosa figura do crime organizado em sua região do país. Especificamente, declarou o pai, a família estaria na mira do chefe da criminalidade local por ter feito uma denúncia contra ele na polícia, o que o pai alega não ter acontecido. “Eu não fui à polícia”, explicou o pai de W.S.R. “Se eu tivesse procurado a polícia, seria ainda pior. No Brasil, a polícia e os traficantes são como uma empresa.” O pai do menino mais novo, C.D.A., também alega problemas com o crime organizado no país – em seu caso, dever dinheiro para um agiota ligado ao tráfico de pessoas. Se deportado para o Brasil, teme que, juntamente com C.D.A., seria transformado em escravo pelos traficantes, ou até pior.

“Infelizmente, é muito comum no meu país que pessoas que têm problemas com traficantes terminem mortas”, contou a Hoffman. “E a polícia não faz nada.”

Em documentos protocolados em juízo, ambos os pais dizem que esperavam e planejavam pedir asilo apresentando-se nos portos de entrada legalizados, mas ao chegarem foram informados por agentes norte-americanos que os portos estariam “fechados”. “Precisávamos entrar no país para pedir asilo, por isso atravessamos em um lugar próximo”, disse a Hoffman o pai de W.S.R. O pai de C.D.A. acrescentou: “queríamos atravessar legalmente, mas nos disseram que a ponte estava fechada.” E continuou: “Eles não estavam deixando ninguém passar. Um agente disse que estava fechado e as pessoas precisavam voltar. Um homem, que era mexicano, nos levou para atravessar em outro lugar. Ele prometeu que ficaria tudo bem.”

The Intercept analisou os registros de prisões, que mostram que os pais foram capturados pela Patrulha de Fronteira dos EUA em 23 de maio, enquanto cruzavam a pé a fronteira internacional, “aproximadamente 8 milhas [12km] a leste de Santa Teresa, o Porto de Entrada do Novo México”. De lá, as famílias foram movidas para o centro de detenção gerido pelo DHS, que os meninos descreveram a Maldonado.

“Não era um lugar bom”, recorda-se o pai de C.D.A.

“Ele chorou e me abraçou. Ele é um menino bom. Nunca tinha ficado longe de mim ou da mãe dele antes.”

“As crianças dormiam no chão com seus pais”, ele explicou. “Havia crianças de ambos os sexos misturadas. Algumas meninas já com 14 anos. Elas não tinham privacidade para ir ao banheiro. Nem imagino o que seus pais devem ter sentido.” Ambos os pais contaram que seus filhos estavam chorando quando chegou o momento da separação. O pai de W.S.R. contou que lhe disseram que estaria sendo levado para a prisão. O pai de C.D.A. afirma que o agente norte-americano que veio buscar seu filho não lhe deu informações a respeito de para onde o menino de 9 anos estava sendo levado. “Olha, eu vou ficar longe por três dias, no máximo cinco, e então vamos nos ver de novo”, o pai de C.D.A. se recorda de ter dito ao garoto, tentando ao máximo não assustar a criança. “Ele chorou e me abraçou”, disse. “Ele é um menino bom. Nunca tinha ficado longe de mim ou da mãe dele antes.”

“Eu disse a ele que não iria deixá-lo”, continuou o pai de C.D.A. “Agora eu sinto que menti para o meu filho, porque já faz mais de um mês que não o vejo.”

Os pais foram processados, juntamente com mais de vinte outros brasileiros, numa audiência coletiva perante o juiz federal Gregory B. Wormuth em 6 de junho, em Las Cruces, Novo México. Ambos estavam sendo acusados de uma contravenção penal de âmbito federal por atravessar a fronteira ilegalmente, o que ensejou a separação de seus filhos. Os homens descreveram um processo confuso e apressado em que se sentiram incapazes de manifestar preocupação com seus meninos – ou até de informar que tinham filhos mantidos em detenção  – ou seu desejo de solicitar asilo por medo de serem deportados para o Brasil. “Não tive a chance de explicar o que aconteceu por não conseguir atravessar a ponte, ou como eu queria pedir asilo”, disse o pai de W.S.R. “Não tive qualquer oportunidade de conversar com a outra advogada que me deram. Ela representou muitos brasileiros naquele dia. Eu só me lembro que ela olhou para mim e eles estavam dizendo meu nome e o nome do meu filho, e eu comecei a chorar porque estava me sentindo muito desesperado.”

“Nunca chegamos a conversar”, acrescentou. “Nunca tive a oportunidade de falar sobre o meu medo ou sobre a minha situação. Eu estava há dias sem dormir.”

O pai de C.D.A. narrou uma sequência de eventos semelhante. “Era uma escolha difícil – aceitar a deportação e ver nossos filhos de novo, ou contestar a acusação e pegar até seis meses”, ele explicou. “Muitos pais entraram em colapso”. Acrescentou ainda que: “Os advogados não se importavam muito com os nossos casos. Eles não conversavam individualmente conosco. Só uma mulher explicou a situação para todo mundo. Era como se estivéssemos sendo induzidos a ir embora. Eles diziam que, na justiça, se eu tentasse brigar pelo meu caso, poderia pegar seis meses. Eu disse que não, porque o ICE levou meu filho e vai devolvê-lo. Quero voltar para a custódia do ICE para poder vê-lo de novo.”

Por um acaso, aconteceu de haver observadores independentes na sala de audiência no dia em que os pais brasileiros receberam a sentença judicial. Margaret Brown Vega e seu parceiro, Nathan Craig, são antropólogos aposentados que trabalharam na América Latina. Eles foram convidados pelo escritório da defensoria pública federal local para observar uma das chamadas “audiências simplificadas”, em que os imigrantes são rapidamente processados em massa, no dia 6 de junho – o mesmo dia em que os pais foram condenados. Eles estavam presentes nas conversas entre os advogados de defesa e seus clientes brasileiros antes do pronunciamento judicial e enquanto ele acontecia. Brown Vega e Craig preencheram quase 20 páginas de anotações detalhadas descrevendo o que testemunharam, e depois as compartilharam com The Intercept.

Brown Vega descreveu mais de vinte homens e mulheres – entre eles, os pais de W.S.R. e C.D.A. – que entraram na sala de audiência amarrados entre si pelos pés, pela cintura e pelas mãos. “Todos os homens estão usando macacões verde-escuro, e as mulheres, macacões verde-limão, exceto duas”, ela escreveu. Ambos, Vega e Craig, descreveram em suas anotações individuais ter ouvido um defensor público dizer aos pais e aos demais acusados: “sabemos que alguns de vocês vieram com crianças”. Vários acusados balançaram afirmativamente a cabeça diante da menção às crianças, anotou a dupla. Segundo contaram, escreveu Craig, “todos, ou quase todos os homens estavam viajando com menores. Aparentemente, todas as mulheres menos uma estavam viajando com um menor.”

As anotações de Brown Vega e Craig retratam um procedimento caótico, em que pareceu, de sua perspectiva, que os pais de C.D.A. e W.S.R. foram mal representados por seus defensores públicos federais, juntamente com os demais acusados daquele dia. Em dado momento, depois de manifestar algumas de suas preocupações para os defensores públicos, a dupla foi temporariamente removida da sala de audiência. Foi-lhes permitido, no entanto, retornar para a sentença. “A despeito de ter sido revelado antes da audiência que quase todos os indivíduos ali presentes tinham filhos, e que alguns deles eram solicitantes de asilo, nenhum desses fatos ou circunstâncias foi aventado durante o procedimento judicial”, escreveu Craig ao avaliar a audiência. “O dia de hoje, como a maior parte dos outros, me deixa com mais perguntas do que respostas.”

Na conclusão da audiência, os pais brasileiros foram condenados pelo tempo já cumprido, e devolvidos à custódia do ICE.  “Pensei que finalmente seria reunido com meu filho”, disse o pai de W.S.R. “Mas não fui.” Em vez disso, a dupla começou uma jornada pelo sistema de detenção da imigração, enquanto o governo se preparava para enviar seus filhos a Chicago. O pai de C.D.A. se recorda de ter ficado preso em outra instalação provisória enquanto estava sendo levado para um centro de detenção mais permanente no Novo México. Contou que, mais uma vez, todos dormiram no chão. “Perguntei se eles poderiam aumentar a temperatura”, recorda. “Eles disseram ‘não, por causa das bactérias’”.

“Bem”, ele pensou, “se o frio mata as bactérias, pode nos matar também.”

Brasil – uma rede entre duas palmeiras sob um céu azul.

Desenho fazendo referência à casa da mãe de C.D.A. no Brasil – uma rede entre duas palmeiras sob um céu azul.

 

Imagem: C.D.A.

NAS SEMANAS que se seguiram, os pais batalharam para encontrar seus filhos e conseguir falar com eles. O pai de C.D.A. se voltou para os outros pais brasileiros sob custódia do ICE. “Muitos já estavam ali há 10 dias, alguns até há 18 dias, então sabíamos que o que acontecesse com eles também aconteceria conosco”, disse. “Liguei para o número 0800 que o advogado me deu para tentar falar com meu filho. Mas eles só pediram informações sobre mim e disseram que na próxima semana eu falaria com ele. Eu não sabia se poderia receber ligações.” Duas semanas atrás, os dois finalmente conseguiram conversar pela primeira vez. “Foi um alívio enorme”, disse o pai de C.D.A. “Mas as coisas que ele disse me perturbaram muito. Ele parecia tão adulto. Ele disse: ‘Pelo amor de Deus, não quero que ninguém passe pelo que estou passando’”.

“Uma criança de nove anos disse isso”, ele contou, destacando a pouca idade do filho.

“Eles tratam nossos filhos como lixo da rua.”

A primeira comunicação do pai de W.S.R. com seu filho foi em 15 de junho. “Pai, nunca mais vou ver você de novo”, disse o menino. Seu pai contou à advogada que W.S.R. tem chorado muito, e está “desesperado para sair do centro onde está detido”. Na semana passada, os dois conseguiram conversar de novo, mas só por dois minutos. “Eu preciso pagar pelas ligações com o dinheiro que recebo para as despesas na prisão”, explicou o pai de W.S.R. “E aí, quando ligo, eles me deixam na espera, e quanto mais eu espero mais o dinheiro vai acabando. É muito difícil me comunicar.”

O pai de W.S.R. conseguiu, no entanto, descobrir uma informação importante: “W.S.R. disse que perdeu o passaporte quando eles o fizeram correr pelo aeroporto, para levá-lo aonde quer que ele esteja”, disse. “Eles tratam nossos filhos como lixo da rua.”

Ele explicou que manter a calma no meio de tudo isso é incrivelmente difícil. Semana passada, depois de sua reunião com a advogada, ele foi mais uma vez removido para um novo centro de detenção. Antes de ser realocado, ele contou à advogada em termos claros e precisos sobre a dor que está vivenciando.

“É muito solitário aqui”, ele disse. “Ninguém fala português. Somos só três brasileiros. Eu finjo que está tudo bem quando falo com meu filho, mas não está tudo bem. Digo a ele que está tudo tranquilo, ótimo, mas isso não é verdade. Eu não posso dizer a verdade porque isso o perturbaria demais. Tento comer, mas sei que estou perdendo peso. Tento mesmo assim, porque meu filho precisa que eu esteja forte. Estou muito angustiado, sonho que estou vendo meu filho. Todos os dias penso: ‘amanhã eu vou vê-lo’. Nunca vou conseguir esquecer o que aconteceu. É como uma cicatriz, nunca vai desaparecer, não tem dinheiro que possa compensar isso. As pessoas que fizeram isso não devem ter filhos. É como viver um pesadelo: eu quero acordar, mas não consigo. Quero estar com meu filho, quero ir a Chicago, onde ele está, para tentar pegá-lo de volta. Ele precisa estar comigo, que sou o pai dele. Também quero ter a chance de trabalhar com os advogados no nosso processo de asilo. Não consigo fazer nada daqui da prisão. É muito difícil até conversar com minha advogada pelo telefone. Meu maior medo é ser deportado para o Brasil sem meu filho. Não sei como vou consegui-lo de volta se isso acontecer. Não importa o que aconteça, temos que ficar juntos.”

O governo dos EUA vai apresentar em juízo seus argumentos no caso dos brasileiros nesta semana. W.S.R. planeja comparecer a essa audiência crucial, para estar presente em sua própria defesa. “Se perdermos”, disse Maldonado, “e perdermos até o final, essa é a única audiência que ele vai ter nos Estados Unidos. E ele quer ir.” Ainda não está claro, porém, se o menino vai conseguir realizar o desejo de celebrar seu aniversário com o pai hoje. Ele está fazendo 16 anos.

 

Tradução: Deborah Leão

A PRISÃO DE LULA É POLÍTICA

10  05 2017 Curitiba PR Brasil  o ex presidente Luiz Inacio Lula da Silva durante Ato jornada pela democracia em Curitiba   Fotos Ricardo Stuckert

NA VÉSPERA do julgamento do habeas corpus de Lula, o chefe das Forças Armadas usou o Twitter para colocar a faca no pescoço dos ministros do STF. O recado foi claro: ou os juízes pavimentavam o caminho para a prisão de Lula ou o homem que está sentado sobre o arsenal bélico da nação tomaria alguma atitude. A intimidação à democracia foi aplaudida publicamente por políticos, generais e até pelo juiz Marcelo Bretas. O perfil do TRF-4 no Twitter, o tribunal de segunda instância que condenou Lula sem provas, também curtiu o tweet que continha a ameaça golpista do comandante do Exército. 

Barroso declarou que o tribunal estava dentro da “fogueira das paixões políticas”  e que era preciso interpretar a Constituição em “sintonia com o sentimento social”, o que é uma aberração sob qualquer ponto de vista. No dia seguinte, o Vem Pra Rua convocou uma manifestação em Porto Alegre em que se botou fogo em 11 bonecos que representavam os ministros do Supremo. Estavam ali, literalmente, as “fogueiras das paixões políticas” representando o “sentimento social” com o qual Barroso está em sintonia.

É inegável que todos esses atores estão politicamente alinhados e atuando em conjunto com objetivo de tirar Lula das eleições nas quais aparece como favorito. O comandante das FA está vigilante e intimidando qualquer possibilidade de traição interna no conluio. Tudo isso seria um escândalo em qualquer democracia séria do mundo, o que não é o nosso caso, já que temos uma Justiça que está a reboque de um “sentimento social” e não da letra fria da Constituição.

Para os brasileiros que acreditam ser o PT o grande inimigo da nação, a prisão de Lula foi mais um dos orgasmos múltiplos e coletivos que eles têm alcançados nos últimos anos. O antipetismo, esse “sentimento social” que norteia as decisões de Barroso, virou uma patologia e não representa apenas uma ojeriza apenas ao partido, mas a todos os partidos de esquerda e qualquer pensamento proveniente deste espectro político.

Essa revolta contra o que dizem ser “impunidade” é mentirosa e não resiste aos fatos. A indignação não está calcada em princípios morais, mas ideológicos. MBL, Vem Pra Rua e congêneres que organizam o antipetismo jamais bateram uma canequinha na varanda contra a impunidade de Fernando Capez (PSDB) ou de Eduardo Azeredo (PSDB) e de outros do grupo político aos quais estão alinhados ideologicamente. Também não vimos o comandante do Exército usar suas redes sociais para reclamar da impunidade de algum tucano. A hipocrisia dos moralistas não é uma novidade.

Cármen Lúcia fez o que esteve ao seu alcance para negar o habeas corpus de Lula, assim como fez quando ajudou a impedir que Aécio Neves fosse preso — tudo de acordo com o “sentimento social”, que aplaudiu a decisão contra Lula e se calou diante da decisão favorável a Aécio.

Logo no dia posterior ao julgamento no STF, o presidente do TRF-4 conversou com a Rádio Band News e afirmou que a prisão só seria “possível a partir do esgotamento dos recursos do segundo grau” e que os advogados do Lula teriam até a próxima terça-feira (10/04) para apresentar novo embargo ao TRF-4. “Esses embargos deverão ser examinados pelo tribunal. Após o julgamento desses embargos, o relator do processo, aí sim, está autorizado a comunicar o juiz Moro para eventual cumprimento da decisão.”

Horas depois, ao se tomar conhecimento de que o ministro Marco Aurélio Mello poderia conceder liminar pedida pelos advogados de Lula, a prisão foi decretada. Ou seja, o tribunal fez exatamente o contrário do que o seu presidente havia declarado horas antes e autorizou Moro a decretar a prisão sem julgar os novos embargos. O juiz, com uma sede de Torquemada, emitiu o despacho com a ordem de prisão em apenas 22 minutos — um novo recorde para um processo acostumado a bater recordes de ligeireza. Um documento obtido pelo EL PAÍS revelou que  partiu do Ministério Público Federal a pressão pelo aceleramento da execução a iniciativa de pressionar pela rápida execução da condenação. Mauricio Gotardo Gerum,  procurador da República, assinou um documento que pedia ao TRF-4 para que liberasse imediatamente a prisão e, assim,  “estancar a sensação de onipotência” de Lula, que não estaria se submetendo às decisões judiciais. Um verdadeiro escárnio.

As outras oito determinações de prisão de réus da Lava Jato do Paraná, por exemplo, levaram entre 18 e 30 meses para serem expedidas. A de Lula levou apenas 9. Por que tanta ansiedade justamente nesse processo? Por que não esperar o esgotamento dos recursos jurídicos sem atropelar a lei? É uma pressa que não se justifica juridicamente, apenas politicamente. Um levantamento do Zero Hora não deixa dúvidas de que tudo leva metade do tempo quando o processo envolve o nome do ex-presidente:

Do julgamento em 1ª instância até apelação
Média: 96 dias
Processo de Lula: 42 dias

Tempo até conclusão do voto do relator
Média: 275,9 dias
Processo de Lula: 100 dias

Tempo entre revisão e julgamento
Média: 105 dias
Processo de Lula: 54 dias

Parece que a justiça da República de Curitiba não é cega. É caolha, só enxerga com o olho direito e anda com uma agenda eleitoral debaixo do braço. Mas esse é só mais um de uma cadeia de acontecimentos construídos durante todo o processo para prejudicar Lula, não restando dúvidas de que estamos diante de uma caçada política.

Posando de líderes messiânicos de uma cruzada moral, Sergio Moro e a turma que trata a prisão de Lula como troféu viraram simultaneamente heróis e reféns de um antipetismo delirante — aquele que chegou um dia a taxar esse mesmo STF de “bolivariano”. O recado está dado: Lula será preso antes das eleições, custe o que custar e nada, nem mesmo a Constituição, irá interromper essa missão divina do bem contra o mal.

A crise institucional se intensifica à medida que nos aproximamos das eleições. Trinta e três anos após a redemocratização, mesmo levando em conta significativos avanços democráticos conquistados nesse período, o quadro institucional atual é sombrio e a democracia segue fragilizada. Dos 4 últimos presidentes eleitos, 2 sofreram impeachment e 1 está prestes a ser preso. FHC, cuja possibilidade de reeleição foi comprada de maneira escandalosa em um esquema fartamente comprovado, é o único que passou ileso e hoje desfruta da aposentadoria e ainda é incensado pela grande mídia como grande analista da vida brasileira. Lula, que saiu com 89% de popularidade após 8 anos de mandato e hoje se apresenta como o candidato favorito dos brasileiros para a próxima eleição, está a caminho da cadeia por uma condenação muito mais embasada em convicções do que em provas. Até porque uma prisão política não carece de provas. Basta um certo “sentimento social”.

 

MINISTROS TRANSFORMAM STF EM CAMPO DE VÁRZEA

O ministro do Superior Tribunal Federal, Gilmar Mendes fala sobre o financiamento particular de campanhas políticas (Elza Fiúza/Agência Brasil)

ANTIGAMENTE, os ministros do STF eram pouco conhecidos. Ninguém conhecia suas caras. Depois que as sessões passaram a ser televisionadas em 2002, passaram a ter grande visibilidade e ficaram mais próximos dos brasileiros. O trabalho do STF se tornou mais transparente e ajudou a população a conhecer melhor como funciona a Justiça no país. Por outro lado, os holofotes aguçaram os já normalmente inflados egos dos juízes que integram a mais alta corte do país. De qualquer forma, é melhor que seja assim.

Discussões acaloradas e destemperos de juízes são toleráveis. A toga não faz de ninguém um super-herói do equilíbrio e da sobriedade. Com a recente intensificação da judicialização da política, é até natural que os excessos aconteçam com mais frequência. Mas o que temos visto é que brigas de boteco no STF estão sendo mais recorrentes que o limite do tolerável.

Gilmar Mendes, por exemplo, o mais brigão dos ministros, se comporta como um capanga do Mato Grosso com certa regularidade — tanto no tribunal quanto fora dele. A treta que ele e Barroso travaram esta semana é mais uma que entrou para a história. O tratamento mútuo de “vossa excelência” não amenizou a agressividade e o baixo nível do bate-boca, apenas tornou tudo ainda mais ridículo, transformando o nobilíssimo tribunal no palco do programa João Kleber.

Não foi a primeira nem a segunda vez que os dois discutiram de forma agressiva. Barroso já chegou a dizer que Gilmar é leniente “em relação à criminalidade do colarinho branco” e que “não trabalha com a verdade”.Desta vez, porém, a coisa não se resumiu à diarreia verbal. Ambos fizeram acusações mútuas de ordem ética. Acusações gravíssimas que não podem ficar sem respostas.

Depois de chamar Gilmar de “pessoa horrível”, “mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia”, entre outros destemperos, Barroso acusou com todas as letras Mendes de estar “sempre atrás de algum interesse que não o da Justiça”.

Opa! Pera lá, Vossa Excelência! Uma acusação grave dessas, com transmissão ao vivo para todo o país, deve ser prontamente esclarecida. Temos um juiz do Supremo acusando outro de defender interesses obscuros. A população precisa saber quais são ou se Vossa Excelência apenas proferiu uma leviandade de boteco que não merece ser levada a sério — o que também seria grave. Se ficar comprovado que Gilmar não trabalha pela justiça, deve-se iniciar o processo de impeachment do ministro (já houve um pedido engavetado pelo STF) ou teremos um tribunal ainda mais sob suspeição.

Não é difícil imaginar sobre o que Barroso está falando. Gilmar tem uma ligação estreitíssima com PSDB e com o núcleo peemedebista alinhado a Michel Temer. Isso está evidenciado pelo comportamento do ministro tanto no tribunal quanto fora dele. O ministro abriu sua casa para oferecer jantar de aniversário para Serra, se encontrou secretamente com Temer às vésperas do impeachment, teve conversa suspeita com Aécio Neves por telefone e abriu seu palacete em Brasília para inúmeros jantares e churrascadas com a cúpula tucana e peemedebista. Mas jornalistas e políticos apontarem indícios de que Gilmar defende interesses particulares é uma coisa. Um ministro do Supremo fazer uma acusação clara e direta é outra. Pelo bem da democracia, Barroso tem a obrigação de formalizar a acusação, e não apenas jogá-la no ar, dando chilique como um adolescente que xinga muito no Twitter.

O valentão Gilmar, claro, não poderia ficar por baixo na treta. Em vez de se defender e pedir para o acusador explicitar claramente sua acusação, o crianção de toga rebateu o ataque com outro excelentíssimo ataque: “Eu vou recomendar ao ministro Barroso que feche o seu escritório de advocacia”— uma clara insinuação de que o seu antigo escritório obtém vantagens com seu mandato no STF.

Também podemos supor do que se trata. Após Dilma indicar seu nome ao Supremo, Barroso passou a propriedade do escritório para seu sobrinho que, menos de dois meses depois, fechou contrato milionário e sem licitação com a estatal Eletronorte. Há quem diga que o ex-escritório do ministro cresceu substancialmente após sua entrada no STF. A insinuação de Gilmar também é grave e não pode ficar por isso mesmo.

No dia seguinte, nenhum deles se retratou ou explicou do que se tratavam as acusações. Barroso se limitou a mandar cartinha para Carmen Lúcia afirmando ter se desligado do escritório antes da sua posse e que jamais atuou em processo patrocinado por seus sócios.

Durante a sessão em que a maioria dos ministro decidiu julgar o habeas corpus preventivo de Lula, Gilmar Mendes fez confissões que o afastariam do mandato em qualquer país no qual as instituições estejam funcionando normalmente.

Ao justificar o voto que beneficia Lula, Gilmar, na tentativa de bancar o isentão, afirmou sem nem corar:  “Difícil me imputar simpatia pelo PT”. Ou seja, o nobre magistrado confessa tranquilamente em plenário sua antipatia por um determinado partido político. É chocante ver a tranquilidade com que ele fala isso, sem nenhum compromisso com a imparcialidade (ou pelo menos com parecer imparcial) —  o requisito mais fundamental de um juiz.  

Não satisfeito, o ministro ainda viria a completar o escárnio: “Dá para lembrar o clássico texto de Rui Barbosa: “se a lei cessa de proteger os nossos adversários, cessa virtualmente de nos proteger’”. Fala como se fosse adversário do réu, e não o juiz. É escandaloso.

Não nos enganemos: esse espírito republicano de fachada de Mendes não passa de álibi para quando for julgar os companheiros do seu time que estão sendo investigados. Falo daqueles políticos aos quais é fácil imputar a simpatia de Gilmar.

Apesar de setores da imprensa e da política afirmarem de forma recorrente que  “as instituições seguem funcionando normalmente”, o atual quadro grotesco do STF é em parte reflexo do excesso de judicialização da política e da fragilidade das instituições democráticas. As cada vez mais comuns cenas de várzea — com todo respeito aos campos de várzea — na principal corte do país aumentam a descrença da população na Justiça. Pesquisa feita pela FGV no final do ano passado revelou que apenas 24% confiam no STF. Nessa toada, a popularidade da mais alta corte do país alcançará a de Temer.

O ASSASSINATO DE MARIELLE FRANCO FOI UMA ENORME PERDA PARA O BRASIL — E PARA O MUNDO

An elderly man lights a candle during a rally against the murder of Brazilian councilwoman and activist Marielle Franco, in Sao Paulo Brazil on March 15, 2018.Brazilians mourned for the Rio de Janeiro councilwoman and outspoken critic of police brutality who was shot in the city center in an assassination-style killing on the eve. / AFP PHOTO / Miguel SCHINCARIOL (Photo credit should read MIGUEL SCHINCARIOL/AFP/Getty Images)

COSTUMO DIZER QUE é difícil compreender a gravidade e a importância de um momento histórico enquanto você está vivendo ele. E estamos agora diante de um momento que preciso que vocês entendam.

Na quarta-feira, em pleno Rio de Janeiro, uma importante líder de direitos civis foi morta por tiros que partiram de um carro. Seu nome era Marielle Franco. Como eu, ela tinha apenas 38 anos de idade.

Ainda não sabemos quem assassinou Marielle e seu motorista, Anderson Pedro Gomes, embora haja indícios preliminares de que a polícia pode estar envolvida. Foi informado que investigadores teriam concluído que as cápsulas de munição encontradas na cena do crime haviam sido compradas pela Polícia Federal em 2006. Cartuchos do mesmo lote foram usados em uma série de ataques brutais que deixaram pelo menos 17 mortos e sete feridos em uma noite de 2015, em São Paulo. Dois policiais e um guarda municipal foram condenados pela chacina.

Marielle Franco ameaçava um preocupante status quo no Brasil.

O que sabemos é que Marielle ameaçava um preocupante status quo no Brasil.

Nos Estados Unidos, cerca de 1.200 pessoas foram mortas por policiais em 2017. Essas mortes frequentemente destroem famílias, e mesmo os agentes envolvidos nos casos mais ultrajantes raramente são responsabilizados. Na maior parte das nações parceiras dos EUA, como o Canadá, a polícia mata em média 95% menos. Os policiais norte-americanos matam mais pessoas em poucos dias do que a polícia de vários países mata em um ano.

Foi a crise de brutalidade policial nos EUA, mais do que qualquer outro fator, que desencadeou o movimento Black Lives Matter (“Vidas Negras Importam”).

Mas vocês sabiam que o Brasil é provavelmente o grande campeão do mundo em violência policial? Embora tenha 120 milhões de habitantes a menos que os EUA, um assustador número de 4.224 brasileiros morreramnas mãos da polícia em 2016. Esse número representa um aumento de 26% em relação ao ano anterior.

Isso é uma crise internacional de direitos humanos. É um escândalo.

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E o lugar que sofreu com maior intensidade a violência policial foi o Estado do Rio de Janeiro, onde a polícia assassinou mais de 1.124 pessoas em 2017 – uma disparada de 22% em relação ao ano anterior. Além de tudo isso, há uma intervenção militar em curso no Rio. Quer saber de polícia militarizada? As Forças Armadas literalmente assumiram o controle do aparato estatal de segurança.

Marielle Franco, líder brilhante com um coração enorme, era uma figura central no movimento contra a violência policial no Brasil.  Esse movimento se equipara para todos os fins ao Black Lives Matter – sem esse nome, mas com indiscutíveis semelhanças. E é por isso que dezenas de milhares de pessoas foram às ruas para protestar e chorar sua morte.

Ela era uma mulher negra e queer lutando não apenas contra a violência policial, mas por uma igualdade mais ampla e pelo empoderamento das mulheres e das pessoas negras em todo o Brasil. Ela estava exatamente saindo de um evento voltado para o empoderamento das mulheres negras no Centro do Rio quando um carro parou ao lado do dela e alguém atirou quatro vezes em sua cabeça.

Seu carro não foi roubado. Não levaram sua bolsa. Ela foi alvo de uma execução.

RJ - Rio de Janeiro - 03/15/2018 - Vel river of the councilwoman Marielle Franco - Women raise their hands in protest of the death of Marielle. The morning of this Thursday (15) in Cinel India, the wake of the councilwoman Marielle Franco, who was murdered last night in the center of Rio, after reporting abuses committed by police officers in Acari. Photo: Ian Cheibub / AGIF (via AP)

Mulheres erguem os punhos em protesto pela morte de Marielle Franco no Rio de Janeiro em 15 de março de 2018.

 

Foto: Ian Cheibub/AGIF/AP

Recentemente eleita para a Câmara de Vereadores do Rio, em 2016, a voz e o poder de Marielle na política estavam crescendo. Ela era presidente da Comissão Permanente de Defesa da Mulher na Câmara e havia sido nomeada há menos de um mês relatora da comissão que fiscalizará a intervenção militar e a presença de forças policiais e de segurança nas favelas da cidade. Seu partido, o PSOL, estava planejando anunciá-la como candidata a vice-governadora do Estado nas eleições deste ano.

Ela era uma sonhadora que dava esperança a todos ao seu redor. Num país e num mundo que confiam cada vez menos nos políticos, ela mostrava às pessoas que líderes corajosos poderiam ter princípios, ser progressistas e lutar pela mudança de dentro para fora.

Devemos conectar nossas lutas nos EUA com as do Brasil. Marielle Franco era uma de nós.

O assassinato de Marielle me lembra em vários aspectos o de Patrice Lumumba, o primeiro a ser escolhido primeiro-ministro do Congo independente. Cheio de esperança e de ideias, Lumumba tinha apenas 35 anos quando foi morto. Ele personificava a esperança e a mudança em um país que precisava desesperadamente de ambas.

Antes de serem assassinados, Malcom X e Martin Luther King Jr., então apenas um ano mais velhos que Marielle Franco, tinham chegado à conclusão de que era importante conectar nossas lutas pelos direitos civis e nossas prioridades às lutas pelos direitos civis e humanos em curso pelo mundo.

E aqui estamos novamente. Devemos conectar nossas lutas nos EUA com as do Brasil. Marielle Franco era uma de nós. As prioridades dela são as nossas. Os sonhos dela são os nossos. As lutas dela são as nossas.

Não é coincidência que os países com as duas maiores populações de descendentes africanos fora da África – o Brasil, com quase 56 milhões, e os Estados Unidos, com 46 milhões – estejam ambos enfrentando uma crise de violência policial. Isso acontece porque as vidas negras, seja no Rio ou em Ferguson, em São Paulo ou Baltimore, muitas vezes não importam para a polícia e para os políticos. Em nome da segurança, vidas humanas estão sendo tratadas como descartáveis. E isso nunca pode ser aceito.

Saibam o nome de Marielle Franco. Não permitam que sua causa morra com ela. Mostrem ao mundo que é possível matar um homem ou uma mulher, mas não uma ideia.

Foto do título: Marielle Franco, recém-eleita vereadora, abraça uma apoiadora em visita à Favela da Maré, no Rio de Janeiro, em 9 de outubro de 2016.

Tradução: Deborah Leão

A TRAJETÓRIA DE NEY SANTOS É UM RETRATO DO FRACASSO DAS NOSSAS INSTITUIÇÕES

GRAÇAS À MANUTENÇÃO de um habeas corpus concedido pelo STF, um homem que o MP tem certeza ser integrante do PCC poderá voltar a assumir a prefeitura de Embu das Artes, cidade de 240 mil habitantes da grande São Paulo. A trajetória de Claudinei Alves do Santos, o Ney Santos (ou Ney Gordo no submundo do crime), é um case de fracasso das instituições brasileiras. Em pouquíssimo tempo, ele saiu da cadeia para se tornar empresário do ramo dos combustíveis e iniciar carreira de sucesso na política. Segundo o MP, paralelamente à vida política, Ney Santos seria o comandante do tráfico de drogas da zona oeste da grande São Paulo. Há uma infinidade de provas e até os paralelepípedos de Embu conhecem a vida criminosa do prefeito. É triste perceber como os partidos políticos e o sistema judiciário permitiram a ascensão desse homem.

Em 1999, aos 19 anos, Ney Santos foi condenado por receptação e formação de quadrilha. Quatro anos depois, foi novamente condenado, dessa vez pelo singelo crime de assaltar um carro-forte portando uma metralhadora 9mm. Ficou dois anos preso, mas foi absolvido em segunda instância. Saiu da cadeia para se tornar, de forma instantânea, um empresário de sucesso do ramo dos combustíveis. Para o MP, a partir da passagem pelo presídio, Santos “constituiu fortuna de forma relâmpago, enveredando-se para a área política e candidatando-se para cargos públicos”. Os promotores não têm dúvidas de que os postos de gasolina são para lavar o dinheiro proveniente de crimes, principalmente do tráfico de drogas. Desde a saída da prisão, Santos acumulou um patrimônio escandalosamente incompatível com sua renda: mais de R$ 100 milhõesem apenas 4 anos.

Em 2010, iniciou carreira na política ao se candidatar a deputado federal pelo PSC. Coligado com o PSDB, Santos chegou a exibir na campanha um vídeo ao lado de Alckmin, que aparece saudando sua candidatura. Poucas semanas antes da votação, foi preso novamente por lavagem de dinheiro, estelionato, adulteração de combustível, sonegação fiscal e formação de quadrilha. A investigação começou a partir de uma denúncia que acusava o candidato de trocar combustível por votos. Os 15 postos de gasolina dos quais é sócio também eram suspeitos de fornecer atestados falsos de emprego para presos em regime semiaberto que precisavam comprovar vínculo empregatício. Seus bens foram bloqueados e,  em sua mansão, a polícia apreendeu máquinas de contar dinheiro e uma Ferrari avaliada em R$ 1,5 milhão. Quarenta tijolos de maconha, totalizando 34 kg, também foram encontrados em um dos carros da campanha do candidato. Mesmo com tudo isso, Ney Santos foi solto para responder em liberdade, mas perderia a eleição dias depois.

Em 2012, foi eleito vereador de Embu e mostrou força política se tornando presidente da Câmara. Naquela época, Ney Santos já demonstrava ter uma boa rede de contatos dentro dos partidos políticos. A afinidade com Marco Feliciano, por exemplo, não é apenas religiosa. O deputado é um importante aliado político de Ney Santos e, segundo o pastor, o seu “gabinete é um pedaço de Embu em Brasília”. Feliciano chegou até ser agraciado como cidadão embuense por indicação de Santos, que costuma aparecer em vídeos de cultos neopentecostais.

(Foto: Reprodução/Facebook)

Em 2013, o vereador novamente respondeu por compra de votos e chegou a ter o mandato cassado por decisão unânime no TRE-SP. Ele utilizava uma ONG para oferecer serviços de atendimento médico, odontológico e estético à população em troca de votos. Ficou afastado por 5 meses, mas recuperou o mandato através de liminar.

Nada disso abalou Santos, que continuou buscando alçar mais voos na política. Em 2016, teve a candidatura à prefeitura de Embu impugnada pela Justiça Eleitoral com base na Lei da Ficha Limpa. Mas uma nova liminar permitiu que Ney Santos se candidatasse e fosse eleito prefeito pelo PRB, o partido da Igreja Universal. Sua eleição teve apoio maciço da população, tendo impressionantes 79% dos votos. Dos 15 vereadores eleitos, 12 eram da sua base aliada do prefeito eleito. Uma força política para ninguém botar defeito.

Sua posse como prefeito foi barrada pela Justiça ao decretar novamente sua prisão por lavagem de dinheiro e associação ao tráfico de drogas. Ele, então, sumiu da cidade e ficou foragido por 40 dias. Mas, graças a uma liminar obtida no STF com Marco Aurélio Mello, o pedido de prisão foi suspenso, e Ney Santos pôde assumir a prefeitura normalmente. Perceba como, apesar das idas e vindas, as coisas sempre acabam dando certo para ele nos tribunais.

Durante a gestão, o prefeito nomeou Renato Oliveira, ex-integrante do MBL, para ser seu subsecretário de Comunicação. No mês passado, Oliveira e seu segurança foram acusados de participar de um atentado contra um cartunista crítico do prefeito que trabalha para o Verbo Online, um site de notícias da região de Embu. O cartunista estava de moto e foi atropelado pelo subsecretário. Na sequência, levou 3 tiros do segurança, que trabalha também como agente penitenciário. Horas após a tentativa de homicídio, o cartunista recebeu uma mensagem dizendo que “os próximos tiros serão na sua cara pra aprender a parar de ser falador”. É o modus operandi do PCC aplicado à gestão pública.

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Em Brasília, Renato Oliveira e Ney Santos posam para selfie.

(Foto:Reprodução/Facebook)

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Renato Oliveira e Ney Santos protestando contra a corrupção e pedindo o impeachment de Dilma.

(Foto: Reprodução/Facebook)

Temendo ser condenado às vésperas do julgamento do seu habeas corpus no STF, Ney Santos pediu licença do cargo e fugiu para o Paraguai em avião clandestino. Mas nem precisava, as instituições continuariam funcionando normalmente para ele. Com a ajuda dos votos de Alexandre de Moraes, ex-filiado do PSDB e ex-secretário de Segurança Pública de Alckmin, e de Marco Aurélio Mello, que já o tinha livrado no ano passado, Ney Santos poderá assumir novamente a prefeitura. Essa foi só mais uma da sequência de grandes vitórias que ele vem obtendo nos tribunais, apesar das fartas provas continuarem a pular na nossa cara. Assim, o menino que iniciou carreira política assaltando carro-forte com uma metralhadora poderá continuar sua vitoriosa trajetória.

QUANDO O MOVIMENTO NEGRO PREFERIA A LUTA POLÍTICA À LACRAÇÃO NA WEB

SÃO PAULO, SP, BRASIL, 07-07-1978: Manifestantes em sua maioria negros, durante passeata por igualdade racial, na Praça Ramos de Azevedo, em frente ao Teatro Municipal, em São Paulo (SP). Lendo em coro uníssono uma "carta aberta à população", de protesto contra o racismo no Brasil. Cinco mil cópias da carta foram distribuídas. A concentração nasceu do trabalho de sete entidades negras, que formaram o "Movimento Unificado Contra a Discriminação". Alguns trechos da carta, lida em voz alta: "Hoje é um dia histórico. Um novo dia começa a surgir para o negro. Um novo passo foi dado na luta contra o racismo". Não faltaram os gestos de braço erguido e punho fechado - a marca do movimento "Black Power" nos EUA. (Foto: Folhapress)

A EDIÇÃO DA Folha de S.Paulo de 21 de dezembro de 1985 dava destaque para as tentativas de combate à inflação, para briga entre o então ministro das Comunicações Antônio Carlos Magalhães e o então governador do Rio de Janeiro Leonel Brizola – ACM mandara a TV pública passar um compacto de Atlético x Cruzeiro no lugar de uma entrevista de Brizola – e para temas tão díspares quanto a lista de filmes pornôs liberados pela censura, uma fofoca sobre um craque do futebol e o veto à caça baleeira.

Escondida na página 21, ao lado de um quiproquó sobre um juiz que proibiu a minissaia no seu tribunal, estava a sanção de uma das leis mais importantes da história do Brasil: a Lei 7.437, que incluía, entre as contravenções penais, a discriminação por sexo, raça, cor ou estado civil, dando nova redação à lei Afonso Arinos. Era de autoria do deputado paranaense Valmor Giavarina, branco, odontólogo, radialista, filiado ao PMDB. Sancionada por Sarney, a lei estabelecia a pena de prisão para diversos atos discriminatórios. Mas foi apenas três anos depois que a gravidade das agressões foi reconhecida de verdade.

Foi a redação da nova Constituição – inciso XLII do artigo 5.º – que determinou: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. A frase que mudou para sempre a história da luta dos direitos civis no Brasil é de autoria de Carlos Alberto Caó de Oliveira. Caó, negro, morreu um mês atrás, no dia 4 de fevereiro, aos 76 anos, no Rio de Janeiro. Seu obituário teve cinco parágrafos no jornal O Globo, dois no portal G1, foi ignorado pela Folha e pelo Estadão, e não mereceu atenção dos jornais televisivos noturnos da Globo, da Record ou da Band. Menos espaço do que a suposta apropriação cultural de Anitta ou a treta do turbante.

Na época da redação da Constituição, Carlos Alberto Caó de Oliveira era um deputado licenciado: estava no governo de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, exercendo o cargo de Secretário do Trabalho e Habitação. Um dos maiores expoentes do movimento negro do Brasil, ele tinha a missão de regularizar lotes de áreas ocupadas através do programa “Cada Família, Um Lote”.

Caó não era exatamente um especialista em habitação. Tinha formação em Direito e história como líder estudantil – visitou Moscou pela UNE em 1962. As atividades “subversivas” lhe renderam condenação e prisão em 1970, quando passou seis meses na cadeia.

Livre, exerceu o jornalismo – foi repórter, subeditor e editor de economia pelo Jornal do Brasil, e também assessor de imprensa. Filiado ao PDT desde o seu início, ficou como segundo suplente de deputado federal em 1982. Como Brandão Monteiro foi nomeado secretário de transportes, ele teria o direito de assumir a vaga, mas foi nomeado secretário de habitação – assim, a vaga ficou com ninguém menos que Abdias do Nascimento, outro dos maiores expoentes da cultura negra do Brasil, morto em 2011.

Não perdiam tempo com discursos vazios em busca de aplausos ou aprovação.

Abdias, Caó e, especialmente, Benedita da Silva, ocuparam seus espaços na Assembleia Nacional Constituinte. Tentaram emplacar um embargo econômico à África do Sul, então vitimada pelo apartheid. Depois, ocuparam a subcomissão das minorias. Não perdiam tempo com discursos vazios em busca de aplausos ou aprovação.

Essa ocupação de espaços políticos permitiu uma grande visibilidade para a questão negra no Brasil da época, de protestos contra o Centenário da Abolição até a luta parlamentar diária. O espaço foi aberto para militantes históric0s como Lélia Gonzales, fundadora do Movimento Negro Unificado, o atleta João do Pulo, o historiador e escritor Joel Rufino, entre muitos outros. Enfrentaram enorme pressão: as cotas, por exemplo, já propostas naquela época, foram vetadas no parlamento – só seriam aprovadas nos anos 2000.

Caó morreu, mas ajudou a construir uma história que não se apaga. Que história queremos construir hoje, sobretudo com o amplo acesso à internet?

Parece que o movimento negro dos anos 10 está pouco preocupado com a ocupação dos seus espaços políticos. A prioridade é uma coluna lacradora, que tenha a ver com a treta do dia – acusar o outro de não ser negro o suficiente, de não participar de um escracho, de não ter a mesma solidez moral. A persistência de construir o amanhã sempre perde para o tesão de sentar na cara de alguém hoje. Tribunais são abertos todos os dias, muitas vezes colocando irmão contra irmão.

Dos 30 mil jovens assassinados por ano, 77% são negros, de acordo com a Anistia Internacional. O desemprego e o subemprego dos negros é 5% superior à média nacional, de acordo com dados da PNAD contínua – e as dificuldades de recolocação no mercado são maiores, especialmente entre as mulheres. Negros e pardos ganham, segundo dados de novembro de 2017, 55% do rendimento médio mensal dos brancos no Brasil.

Rigorosamente nenhum desses dados será alterado se discutirmos tweets do Emicida ou as tranças de Anitta. Existe muito trabalho a ser feito. O momento de distração já passou.

BLOCO QUE FARIA HOMENAGEM A TORTURADORES TEMEU SOFRER VIOLÊNCIA NO CARNAVAL

NO MOMENTO em que a paulicéia tenta se levantar do túmulo do carnaval para cair na folia, um grupo bolsominions decide botar o bloco Porão do DOPS na rua. Será uma homenagem aos subterrâneos da delegacia onde se torturou e matou os que ousaram desafiar a ditadura.

Essa mesma meia dúzia de gatos pingados adoradores de Tio Sam já havia se juntado na Av. Paulista, em outubro de 2016, para apoiar a candidatura Trump. “O mundo decente quer Trump presidente!”, gritavam os representantes da decência paulistana.

Alguns meses depois, a mesma turminha reacionária voltou para a avenida para uma série de protestos contra a Lei de Imigração, que revoga o Estatuto do Estrangeiro de 1980, criado pela ditadura militar. A nova lei, proposta pelo senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), regulariza a entrada e a permanência de migrantes e está norteada pelos direitos humanos – um prato cheio para a revolta de qualquer cidadão de bem. Os gritos de guerra e os cartazes deixavam claro o caráter xenófobo do movimento, apesar de 100% dos manifestantes serem descendentes de imigrantes. Um deles afirmou que a lei – vejam só que escândalo! – “democratiza a entrada de suspeitos e daqueles que não são cidadãos de bem, mas sim possíveis criminosos que podem se aproveitar das brechas da lei para trazer terror, crime e destruição”. No megafone, uma outra líder espalhava mais chorume no ar: “a comunidade europeia não quer mais os islâmicos que estupram as meninas”.

Esses lunáticos formam o grupo Direita São Paulo. Para eles, o secretário especial de assuntos estratégicos de Temer, Hussen Kalout, é membro do Hezbollah (parece que até o governo americano desconfiou), e as relações comerciais entre João Doria e Emirados Árabes são suspeitíssimas.

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Reprodução/Facebook

Reprodução/Facebook

O grupo foi ganhando adeptos e intensificando sua participação em protestos. Com mais de 200 mil seguidores no Facebook, os fascistóides do Direita São Paulo ainda organizaram o protesto contra a filósofa Judith Butler no SESC Pompéia, se juntaram ao MBL na Câmara para pressionar pelo bizarro projeto Escola Sem Partido, e convocaram uma marcha em apoio à candidatura de Jair Bolsonaro. Só close errado.

Reprodução/Facebook

Assassinos e torturadores do regime militar serão louvados. Haverá um concurso para escolher a melhor fantasia do delegado Sérgio Paranhos Fleury. O vencedor será agraciado um livro do Coronel Ustra. Os dois monstros serão os principais nomes a serem celebrados e contam com suas imagens estampando os cards que convidam para o bloco.

Ná página do evento, os organizadores prometem “cerveja, opressão, carne, opressão e marchinhas opressoras”. “Se você é anticomunista, não pode perder! Venham à caça, soldados!”.

 

Apologia à tortura?

Procuradores do MP-SP entraram com uma ação tentando impedir que o bloco desfilasse com esse nome, alegando apologia ao crime de tortura. O vice-presidente do grupo disse cinicamente que não há apologia, porque, no seu entendimento, “não houve aplicação desse tipo de método aplicado durante a ditadura militar. O que a gente está pedindo é um revisionismo histórico”. A juíza entendeu que a proibição representaria censura prévia e violação da liberdade de expressão. Mandou seguir o baile, o que me pareceu correto.

No último sábado, um dos integrantes do bloco levou uns sopapos de antifascistas enquanto se dirigia a uma palestra sobre o regime militar na sede do Direita Brasil. O fã-clube da tortura reagiu com indignação  e repudiou a covardia. Só faltou clamarem pelos Direitos Humanos.

Os organizadores ficaram preocupadinhos com possíveis retaliações e resolveram alterar o endereço do evento, que seria em frente ao DOI-CODI, o famoso palco de tortura de presos políticos. Para a proteção dos viúvos da ditadura, agora o bloco desfilará em local fechado e endereço secreto, quase que clandestinamente. “A gente também queria sair na rua, mas como você percebeu aqui não é um país democrático”, lembrou o vice-presidente do grupo e fã da ditadura militar. “Como vão famílias, não quero ser responsável por uma carnificina”. Bom, então acho que podemos ficar tranquilos. Não haverá carnificina, apenas a exaltação dela.

Na última quinta-feira, uma decisão do TJ-SP mudou tudo. O bloco foi proibido de desfilar. É uma pena. Acho que esses reaças paulistanos tinham o direito de passar essa vergonha na avenida.

QUANDO VAMOS ABRIR A CAIXA-PRETA DO JUDICIÁRIO?

LOGO NO INÍCIO do seu primeiro mandato, Lula questionou o excesso de autonomia do Poder Judiciário e defendeu a existência de um controle externo. “Não é meter a mão na decisão do juiz. É pelo menos saber como funciona a caixa-preta de um Judiciário que muitas vezes se sente intocável”. A declaração causou grande mal-estar entre os magistrados. Imediatamente, presidentes de tribunais superiores e de entidades de classe dos juízes a repudiaram. Essa grande reação corporativista é um padrão, acontece toda vez que a categoria é criticada publicamente.

Em 2004, sob muitas críticas, foi criado o importante Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como órgão de controle, mas a caixa-preta do judiciário ainda segue intocável. O Brasil tem o poder judiciário e o Ministério Público mais caros do mundo e boa parte dos seus integrantes não quer que isso mude.

O juiz Marcelo Bretas, um dos heróis anti-corrupção forjados nos tribunais, virou notícia esta semana ao recorrer à Justiça para garantir o direito de sua esposa receber auxílio-moradia, contrariando uma proibição do CNJ – criada justamente após o ministro Fux autorizar o pagamento do benefício para toda a magistratura, e não apenas a quem não tem residência na cidade em que trabalha.

Além de Bretas, diversos outros colegas recorreram aos tribunais para conseguir o benefício duplo. O primeiro juiz sorteado para julgar o pedido de Bretas, por exemplo, teve que se declarar impedido por também ter requerido o benefício em dose dupla. A farra do auxílio-moradia também passa pelas cortes superiores: 26 ministros recebem o penduricalho mesmo tendo imóvel próprio em Brasília (alguns tem mais de um imóvel).

Outro herói anti-corrupção que não abre mão de receber o auxílio-moradia mesmo tendo casa própria a 3 km do trabalho é Sergio Moro. O juiz se defendeu afirmando que o benefício “compensa a falta de reajuste dos vencimentos desde 1 de janeiro de 2015 e que, pela lei, deveriam ser anualmente reajustados”. Ele reivindica algo que nenhuma categoria de funcionário público tem: reajuste anual. E ainda por cima admite que o auxílio – de caráter indenizatório e que ele mesmo considera discutível –serve como um disfarce para compensar a falta de reajuste salarial.

É curioso como juízes da Lava Jato, afamados pela defesa da ética pública, se sentem à vontade para receber penduricalhos que colocam suas remunerações acima do teto.

Em um tweet cheio de ironia e emoticons, Bretas respondeu aos que criticaram o acúmulo de benefícios.

Bretas fala nas redes como se fosse um cidadão latino-americano, sem dinheiro no banco, que estava apenas lutando pelos seus direitos. Acredita ser justo que ele e sua esposa recebam dos cofres públicos um auxílio-moradia em dose dupla mesmo morando debaixo do mesmo teto. O magistrado, que afirma ser a bíblia o livro principal da sua Vara, considera moralmente aceitável que o Estado ajude o casal a custear uma espaçosa residência com vista para o Pão de Açúcar em um dos endereços mais valorizados do Rio de Janeiro.

Casa do juiz Marcelo Bretas.

Reprodução

Bretas não suportou as críticas e saiu bloqueando todo mundo no Twitter. Logo em seguida, anunciou que daria um tempo da rede social – um espaço que ele usava com frequência, inclusive para bater boca com políticos. Foi uma saída triunfal, comemorando 30 mil seguidores, e ostentando um bizarro apoio da Associação dos Juízes Federais  (AJUFE).

Agradeço aos mais de 30 mil seguidores.
Findo este período de férias, informo que não usarei esta conta de Twitter pelos próximos meses.
Teremos um ano de muito trabalho …
Até 👋🏼

A esperada reação corporativista veio no dia seguinte. A Associação de Juízes Federais do Rio de Janeiro e Espírito Santo correu para proteger o colega dos críticos e lançou nota pública em sua defesa. Em entrevista ao The Intercept Brasil, o presidente da entidade afirmou que não só Bretas, mas toda a categoria está sofrendo uma perseguição pela sua atuação nos casos de corrupção. O magistrado, assim como Bretas, é casado com uma juíza, e também recebe o auxílio em dobro.

As respostas da nobreza judiciária às críticas quase sempre resvalam nesse humor involuntário. Não custa lembrar a famosa declaração de José Renato Nalini, ex-presidente do TJ-SP e atual secretário de Educação de São Paulo, que defendeu o pagamento do auxílio-moradia para que juízes pudessem “comprar terno em Miami”:

Mas nem sempre a reação é motivo para risadas. Quando a Gazeta do Povo iniciou uma série de reportagens sobre os vencimentos dos membros do Judiciário e do MP do Paraná, revelando que a remuneração total dos magistrados e promotores ultrapassa o teto do funcionalismo público, entidades representativas dos magistrados e dos promotores  se indignaram em nota pública.

Mas a coisa não ficaria nisso. Pelo grave crime de cometer jornalismo, o jornal e os repórteres que assinaram as matérias foram alvos de uma série de ações judiciais coordenadas por magistrados paranaenses. Foram mais de 40 ações individuais movidas em juizados especiais com pedidos de indenização que, somados, chegam a R$1,3 milhão. Um áudio publicado pelo BuzzFeed News mostrou um juiz orientando os colegas a iniciar a onda de processos contra os jornalistas.

A casta jurídica está sempre alerta em defesa dos seus privilégios.

A retaliação veio com requintes de crueldade: além dos conteúdos das ações serem praticamente os mesmos, todas foram movidas em juizados especiais – que só podem julgar causas que não ultrapassam 40 salários mínimos. Assim, não houve possibilidade de recursos a Cortes superiores, garantindo que os casos fossem julgados apenas pelos tribunais paranaenses. Parte da estratégia intimidatória é o fato das ações terem sido ajuizadas em 16 cidades do Paraná, fazendo com que os jornalistas tivessem que viajar pelo estado para participar das audiências. O recado para quem questionou os privilégios dos meritíssimos foi claro: a casta jurídica está sempre alerta em defesa dos seus privilégios.

“VER O RACISMO COMO UM ‘PROBLEMA DOS NEGROS’ É UM PRIVILÉGIO DOS BRANCOS”

O BRASIL ESTÁ longe de ser uma democracia racial, como inúmeros fatos demonstraram ao longo de 2017. A demissão do apresentador William Waack, da TV Globo, depois de dizer que uma buzina insistente era  “coisa de preto”, uma festa em que secundaristas se fantasiaram de faxineiras e entregadores de pizza, a fala do ministro Luís Roberto Barroso sobre Joaquim Barbosa ser um “negro de primeira linha”, os novos ataques online sofridos por personalidades como a atriz Taís Araújo, a apresentadora Maria Júlia Coutinho e a Miss Brasil 2017, Monalysa Alcântara, entre outros, ampliaram o debate sobre o tema. Os brancos, porém, pouco discutiram sobre seu papel nessa história.

Em entrevista a The Intercept Brasil, a pesquisadora Lia Vainer Schucman fala sobre hierarquias raciais e a sua relação com os privilégios da branquitude.

O que significa ser branco em nossa cultura? Quais acessos, possibilidades e vantagens são garantidos aos brancos em função do racismo? Qual o papel dos brancos no combate ao problema? Em entrevista a The Intercept Brasil, a pesquisadora Lia Vainer Schucman fala sobre hierarquias raciais e a sua relação com os privilégios da branquitude.

“É um processo individual, coletivo e institucional. Depois de reconhecer que há privilégios por conta do racismo, quem quer se opor ao problema tem que fazer uma vigilância constante”, diz Schucman. Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), ela enfatiza que o racismo não pode ser combatido somente com educação. “O racismo é um problema material. A educação ajuda, mas não se combate o racismo sem redistribuição de renda, terra e poder”, afirma a pesquisadora.

The Intercept Brasil: O que é a branquitude? Qual a sua relação com o racismo?

Lia Vainer Schucman: Quando falamos em em branquitude, primeiro devemos pensar em contexto. Falar em branquitude pode se referir aos estudos sobre populações brancas, como italianos, alemães, portugueses etc. Mas, no contexto do movimento antirracista, trata-se dos estudos críticos da branquitude. Ou seja: pensar como a branquitude se constrói a partir do racismo. O termo ”branquitude” remete à ideia da identidade racial branca: é quando os brancos começam a ser racializados, tais como negros e indígenas nas sociedades estruturadas pela ideia de raça.

Olham-se os negros como um grupo racializado, os indígenas como grupo racializado, mas os brancos como indivíduos.

A raça é um conceito construído no século 19 por uma pseudociência que vai dizer que um determinado fenótipo vai ter uma continuidade moral, intelectual, estética. Falar em identidade racial branca é falar que há significados histórico-culturais construídos sobre o fenótipo branco – fenótipo que terá atribuições morais, intelectuais e estéticas que trazem uma ideia de civilização por trás. Esse conceito de raça foi construído com uma ideia fictícia de superioridade: o próprio grupo que inventou o conceito (brancos europeus) hierarquizou e disse que algumas atribuições eram melhores do que outras. Então, os brancos se colocaram em uma posição de superioridade em relação a outros grupos.

Ruth Frankenberg, teórica britânica do tema, diz que a branquitude que é um “lugar confortável, onde você olha os outros através da lente que você não olha a si mesmo”, e esta lente é a raça. Olham-se os negros como um grupo racializado, os indígenas como grupo racializado, mas os brancos como indivíduos. A branquitude é uma racialidade que se compõe desta noção de raça construída no século XIX, mas que não é vista enquanto tal: é vista como neutra. E, além de neutra, ela blinda aos brancos a ideia do que é negativo. Mesmo que os brancos europeus tenham feito a escravização de negros e indígenas, o genocídio dos judeus, a colonização da África e do Oriente, eles aparecem no imaginário como continente civilizatório, enquanto a África aparece como o continente da “barbárie”.

TIB Como essa branquitude funciona no Brasil?

LVS Quando pensamos identidade racial branca no Brasil, devemos entender como pensamos identidade, como pensamos raça e quem é considerado branco na sociedade brasileira. Primeiro, é importante lembrar que “identidade” é diferente de “identificações”. A identificação é um percurso individual de um sujeito. Uma pessoa pode ser branca e ter identificações com a capoeira, com o candomblé, com o samba – tidos como sendo da chamada “cultura negra”. A identidade coletiva, não: ela é construída sócio-historicamente e depende da estrutura social em que um indivíduo está inserido.

Sou negro, minha filha é branca e tenho medo de ir sozinho com ela ao shoppingLEIA TAMBÉMSou negro, minha filha é branca e tenho medo de ir sozinho com ela ao shopping

Então, pensando que no Brasil o racismo é de fenótipo, mesmo que uma pessoa tenha identificações com a chamada “cultura negra”, se sua cor da pele é vista como branca, então ela é branca. Ou seja: é o fenótipo que vai dizer quem é branco e quem não é. Vale dizer que na região Sul é um pouco diferente: a branquitude se dá não só pelo fenótipo, mas também pela origem étnica dos indivíduos. Feita essa ressalva, podemos falar que, de modo geral, os brancos no Brasil são considerados a partir do fenótipo. Então, a identidade racial aqui é esse olhar sócio-histórico construído pelo fenótipo. Essa identidade não é fluida como podemos pensar, às vezes, sobre o gênero e outras classificações. A identidade é mais fixa quando falamos de raça, no sentido de que a classificação acontece logo, pelo olhar.

Mesmo sendo um conceito que não existe biologicamente, esta ideia da raça branca como superior, construída no século XIX, foi apropriada pelos sujeitos e está em tudo no Brasil hoje.

Um negro sempre está carregando a raça, é sempre representante dos negros, enquanto um branco é representante dele mesmo.

TIB Em que situações do cotidiano se vê essa branquitude?

LVS Quando as pessoas falam que o cabelo liso é superior, mais bonito do que outros, ou quando elas elogiam “traços finos”, elas usam este conceito de raça para falar que há uma superioridade estética de um grupo sobre outro. Já vi criança de três anos de idade dizendo que acha o olho azul “o mais bonito”. De onde ela tira isso? Da mídia, das propagandas, da escola, onde professores falam para as crianças com esse fenótipo que os olhos azuis são lindos. A gente acha uma coisa pequena, mas essa pessoa com olho azul cresce com uma auto-estima muito maior do que outras que crescem ouvindo que o seu cabelo “é difícil de pentear”. Outro exemplo é quando alguém pergunta a uma pessoa negra brasileira o que ela acha do Barack Obama. Se alguém pergunta a um branco brasileiro o que ele acha do Donald Trump, associando que aquele branco (Trump) tem alguma representatividade das pessoas brancas, a pessoa vai falar que é uma generalização e vai perguntar o que ela tem a ver com o Trump. Um negro sempre está carregando a raça, é sempre representante dos negros, enquanto um branco é representante dele mesmo.

Se você pensa que a raça pode ser fluida, você pensa que as pessoas podem escolher a raça. Mas elas não podem.

Você disse que a identidade racial não é tão fluida como sexualidade e identidades de gênero. No fim de Maio, a revista feminista dos EUA Hypathia publicou um artigo de que defendia a ideia de uma “identidade transracial”. No artigo, a autora defende que os argumentos que amparam a identidade transgênero deveriam amparar a possibilidade de uma identidade ”transracial”.

Não existe essa categoria transr-racial, que pode partir da escolha dos sujeitos. Se você pensa que a raça pode ser fluida, você pensa que as pessoas podem escolher a raça. Mas elas não podem. Falando de sociedades estruturadas pelo racismo, uma pessoa negra não pode acordar um dia e falar que não é negra porque se identifica com Mozart, gosta de ouvir música clássica, estuda filosofia alemã e tem referências europeias. Não existe essa possibilidade porque a gente está em uma sociedade estruturada pelo racismo de tal forma que a polícia vai parar essa pessoa, ela vai sofrer mais batidas policiais, por exemplo.

Pessoas negras não têm o direito de se desracializar. Já as brancas podem zoar com isso, brincar com essa racialidade o tempo todo sem problemas. Isso é um privilégio da branquitude.

No início da minha tese de doutorado (“Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo”), relato que fui a uma festa e perguntei a pessoas brancas qual era a raça delas. As pessoas iam respondendo “pitbull”, um outro falou “marciano”. Somente uma pessoa se declarou branca. Se um negro falar que a raça dele é “marciano”, vão falar que ele não quer admitir ou que está negando a própria raça. Pessoas negras não têm o direito de se desracializar. Já as brancas podem zoar com isso, brincar com essa racialidade o tempo todo sem problemas. Isso é um privilégio da branquitude.

Caso William Waack: a cumplicidade também é agente do racismoLEIA TAMBÉMCaso William Waack: a cumplicidade também é agente do racismo

Em junho de 2017 , uma escola de Novo Hamburgo (RS) promoveu a festa “Se nada der certo”, em que estudantes secundaristas “se fantasiaram” de faxineiras, entregadores de pizza, seguranças, atendentes de supermercado e entregadores de pizza. A festa gerou repercussões nas redes sociais e uma das críticas se refere ao racismo na escolha das profissões. Como você avalia isso?

Não dá pra pensar raça no Brasil sem pensar em trabalho – aquilo que no imaginário da população brasileira é nomeado como ”trabalho de branco” e trabalho dos ”não-brancos” (descendentes indígenas e a população negra brasileira). Em um exercício que propus em uma disciplina, coloquei fotos de uma mulher branca e de uma mulher negra com minissaia, um terninho e uma blusinha. E coloquei um homem branco e um homem negro de terno e gravata. Pedi para os estudante pensarem quais eram as profissões destas pessoas. Para a mulher branca, disseram “psicóloga”, “dentista”, “advogada”e “gerente de banco”. Tratam-se de profissões liberais, que geralmente exigem uma formação universitária. Para a mulher negra, disseram “prostituta”, “empregada doméstica” e “secretária”. Para os homens brancos, apareceram as profissões de “médico”, “dentista”, “advogado”, “gerente de banco”, “empresário”, enquanto para o homem negro disseram “jogador de futebol”, “segurança”, “motorista” e “pagodeiro”. As respostas mostram que não era por causa da roupa e que os lugares de trabalho no Brasil são racializados.

TIB O que isso mostra sobre o racismo no Brasil?

LVS Em todos os lugares onde a branquitude é hegemônica, aprende-se a ser racista. Mas em alguns, aprende-se e se adere abertamente – como ocorreu no apartheid da África do Sul. No Brasil, é difícil as pessoas aderirem ao racismo tal como se adere a um partido político ou a uma doutrina, movido por ideologia, como foi a Ku Klux Klan nos Estados Unidos ou o partido nazista na Alemanha. Existem grupos assim, como o ”o Sul é o meu país”, no Rio Grande do Sul, mas eles não chegam a 10% dos racistas brasileiros.

Aqui, as pessoas aprendem a ser racistas: elas olham um cargo de poder (como políticos, médicos, engenheiros), veem que eles são ocupados por pessoas brancas e têm um pensamento quase infantil de que isso acontece porque os brancos são melhores. Não se pensa nisso como uma relação de poder.

O fato de brancos estarem nos lugares de poder gera racismo, e o racismo faz com que só brancos estejam nestes espaços. É uma relação dialética. A resposta que as pessoas dão muitas vezes – de que não se trata de ”trabalho para negros”, mas que elas só veem negros nestas posições – não é mentirosa, porque elas veem aquilo no cotidiano. Mas é uma resposta acrítica: elas não veem que isso só acontece por causa do racismo.

É uma resposta que não faz a crítica social – esses lugares subalternos são ocupados por pessoas negras por quê? Falta resposta crítica de colocar o racismo nessa configuração do que as pessoas veem: em sua maioria, esses cargos são ocupados por negros e isso é culpa do racismo.

Onde o racismo se escondeLEIA TAMBÉMOnde o racismo se esconde

Você disse que, para o grupo branco, a raça branca aparece como “neutra”. Em 2011, muros de uma escola no bairro do Limão (Zona Norte de São Paulo) foi pichada com dizeres como “vamos cuidar de nossas crianças brancas” após a escola incluir no currículo disciplinas sobre a cultura dos negros. A raça branca não apareceu neste contexto?

Antes das cotas raciais para universidades federais, existia um discurso muito mais forte de que “somos todos misturados”, que trazia aquela ideia da mestiçagem desenvolvida pelo Gilberto Freyre. Depois das cotas, as pessoas começaram a falar sobre os próprios privilégios – de uma forma tosca, com falas do tipo “vou perder minha vaga”. Esse pensamento já traz de antemão a ideia de que a vaga é de uma pessoa branca.

Como uma pessoa negra está “roubando” uma vaga? Universidades públicas são lugares públicos, pagos pela população brasileira composta por 52% de negros. Então essa vaga “estava para” sujeitos brancos a partir de privilégios.

Em um capítulo da minha tese de doutorado, falo sobre o “medo branco”, que ocorre quando os brancos começam a se racializar. A pessoa só fala que vai perder uma vaga na universidade se ela assumir que é branca. Essa invisibilidade da raça branca cai em duas situações: quando há perda de privilégios ou nos momentos de ser racista.  Existe um interesse: a raça branca aparece ou desaparece, dependendo do contexto. Mas, em geral, pessoas brancas não são vistas como pertencendo a uma raça.

O medo branco aparece toda vez que o negro não está subalterno.

TIB Em que outras ocasiões ocorre o “medo branco”?

LVS O “medo branco” é um conceito proposto pela historiadora Celia Maria de Azevedo em sua tese de doutorado “Onda negra, medo branco“. Ela escreveu sobre o período pós-abolição, quando havia muito mais negros do que brancos na sociedade brasileira. Na época, todos os lugares, não só no Brasil, tinham medo de uma “haitização”, dos efeitos da revolução negra do Haiti. Então, se pensou no que fazer para o Brasil ficar branco. É o medo do período pós-abolição.

Eu vejo o “medo branco” como o medo da auto-determinação negra. Em geral, as pessoas nas universidades não querem achar que as cotas raciais foi resultado da auto-determinação de movimentos sociais negros. Elas dizem que a instituição “concedeu” as cotas, como se os brancos tivessem dado isso. Foi uma conquista negra.

Se 52% da população brasileira sofre racismo, é porque tem a outra porcentagem inteira para legitimar essa estrutura de poder.

É como se a branquitude tentasse o tempo todo controlar até onde os negros podem ir e o que podem ser. Isso é próprio da branquitude. Isso é um medo da auto-determinação que tem a ver com a perda de privilégios. Essa perda se dá quando brancos e negros têm uma relação sujeito-sujeito e não sujeito-subalterno. Brancos estão acostumados a estar neste lugar de poder. Em uma das 40 entrevistas para o meu doutorado, uma manicure disse que estranhou muito que a dona do salão onde ela trabalhava fosse negra. Ela diz que estranhou ter recebido ordens de uma pessoa negra e que aquilo “estava invertido”. Quando uma pessoa diz isso, ela pressupõe que há uma posição “normal” – com o branco em lugar de poder e o negro como subalterno. O medo branco aparece toda vez que o negro não está subalterno.

O que a polêmica sobre o filme “Vazante” nos ensina sobre fragilidade brancaLEIA TAMBÉMO que a polêmica sobre o filme “Vazante” nos ensina sobre fragilidade branca

TIB Qual a importância de pensar a branquitude para se falar sobre o racismo?

LVS A ideia de que o racismo é um “problema de negros” é uma forma do branco ganhar benefícios a partir do racismo e se desresponsabilizar deste problema social. Até brancos que reconhecem o racismo muitas vezes falam que esse é um “problema negro”. Mas as construções identitárias de grupos racializados só existem em relação: não existiriam negros se não existissem brancos. Um não existe sem o outro. Qualquer pessoa negra sofreu racismo na escola. Nunca ouvi um negro dizer que não ouviu colegas de escola chamando de “macaco”  ou mesmo aqueles apelidos vistos como  “carinhosos” – “Pelé”, “Mussum”, “choquito”, “brigadeiro”. Negros foram racializados a vida toda e esse processo não é feito por um único branco. Se 52% da população brasileira sofre racismo, é porque tem a outra porcentagem inteira para legitimar essa estrutura de poder. Se brancos virem o racismo como problema deles também, isso implica abrir mão de privilégios.

TIB O que seria abrir mãos de privilégios?

LVS É um processo individual e coletivo, da estrutura também. Depois de reconhecer que há privilégios por conta do racismo, quem quer se opor ao problema tem que fazer uma vigilância constante, uma auto-análise o tempo todo. Pensando na relação entre indivíduos, o privilégio pode vir quando uma pessoa branca tem mais espaço para falar em uma situação, por exemplo. Pensando na estrutura, em todas as instituições brasileiras há racismo institucional, já que o racismo é estrutural. O racismo institucional é a incapacidade de uma instituição promover a igualdade racial. Então, se uma pessoa é diretora de uma escola infantil e entrou em contato com essa leitura crítica da branquitude, ela deve pensar qual é a história contada nas aulas, que livros didáticos são usados, onde estão as bonecas negras para as crianças brincarem. Se alguém organiza um evento na área de Matemática, deve pensar se vai ter algum(a) profissional negro(a) ali. Não é para chamar negros só quando o assunto é racismo. Por isso é uma vigilância constante. Muita gente entra em contato com o tema acha que não pode fazer nada. Mas acredito que todos temos algum espaço de poder onde podemos fazer algo contra o racismo.

“FALHEI COM MINHA FAMÍLIA POR ESCOLHER SER POLICIAL”

NATAL, RN, 22.12.2017:  PROTESTO-RN - Esposas e parentes de policiais protestam em Natal (RN), nesta sexta-feira (22), exigindo salários em dia e dignidade aos profissionais da área. (Foto: Pedro Vitorino Junior/Photo Press/Folhapress)

MESES DE SALÁRIOS IRREGULARES e atrasados. Empréstimos, juros em cima de juros. Servidores públicos em um desespero tão grande que houve quem chegou ao fim da linha: tirou a própria vida. Poderia ser Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul ou outros estados em crise financeira, mas o caso crítico neste momento vem do Rio Grande do Norte.

O comandante de um dos batalhões do estado dispensou um cabo do serviço porque ele não tinha mais condições de trabalhar sem receber salários. “Não é fácil ver um homem feito chorar de desespero ao narrar a falta de pão em sua residência”.

A reunião entre governo e associações que representam policiais militares e bombeiros – que afirmam não estar em greve, e sim aquartelados, não saindo às ruas devido a falta de recebimento de salários e condições de trabalho – realizada na noite passada (04) terminou sem acordo. A Força Nacional foi acionada e atualmente está presente em quatro cidades da Grande Natal. Uma delas, Parnamirim, chegou cancelou shows e a queima de fogos no reveillon devido a insegurança.

O movimento “Segurança com segurança” começou em 19 de dezembro. A situação dos servidores sem salário não parece ser o centro da situação, tanto, que foi pedida a prisão de policiais que incentivem a paralisação, em vez de determinar o pagamento dos atrasados e a regularização das condições de trabalho.

Um cabo que não pode ser identificado e está há 16 anos na PM do Rio Grande do Norte escreveu um relato a The Intercept Brasil sobre seu atual momento na corporação. Mesmo quase se formando no curso de sargento, ele está arrependido de um dia ter escolhido vestir farda. “Hoje eu sei que falhei com minha família por escolher escolher ser policial e não poder sustentá-la”. Leia o relato do agente sobre seu atual momento na corporação:

Quando prestei concurso para a PM há quase 20 anos, jamais imaginaria que eu e meus colegas iríamos passar o que estamos vivenciando agora.

Estou com o salário de dezembro e o décimo terceiro em atraso, alguns que ganham um pouco mais estão também com o de novembro em atraso. Atrasos que já vêm se prolongando há cerca de 23 meses. Sempre fui um cara altamente controlado com dinheiro, o pouco que ganho como policial militar sempre deu, na medida do possível, para que eu suprisse as minhas necessidades e as da minha família.

Com tantos atrasos, eu, que sempre paguei em dia as minhas contas, hoje me encontro devendo o cheque especial, juros em cima de juros dos cartões de crédito, empréstimos e por aí vai. Semana passada, venceu o boleto do consórcio que pago com muito esforço e suor para, um dia, comprar meu automóvel próprio. Todo mundo sabe que andar de ônibus ou qualquer meio de transporte público hoje, sendo policial, é quase a mesma coisa que cometer um suicídio.

Esses constantes atrasos estão criando um abalo emocional muito grande, me sinto desprezado pelo governo, me sinto impotente frente às situações financeiras que passo porque não me resta mais nada a fazer. Muitas vezes me sinto um lixo.

Vou confessar algo que me aconteceu há alguns dias e, quando me lembro, meus olhos se enchem de lágrimas.

Eu tenho um filho que mora em outro estado. Ano passado, eu fiz uma promessa a ele: disse que o traria no final de 2017 para passar os meses de férias comigo. Agora, em janeiro, já faz três anos que não o vejo a não ser por fotos ou ligações. Meu filho já é um adolescente, sinto que precisa do pai junto para um conselho, uma conversa. Essa semana, por causa da falta de pagamento do meu salário, tive que ligar para o meu filho e tentar explicar que iria quebrar a promessa que tinha feito a ele porque não tinha dinheiro nem para me alimentar, quanto mais para custear sua vinda para minha casa.

Durante a conversa, pude sentir seu tom de voz mudar. Percebi o quanto ele ficou decepcionado comigo como pai. Na hora, me bateu uma dor tão grande que eu me arrependi de abraçar a carreira de policial. Até fiz um pequeno texto e enviei para uns amigos, mais ou menos assim: ‘Hoje eu sei que falhei com minha família por escolher ser policial e não poder sustentá-la.’

Eu disse essas palavras com tanta dor no coração! Em quase 20 anos de dedicação à sociedade, foi a primeira vez na vida que eu me arrependi de ser policial. Será que dá pra imaginar o quanto isso dói? Não sei, mas eu sei o quanto isso está me custando psicologicamente.

Em outros países, os policiais são vistos como heróis. Aqui, infelizmente, somos mal vistos. Alguns têm até nojo e desprezo pela gente.

Recentemente, depois de quase 20 anos de serviços prestados à PMRN [Polícia Militar do Rio Grande do Norte], fui convocado para fazer o curso de sargentos, que pode dar uma qualidade de vida melhor para mim e minha família. Esse curso era para ser comemorado, ser motivo de festa e de muitas alegrias, mas na hora que caiu a ficha, me bateu um desespero, me vieram as perguntas: como é que eu vou chegar ao local do curso se eu não tenho o dinheiro da passagem? Como é que eu vou frequentar o curso, se há três ou quatro anos eu não recebo fardamento, coturno(bota), cobertura(boné), não tenho como me alimentar durante o curso ou qualquer equipamentos para desenvolver minha atividade?

A turma do curso, que era para estar cheia de policiais alegres com as futuras ascensões, é composta por homens e mulheres cabisbaixos, com pouquíssimas palavras ditas, pessoas com a cabeça não se sabe onde.

Como pode um policial sair para trabalhar de barriga vazia, meu Deus? Onde vamos parar?

Esses comportamentos, que tanto eu quanto toda a tropa estamos tendo, já deixaram os oficiais preocupados. Eles já perceberam que eu e outros mais já estamos depressivos com tantos problemas que estamos carregando sem termos culpa, já alertaram os instrutores e monitores para que informem se notarem algum comportamento ou atitude estranha.

Ontem mesmo, um colega tentou se matar após a esposa ligar para ele chorando e dizendo que estava com fome. Eu fico me perguntando como podemos sair de nossas casas para combater o crime se não temos armas adequadas, munições suficientes, coletes (muitos, por sinal, estão vencidos), viaturas sem a menor condição de rodar, farda, e o mais importante, os nossos salários. Se eu fosse explicar, daria um livro.

Eu ouço, todos os dias, amigos e colegas dizendo ‘eu estou passando fome’. Como pode um policial sair para trabalhar de barriga vazia, meu Deus? Onde vamos parar?

Eu estou escrevendo esse texto, e minhas lágrimas estão rolando pelas teclas do teclado deste computador. Já não sei o que faço para sanar essa situação, não recebo meu salário, não posso fazer bico, e aí? O que é que eu vou fazer para comer e pagar minhas contas?

LONGE DOS HOLOFOTES, ALCKMIN APROVA CONGELAMENTO DE GASTOS PARA SÃO PAULO

SÃO PAULO, SP - 13.12.2017: PEC DO TETO É VOTADA NA ALESP - Manifestantes contra PL 920 assistem à sessão na ALESP, na tarde desta quarta-feira (13). Deputados debatem e votam a PEC. (Foto: Bruno Rocha /Fotoarena/Folhapress) ORG XMIT: 1447516

NA SEMANA EM que o governo federal comemorou o primeiro aniversário do congelamento dos gastos públicos, a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) aprovou uma medida semelhante para o Estado. No começo da noite de quinta-feira (14) a ampla maioria dos deputados votou a favor do Projeto de Lei (PL) 920, que trata da renegociação de dívidas com a União e impede o aumento das despesas por dois anos.

A criação de uma lei que paralise os gastos do Estado era pré-requisito para que São Paulo mantivesse sua parte em um acordo celebrado com o governo federal no fim de 2016. Assim como outros 19 estados, São Paulo se comprometeu a congelar os gastos por dois anos em troca da renegociação de suas dívidas junto à União.

O acordo alongou o prazo para o pagamento de cerca de R$ 232 bilhões em dez anos e mudou o indexador. Isso, segundo cálculos do governo, gerou uma redução de 17,4 bilhões no saldo devedor, e, até junho de 2018, trará uma redução no serviço da dívida (juros, correção monetária e outros encargos) de R$ 15,6 bilhões. Caso o PL 920 não fosse aprovado, São Paulo correria o risco de perder esse desconto e poderia ter dificuldade em tomar empréstimos com o governo no futuro.

A aprovação da medida foi uma vitória importante para o governador Geraldo Alckmin (PSDB). Favorito tucano na corrida presidencial, ele precisa se credenciar como o candidato do mercado, portanto bom cumpridor das imposições fiscais.

Alckmin tem ampla maioria na Alesp e costuma aprovar projetos a toque de caixa. Esse, contudo, não foi fácil. O congelamento ameaça o reajuste dos servidores públicos, sendo que a maior parte deles já está há anos sem receber sequer a correção dos salários pela inflação. Nas tardes de terça, quarta e quinta, o plenário normalmente silencioso da Assembleia estava tomado por manifestantes contrários à medida. Na tarde de quinta, PT, PSOL e PCdoB tentaram obstruir a tramitação, orientando seus deputados a não votarem, para evitar que se atingisse o quórum mínimo, mas a base aliada conseguiu  maioria e o projeto foi aprovado.

Orçamento impositivo

Em contrapartida, no fim da noite desta quinta, a Alesp aprovou uma proposta de emenda à constituição do Estado, implementando o orçamento impositivo. Com isso, o governo será obrigado a liberar dinheiro para emendas dos parlamentares. Essa havia sido uma demanda da base aliada durante todo o ano, que reclamava da seca de recursos, e ameaçava barrar pautas de interesse de Alckmin, como a aprovação do teto dos gastos.

O PL 920 é impopular desde que começou a tramitar. O próprio líder do governo, deputado Barros Munhoz (PSDB), foi enfático ao criticá-lo durante uma audiência no fim de outubro:

“Depois de três anos de sofrimento sem aumento, os servidores de São Paulo, que são o sustentáculo deste Estado, recebem a notícia de um projeto deste teor. (…) Eu já vi burro querer esconder que é burro. Mas burro se jactar de ser burro, eu nunca tinha visto”.

Os arroubos do deputado, contudo, não duraram. Pouco mais de um mês depois, na última sexta-feira (8), Munhoz voltou à tribuna para defender o texto que antes considerava burrice.

“Não é o bicho papão que estão falando”, disse.

Depois partiu para o ataque, dessa vez contra manifestantes que se opõem à medida – em grande parte servidores públicos que seriam o sustentáculo do Estado. “Esse pessoal está matraqueando o que ouve porque são pagos pra falar, alguns. Têm tarifa. É xis em dinheiro e é xis em sanduíche de mortadela”, disse o tucano.

A artilharia de Munhoz atingiu também a imprensa que, para o deputado, tem se posicionado contra o PL e é extremamente mal informada.

“Não têm nem noção do que falam”, disse.

The Intercept Brasil solicitou uma entrevista com o líder do governo, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.

Emenda para aumento a servidores

Por isso não se sabe exatamente por que, de uma hora pra outra, ele mudou de ideia, tomando para si a missão de levar adiante o projeto do Bandeirantes. A principal estratégia nesse sentido foi inserir uma emenda na lei que abriu a possibilidade de oferecer reajustes e promoções a servidores.

Para o deputado Carlos Giannazi (PSOL), a solução proposta não passou de uma cortina de fumaça.

“É uma medida para inglês ver, para convencer os deputados da base do governo que estão com medo de votar porque terão um grande desgaste eleitoral”, disse na terça-feira, antes da aprovação final.

Ainda segundo o deputado, o Estado de São Paulo, por ser o mais rico da federação, poderia abrir mão dos empréstimos do governo e, consequentemente, da imposição do teto. E, de fato, estados mais pobres têm se levantado contra a medida do governo federal. Pernambuco considera a possibilidade de se manter no teto “improvável” e a Paraíba levou a questão ao Supremo Tribunal Federal. Além disso, São Paulo tem uma das maiores dívidas, o que também aumenta seu poder de barganha.

A líder da minoria na Alesp, deputada Márcia Lia (PT), comparou o projeto à Emenda Constitucional 95, promulgada há um ano, que limitou os gastos federais:  “É o mesmo projeto. De congelamento nos salários e na contratação de servidores, de diminuição de investimentos. É uma política que reflete uma ideia de diminuição do Estado”, disse. “Estão fazendo ajustes fiscais nas costas dos trabalhadores e daquilo que deveria ser prioridade, como saúde e educação”, completou.

ISENÇÃO TRILIONÁRIA É A CEREJA DO BOLO DA ENTREGA DO PRÉ-SAL

Angra dos Reis - RJ, 03/06/2011. SCAVE - Local do evento da Cerimônia de batismo da Plataforma P - 56. Foto: Ichiro Guerra/PR.

NA ÚLTIMA quarta-feira, Michel Temer e seus comparsas empreenderam mais um ataque contra os cofres públicos. A base governista aprovou uma MP que fará o país abrir mão de 1 trilhão em impostos em favor das petrolíferas estrangeiras que irão explorar o pré-sal brasileiro. Mas este é apenas um dos capítulos finais de um roteiro entreguista que começou a ser desenhado antes mesmo do golpe parlamentar.

Depois do fim do monopólio da Petrobrás em 1997, a exploração dos campos de petróleo passou a obedecer um regime de concessão. Empresas vencedoras de licitação passavam a ser as donas do petróleo e apenas pagavam royalties ao governo. Após a descoberta do pré-sal, o governo Lula propôs uma mudança no modelo de licitação: o vencedor teria que compartilhar com a União a produção do petróleo e a Petrobrás teria que ter obrigatoriamente no mínimo 30% de participação nos consórcios.

Logo após o surgimento das primeiras propostas para o novo marco regulatório, petroleiras internacionais começaram a atuar nos bastidores. Entre 2008 e 2009, telegramas trocados entre o consulado americano no Brasil e Washington, publicados pelo WikiLeaks, revelaram o lobby das petrolíferas para combater as novas regras da exploração do pré-sal. Em uma das mensagens, uma diretora da Exxon aparece preocupada porque a “Petrobrás terá todo controle sobre a compra de equipamentos, tecnologia e a contratação de pessoal, o que poderia prejudicar os fornecedores americanos”. Em outra, uma diretora da Chevron diz que o governo está fazendo uso político do novo modelo e afirma que “as regras sempre podem mudar depois”. Ela ainda afirmou que a nova estratégia a ser adotada é “recrutar novos parceiros para trabalhar no Senado, buscando aprovar emendas essenciais na lei, assim como empurrar a decisão para depois das eleições de outubro”.

Um desses parceiros foi revelado em um dos telegramas intitulado “A indústria de petróleo vai conseguir combater a lei do pré-sal?”. Era o então pré-candidato à presidência José Serra (PSDB), que fez a seguinte promessa para a Chevron: “Deixa esses caras (do PT) fazerem o que eles quiserem. As rodadas de licitações não vão acontecer, e aí nós vamos mostrar a todos que o modelo antigo funcionava… E nós mudaremos de volta”.

Em fevereiro de 2016, o então senador José Serra começa a cumprir a promessa feitas às petroleiras americanas. Uma proposta de sua autoriapara derrubar a obrigatoriedade da presença da Petrobrás na exploração das camadas do pré-sal é aprovada no Senado. Estava plantada a sementinha da dilapidação do pré-sal brasileiro. A proposta também previa acabar com a exigência de contratação de conteúdo local na fabricação de equipamentos. O vice-presidente da ABIMAQ (Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos) acredita que esta medida afetará gravemente a indústria nacional e pode desempregar mais de 1 milhão de brasileiros. Ele ainda questionou: “Imagina um governo decidir a favor de seis petroleiras estrangeiras e virar as costas para 200 mil industrias do seu próprio país? Tem alguma coisa errada”.

Após a tomada de poder, Serra foi escolhido para ser ministro das Relações Exteriores. A raposa amiga das petroleiras internacionais foi escolhida por Temer para intermediar a venda da nossa galinha dos ovos de ouro. E ele tinha pressa em atender aos interesses do lobby internacional. Às vésperas de se confirmar na Câmara sua proposta aprovada no Senado, Serra recebeu no Itamaraty a cúpula da britânica Shell. Será que nosso ministro defendeu os interesses do Brasil nesse encontro? Se levarmos em conta os telegramas interceptados pelo Wikileaks, a resposta é não.

Com a porteira aberta, o governo brasileiro deu início aos primeiros leilões de áreas do pré-sal em outubro passado sob as regras desejadas pelas empresas estrangeiras. As vendas chegaram a ser suspensas pela Justiça Federal pelo potencial de prejuízo ao patrimônio público. É que o preço inicial, estipulado pelo governo, estava muito camarada. A decisão foi revertida e a caravana de Temer e Serra pôde desfilar normalmente na passarela do entreguismo.

Em novembro, o The Guardian publicou novas informações sobre o lobby internacional que ronda o pré-sal. Um telegrama obtido pelo Greenpeace revelou que o governo do Reino Unido atuou fortemente em nome de petroleiras britânicas (Shell, BP e Premier Oil) interessadas em se dar bem nos leilões do pré-sal. Greg Hands, ministro do comércio exterior daquele país, se encontrou pelo menos 3 vezes no mês de março com Paulo Pedrosa, secretário-executivo do Ministério de Minas e Energia. Segundo a reportagem, Pedrosa garantiu ao ministro britânico que estava pressionando internamente o governo brasileiro para atender as demandas dos britânicos. Este lobby descarado em favor de interesses nacionais não ganhou status de escândalo, passou voando no noticiário e rapidamente caiu na vala do esquecimento.

O resultado das ações deste conluio não poderia ser diferente. Tanto as empresas britânicas quanto as americanas se deram muitíssimo bem nos leilões. A Shell, por exemplo, pode ser considerada a grande vencedora.

No lobby do ministro britânico estava também incluída a redução de impostos para os vencedores dos leilões. E como seu pedido é uma ordem, a base governista na Câmara aprovou uma isenção trilionária nesta semana, em plena crise fiscal. Não bastou vender o pré-sal a preço de banana, Temer e sua turma precisavam incrementar o sabujismo. E não se trata apenas de abrir mão de impostos, mas da soberania nacional e do nosso posicionamento na geopolítica mundial. 

Numa época em as renúncias fiscais da Lei Rouanet causam revolta, essa isenção trilionária em favor de interesses internacionais não parece ter incomodado ninguém. Se somarmos as isenções fiscais da Lei Rouanet com todo o dinheiro roubado descoberto pela Lava Jato, por exemplo, não chegaremos nem perto do montante do qual o governo está abrindo mão. É um dos maiores assaltos aos cofres públicos que já se viu. Tudo feito dentro da lei, com a conivência de boa parte do povo brasileira e sob o silêncio da grande mídia.

Assim como as reformas trabalhista e previdenciária foram feitas sob medida para atender os interesses do mercado financeiro, todas as ações do governo Temer em relação ao pré-sal foram para atender os interesses internacionais. Os vendilhões da pátria estão depenando o país e o feirão não tem data para acabar. A entrega do pré-sal virou o grande símbolo da republiqueta de bananas que o Brasil voltou a ser dentro da geopolítica mundial.

A REFORMA DO MERCADO FINANCEIRO CONTRA O POVO BRASILEIRO

DE TODAS AS crueldades impostas pelo governo ilegítimo de Michel Temer, a reforma da previdência sempre pareceu a mais difícil de ser concretizada. A rejeição popular sempre foi enorme e o governo não conta com o mesmo apoio maciço do congresso como em votações anteriores. Diante das dificuldades, foram feitas algumas mudanças no texto, mas nada a ponto de alterar a essência devastadora dos direitos previdenciários. Preocupado com a ameaça do PSDB abandonar a barca furada governista, Temer convidou o nobilíssimo senador Aécio Neves para fazer a articulação e conseguir mais votos a favor da reforma. Não havia nome mais adequado para comandar este ataque aos aposentados.

Mas a melhor estratégia encontrada pelo governo até aqui foi gastar fortunas em propaganda. Mesmo em tempos de arrocho, Temer enfiou a mão nos cofres públicos para iniciar uma gigantesca campanha publicitária a favor da reforma. Só no primeiro semestre deste ano, torrou aproximadamente R$100 milhões em publicidade para tentar torná-la palatável. Está funcionando.

Segundo pesquisa do DataPoder360, a rejeição popular à reforma vem despencando. Em abril, 66% dos pesquisados eram contra. Em novembro, a porcentagem caiu para 51%, enquanto a aprovação subiu de 24% para 32%. Temer então decidiu continuar investindo alto. Esta semana, deputados e senadores autorizaram o governo a gastar mais R$99 milhõesem publicidade pró- reforma. Não se sabe se os meus amigos do MBL estão abocanhando parte da bufunfa, mas, no ano passado, o grupo  foi convocado para ajudar a construir as estratégias de comunicação das reformas – talvez venha daí o tom terrorista adotado pelas campanhas.

Querem nos fazer acreditar que a única alternativa além da reforma é a barbárie.

Além da propaganda oficial, os grandes veículos de comunicação também não cansam de nos informar sobre o tamanho do rombo e a urgência da reforma. O discurso é único, com pouquíssimo espaço para opiniões divergentes. Querem nos fazer acreditar que a única alternativa além da reforma é a barbárie.

Em abril, uma CPI da Previdência foi criada no Senado para investigar as contas da Previdência Social. Ela foi assinada por senadores de todos os partidos, inclusive do PMDB, apesar da pressão do governo. O relatório final da comissão, aprovado por unanimidade, concluiu que não existe déficit na previdência. O que existe é uma má gestão dos recursos e uma enorme negligência na cobrança dos devedores, que deixam de pagar para depois recorrer ao Refis. Empresas privadas devem R$450 bilhões e nem se preocupam em pagar porque sabem que não serão incomodadas pelo governo. Só a JBS deve mais de R$1.8 bilhão para a previdência.

A conclusão da CPI não chega a ser uma novidade, mas um fato chama a atenção: até mesmo os integrantes da bancada governista concordam não haver rombo na previdência brasileira. É um dado relevante, mas pouco se falou a respeito. Diferente do que ocorre com a maioria das CPIs, que sempre estiveram sob holofotes, a da Previdência não recebeu praticamente nenhuma cobertura da mídia, o que talvez se explique pelo fato de que grandes anunciantes sejam também grandes devedores. Os bancos, claro, são os que mais devem.

Os milhões gastos em publicidade são para escamotear essa realidade e empurrar para o trabalhador uma conta que não é dele.

agenda pública do homem por trás da reforma, o secretário da Previdência Social Marcelo Caetano, mostra quais interesses o governo pretende atender. Foram diversos encontros com representantes de instituições financeiras, que são grandes interessados em vender planos de previdência privada. Bancos como Bradesco, Itaú e Santander, devedores milionários da previdência (só o Bradesco deve quase meio bilhão), mantêm encontros frequentes com o secretário. Houve até uma reunião com o MBL, mas não há registro de nenhuma com entidades representativas dos trabalhadores (exceto uma com a UGT, a central sindical amiga de Temer). A desfaçatez é tanta que, até ser denunciado em março deste ano, Caetano acumulava as funções de secretário da Previdência e conselheiro da BrasilPrev – uma das maiores empresas de previdência privada do Brasil.

03/02/2017- Brasília, DF, BRasil- O secretário da Previdência Social, Marcelo Caetano, e o líder do governo na Câmara, deputado Aguinaldo Ribeiro, durante reunião no Ministério da Fazenda.  Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Marcelo Caetano em reunião no Ministério da Fazenda.

 

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Agências de classificação de risco internacionais seguem o discurso hegemônico pró-reforma da mídia brasileira. O tom terrorista também é o mesmo. A Standard & Poor’s chegou a emitir um alerta ameaçando rebaixar a nota do Brasil caso a reforma seja adiada.  

Assim como Dilma não foi deposta por pedaladas fiscais, o objetivo da reforma não é salvar o país da crise, mas atender aos interesses do mercado financeiro. A conta da má gestão desses recursos públicos será empurrada para o trabalhador, enquanto os grandes devedores, que foram perdoados por todos os governos, continuarão sendo preservados. Os bancos ainda serão agraciados com o abocanhamento do mercado da previdência privada que irá bombar após a reforma. É isso o que está em jogo. Os milhões gastos em publicidade são para escamotear essa realidade e empurrar para o trabalhador uma conta que não é dele. Um presidente que não foi eleito está gastando o nosso dinheiro em propaganda para nos convencer de que a única saída para a crise é o esquartejamento dos nossos direitos previdenciários. Esse é o drama brasileiro.

NO CIRCO DA ALERJ, CIDINHA CAMPOS RESUME A INCOERÊNCIA DA POLÍTICA NACIONAL

NA NOSSA POLÍTICA, só não é possível dizer que a incoerência é generalizada porque, para muitos ali, a falta de ética e moral é coerente com suas atitudes desde sempre.

Na sexta (17), enquanto policiais gastavam dinheiro público lançando bombas de gás lacrimogêneo contra manifestantes do lado de fora, o plenário da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) decidiu pela soltura de três deputados presos por corrupção: Edson Albertassi, Paulo Melo e Jorge Picciani. Este último, o presidente da Casa. Dos 39 votos a favor da liberdade dos parlamentares, dez foram de colegas do próprio partido, o PMDB. Até aí, tudo dentro dos (tortos) conformes.

Mas basta olhar com um pouco mais de calma para a lista dos 39 nomes que ratificaram o escárnio para perceber o quanto a incoerência – e não só de princípios, mas até política – foi decisiva. A votação foi apertada: Picciani e sua trupe precisavam de 36 votos para trocar o macarrão de uma cela na cadeia por uma dose de vinho em casa. Então cada “sim” para o relatório que livrou a cara deles foi fundamental.

Comecemos com André Ceciliano (PT). Ué, mas o partido dele não é aquele que reclama que o PMDB de Picciani protagonizou, em Brasília, um golpe para retirar uma presidente legítima do poder? E o que dizer de Jair Bittencourt, Nivaldo Mulim e Renato Cozzolino, do PR? Não é um dos líderes de seu partido no estado, o ex-governador Anthony Garotinho, o principal algoz de Picciani, Cabral e companhia? Para completar, até Paulo Ramos, do tão combativo PSOL, votou a favor do presidente da Casa. O PT anunciou a suspensão de Ceciliano, PR e PSOL optaram pela expulsão dos outros quatro deputados. Ok, mas agora a banda já passou.

Pois bem, somente com esses votos, o resultado já teria sido diferente. Mas há algo ainda mais emblemático: o voto da deputada Cidinha Campos (PDT). Para quem não é do Rio e não a conhece, Cidinha é uma jornalista que ocupa desde o fim da década de 1990 uma cadeira na Alerj. Teve sua carreira ligada ao PDT, principalmente pela afinidade com o ex-governador do Rio Leonel Brizola.

“Eu vejo aqui nessa Casa o cinismo dos ladrões!”

Quem cobre a política fluminense como jornalista há algum tempo possivelmente já deve ter tido Cidinha como fonte em alguma investigação sobre corrupção. Na internet, não é difícil achar vídeos da deputada esbravejando no plenário contra os larápios de colarinho branco:

“Eu vejo aqui nessa Casa o cinismo dos ladrões!”, disse ela, não agora, mas em 2010.

Naquela época, dos discursos mais inflamados de Cidinha, coincidentemente ou não, a deputada se insurgia contra a possível ida de um colega, José Nader Júnior, alvo de um processo de cassação na Alerj, para o Tribunal de Contas do Estado (TCE). Augusto Nunes, colunista da “Veja”, escreveu sobre a postura combativa da deputada um artigo com o seguinte título: “Um discurso que traduziu a indignação contra a roubalheira”.

Agora, Cidinha assistiu calada à tentativa de o PMDB fluminense emplacar o deputado Edson Albertassi, um dos presos-soltos pela Alerj, numa vaga aberta naquele mesmo TCE. A armação só não se concretizou porque foi denunciada pela imprensa e entrou na mira do Ministério Público Federal (MPF).

Em 2006, o discurso contra o “laranja”

Mas há especificamente um auge na incoerência de Cidinha. Na página 90 da petição de 232 páginas do MPF que pediu a prisão de Picciani e sua trupe, é reproduzido um discurso dado em 2006 pela deputada atacando a indicação de Jorge Luiz Ribeiro para exercer à época um cargo de conselheiro da Agência Reguladora de Serviços Públicos (Asep). O MPF cita a fala antiga da parlamentar ao dar um histórico sobre Ribeiro, alvo de mandado de prisão, apontado com um dos emissários de Picciani para o recebimento de propina de empresários de ônibus.

No discurso em plenário, Cidinha diz:

“Não tenho a pretensão de mudar o voto (a favor de indicação de Ribeiro) de ninguém. No curto espaço de tempo que estou aqui, sei que isso não acontece. É preciso mais do que documento, talvez coisas mais palpáveis para ´fazer a cabeça´ dos Senhores Deputados. Não tenho esses instrumentos, mas sei que existem pessoas que têm. E o Deputado Jorge Picciani é um deles. S. Exa tem instrumentos poderosos para ´fazer a cabeça´ desta Casa! E é de S. Exa a sugestão e a indicação de um nome perigoso para integrar esse Conselho: o sr. Jorge Luiz Ribeiro, que certamente irá integrá-lo e vai dizer quanto custará a passagem de ônibus, trem, metrô, o que quiser. Vai continuar comandando a Fetranspor (entidade que reúne empresas de ônibus) e o Detro (departamento responsável pela fiscalização do transporte) e outras casas idôneas que conhecemos nesse estado”.

Em seguida, ela é ainda mais incisiva:

“O sr. Jorge Picciani é que manda nele (Ribeiro). Ele é um laranja do sr. Jorge Picciani.”

Ou seja, a deputada conseguiu a façanha de ser citada na petição do MPF acusando Picciani (ok, há dez anos) e votar a favor da soltura do deputado na última sexta. É um feito e tanto, mas que não surpreende graças ao seu histórico recente, que teve até apoio público ao atual presidente da Alerj numa tentativa frustrada de candidatura ao Senado.

Em suas redes sociais, Cidinha não se manifesta desde meados de outubro. Em sua página no Facebook, a última postagem é do dia 12 daquele mês: um vídeo, de Madre Teresa de Calcutá, que fecha com a frase “Amem uns aos outros”.

A COMPETÊNCIA DE WILLIAM WAACK E O RACISMO COMO “DESLIZE”

NUM MUNDO CADA vez mais radicalizado e polarizado das redes sociais, o excesso de opinião cansa. Concordo. Por isso, sempre penso duas vezes antes de entrar na melhor polêmica dos últimos tempos da última semana. Desta vez, achei que tinha algo importante a dizer. Resolvi arriscar.

Na última quarta (8), como todos já sabem, um vídeo com comentários RACISTAS (perdoem o clichê da caixa alta) do então apresentador do “Jornal da Globo”, William Waack, gravado no ano passado durante a cobertura da campanha eleitoral americana, foi publicado na internet. Ainda bem, as reações foram imediatamente negativas. E levaram a própria emissora a suspender o jornalista.

Em seguida, a polêmica chegou na página 2. Veio a turma do “deixa disso”:

Coluna de Augusto Nunes
Post de Rachel Sherazade

Pois bem, é aí que eu quero entrar. Os que vestiram a camisa de Waack empunham a bandeira do “brilhantismo” de um profissional consagrado por anos e anos de profissão na maior emissora de TV do país. Ponto para ele. Mas e o caráter, não conta? Ok, não o conheço pessoalmente, nunca trabalhei com ele, mas não venham me convencer de que alguém que faz comentários RACISTAS cometeu só um deslize, diante de sua vasta história de sucesso.

Não sei se Waack já praticou outros atos semelhantes ao que foi gravado. Mas o caso traz uma importante discussão para todas as profissões e, especialmente, para o jornalismo, que abracei há 18 anos. Se for competente, o resto não importa?

Desses meus 18 anos de profissão, passei 17 na redação de um grande jornal, antes de chegar a The Intercept Brasil. Convivi com uma imensa maioria de colegas que conseguem juntar a competência e o caráter. Mas, como acredito que aconteça em quase todo lugar, isso não é uma regra absoluta.

Não está gravado, mas existem sim os competentes que acham que quando uma morte acontece fora da Zona Sul do Rio ou dos Jardins em São Paulo, ela não tem assim tanto valor. Há os brilhantes que pensam que uma favela só deve ser notícia se os tiros estão chegando ao asfalto ou se “a empregada disse que a situação está difícil”. Há os fantásticos que acreditam que assediar uma colega na redação é a coisa mais normal do mundo. E por aí vai.

Portanto, caráter e excelência não são necessariamente características que precisam caminhar juntas. Veja a política. Com tudo que pesa em suas costas, Aécio não é competente por estar onde está? E Temer, o odiado, também não? Os estragos que eles fazem na nossa vida estão claros e evidentes. O mesmo vale para jornalistas, ou qualquer outra profissão.

Aos que acham que Waack está sendo vítima de uma abominável execração pública, eu só tenho a dizer que sinto muito. Quantas e quantas vezes jornalistas, com pequenos poderes nas mãos, não praticaram atos semelhantes entre as quatro paredes das redações sem que nada fosse dito? Quem trabalha num veículo de comunicação precisa saber que a tal revolução digital não é só uma mudança de mercado. Ela pode e vai causar exposições indesejáveis, que, no passado, não aconteciam com quem possuía o monopólio da informação.

Não tenho dúvidas de que os “competentes” se unirão. Afinal, sabem que, a qualquer momento, também podem cometer um “deslize” que manche suas “brilhantes carreiras”.

Tweet de Gilmar Mendes

INDESEJÁVEIS: OS MUÇULMANOS ROHINGYA QUE ESCAPARAM DA LIMPEZA ÉTNICA EM MYANMAR

ISOLADOS, APÁTRIDAS, indesejáveis, eles são os cidadãos de país nenhum. Myanmar e Bangladesh empurram um para o outro o destino dessa população, mesmo quando o exército de Myanmar deixa um recado bem claro para todos os rohingyas que o país já não esteja estuprando ou assassinando: “Vão embora e não voltem mais”. Eles então fogem de seus vilarejos até a fronteira com o estado de Rakhine, seu último refúgio em Myanmar.

Quando podem, embarcam em barcos frágeis que muitas vezes viram, e a maioria não consegue atravessar o rio a nado. Corpos de crianças e mulheres jovens chegam à costa de Bangladesh. Às vezes, uma família inteira se perde no mar. É possível ver a devastação noturna das famílias reunindo os mortos, lavando seus corpos e enrolando-os em mortalhas para o enterro, nas fotos de  Paula Bronstein.

Esta reportagem contém imagens fortes que podem chocar alguns leitores.

KUTUPALONG, BANGLADESH - OCTOBER 7: Rohingya wait in line for hours as an emergency food distribution takes place by World Food program ( WFP) and Save The Children October 7, Kutupalong, Cox's Bazar, Bangladesh. Rice, lentils, sugar, salt and oil was given out. Well over half a million Rohingya refugees have fled into Bangladesh since late August during the outbreak of violence in Rakhine state causing a humanitarian crisis in the region with continued challenges for aid agencies. (Photo by Paula Bronstein/Getty Images)

Rohingyas esperam por horas na fila enquanto uma distribuição emergencial de comida é organizada pelo Programa Mundial de Alimentos da ONU (PMA) e pela organização Save the Children. Há distribuição de arroz, lentilha, açúcar, sal e óleo. Foto tirada em 7 de outubro de 2017 no campo de Kutupalong, em Cox’s Bazar, Bangladesh.

 

Foto: Paula Bronstein/Getty Images

 

SHAH PORIR DWIP ISLAND, BANGLADESH - OCTOBER 9:  (EDITORS NOTE: Image contains graphic content.) Madia Khatun, a relative, grieves next to the bodies of 5 children,  after an overcrowded boat carrying Rohingya fleeing Myanmar capsized overnight killed around 12 people including five children on October 9, on Shah Porir Dwip Island, Cox's Bazar, Bangladesh.  Well over a half a million Rohingya refugees have fled into Bangladesh since late August during the outbreak of violence in Rakhine state causing a humanitarian crisis in the region with continued challenges for aid agencies. (Photo by Paula Bronstein/Getty Images)

Madia Khatun chora diante dos corpos de cinco crianças de sua família, depois que um barco superlotado que levava rohingyas fugindo de Myanmar virou durante a noite, matando cerca de 12 pessoas. Foto tirada em 9 de outubro de 2017 na ilha Shah Porir Dwip, em Cox’s Bazar, Bangladesh.

Foto: Paula Bronstein/Getty Images

 

THAINKHALI, BANGLADESH - OCTOBER 7: A man hits anxious Rohingya children with a cane as things get out of control during a humanitarian aid distribution while monsoon rains continue to batter the area causing more difficulties October 7, Thainkhali camp, Cox's Bazar, Bangladesh. Well over half a million Rohingya refugees have fled into Bangladesh since late August during the outbreak of violence in Rakhine state causing a humanitarian crisis in the region with continued challenges for aid agencies. (Photo by Paula Bronstein/Getty Images)

Homem bate com uma vara em crianças rohingya durante uma distribuição de ajuda humanitária, enquanto as chuvas de monção continuam a castigar a região, causando ainda mais dificuldades. Foto tirada em 7 de outubro de 2017 no campo Thainkhali, em Cox’s Bazar, Bangladesh.

 

Foto: Paula Bronstein/Getty Images

A maior parte dos rohingya se amontoa em vilarejos próximos a Bangladesh, esperando pelas travessias misteriosas. Fotógrafos, despachantes, agências de ajuda humanitária escutam os sussurros: a travessia está próxima. De repente, sob a luz que precede o amanhecer, dezenas de milhares de rohingyas se movem, vadeando os arrozais verdes e encharcados, com pertences em trouxas sobre a cabeça, bebês no colo e feridas nos ombros. “A torneira é aberta e subitamente fechada”, conta Bronstein, que fotografou duas dessas migrações monumentais, em 9 e 16 de outubro. Há coordenação entre as autoridades de Myanmar e de Bangladesh? É uma solução temporária? Ou uma limpeza étnica permanente? Ou ainda uma limpeza coordenada?

KUTUPALONG, BANGLADESH - SEPTEMBER 29: Women are seen behind a mosquito net September 29 in Kutupalong refugee camp, Bangladesh. Over a half a million Rohingya refugees have fled into Bangladesh from the horrific violence in Rakhine state in Myanmar causing a humanitarian crisis. (Photo by Paula Bronstein/Getty Images)

Mulheres atrás de um mosquiteiro em 29 de setembro de 2017, no campo de refugiados de Kutupalong, em Bangladesh.

 

Foto: Paula Bronstein/Getty Images

BALUKHALI, BANGLADESH - OCTOBER 2: Laundry is seen hanging overlooking the sprawling refugee camp on October 2, 2017 in Balukhali, Cox's Bazar, Bangladesh. Over a half a million Rohingya refugees have fled into Bangladesh since late August during the outbreak of violence in Rakhine state causing a humanitarian crisis in the region with continued challenges for aid agencies. (Photo by Paula Bronstein/Getty Images)

Roupas penduradas no enorme campo de refugiados de Balukhali, em Cox’s Bazar, Bangladesh. Foto tirada em 2 de outubro de 2017.

 

Foto: Paula Bronstein/Getty Images

 

PALONG KHALI, BANGLADESH - OCTOBER 9: Thousands of Rohingya refugees fleeing from Myanmar walk along a muddy rice field after crossing the border in Palang Khali, Cox's Bazar, Bangladesh.  Well over a half a million Rohingya refugees have fled into Bangladesh since late August during the outbreak of violence in Rakhine state causing a humanitarian crisis in the region with continued challenges for aid agencies. (Photo by Paula Bronstein/Getty Images)

Milhares de refugiados da etnia rohingya fugindo de Myanmar caminham por um enlameado campo de arroz depois de atravessar a fronteira em Palang Khali, Cox’s Bazar, Bangladesh.

 

Foto: Paula Bronstein/Getty Images

Já em Bangladesh, os refugiados ainda caminham por quilômetros. Alguns param em vilarejos abandonados, outros chegam aos campos de refugiados que existem há décadas, e outros ainda apanham com varas de bambu dos guardas de fronteira, que ordenam que permaneçam nos campos mesmo sem saber o que está acontecendo, onde vão parar, quando isso vai acabar.

Por quê?

Talvez para conseguir mais dinheiro, diz Bronstein.

“Foi assustadoramente desumano. Eles chegaram ao lugar onde conseguiriam água e biscoitos do PMA [o Programa Mundial de Alimentos] e as autoridades disseram: ‘Sinto muito, vocês têm que voltar para o campo, para o arrozal’. Eles choravam, principalmente as crianças. ‘Esses terríveis guardas de fronteira de Bangladesh ameaçam nos bater, e não sabemos o que está acontecendo’. Eles foram mantidos por três dias nos campos enlameados e depois foram registrados. Foi atroz. Não consigo encontrar um motivo para terem feito isso.”

KUTUPALONG, BANGLADESH - OCTOBER 4: Aneta Begum,25, is treated for a head injury by staff member Jacqueline Murekezi at the 'Doctors Without Borders' Kutupalong clinic on October 4, 2017 in Cox's Bazar, Bangladesh. Doctors Without Borders has been providing comprehensive basic healthcare services at their Kutupalong clinic since 2009. Due to the current Rohingya crisis, the clinic has expanded it's inpatient capacity dealing with approximately 2,500 out patient treatments and around 1,000 emergency room patients per week. All healthcare services provided at the clinic are free of charge to both the Rohingya refugee population as well as local Bangladeshi patients. Doctors Without Borders has also set up a number of health posts, mobile clinics and water and sanitation services elsewhere in Cox's Bazar to better respond to the influx. Well over a half a million Rohingya refugees have fled into Bangladesh since late August during the outbreak of violence in Rakhine state causing a humanitarian crisis in the region with continued challenges for aid agencies. (Photo by Paula Bronstein/Getty Images)

Aneta Begum, de 25 anos, recebe tratamento para um ferimento na cabeça por Jacqueline Murekezi, da equipe dos Médicos Sem Fronteiras. Foto tirada em 4 de outubro de 2017, em Cox’s Bazar, Bangladesh. A ONG Médicos Sem Fronteiras oferece serviços de saúde básicos em sua clínica de Kutupalong desde 2009. Devido à atual crise, a clínica expandiu sua capacidade de internação e lida com aproximadamente 2.500 pacientes ambulatoriais e mil pacientes de pronto-socorro por semana.

 

Foto: Paula Bronstein/Getty Images

KUTUPALONG, BANGLADESH - OCTOBER 4: Patients wait for testing and medical treatment for tuberculosis at the 'Doctors Without Borders' Kutupalong clinic on October 4, 2017 in Cox's Bazar, Bangladesh. Doctors Without Borders has been providing comprehensive basic healthcare services at their Kutupalong clinic since 2009. Due to the current Rohingya crisis, the clinic has expanded it's inpatient capacity dealing with approximately 2,500 out patient treatments and around 1,000 emergency room patients per week. All healthcare services provided at the clinic are free of charge to both the Rohingya refugee population as well as local Bangladeshi patients. Doctors Without Borders has also set up a number of health posts, mobile clinics and water and sanitation services elsewhere in Cox's Bazar to better respond to the influx. Well over a half a million Rohingya refugees have fled into Bangladesh since late August during the outbreak of violence in Rakhine state causing a humanitarian crisis in the region with continued challenges for aid agencies. (Photo by Paula Bronstein/Getty Images)

Pacientes aguardam para ser examinados e receber tratamento para tuberculose na clínica de Kutupalong dos Médicos Sem Fronteiras. Foto tirada em 4 de outubro de 2017 em Cox’s Bazar, Bangladesh.

 

Foto: Paula Bronstein/Getty Images

KUTUPALONG, BANGLADESH - OCTOBER 4: A severely malnourished, premature 15 day old baby gets treated in the pediatric - neonatal unit at the 'Doctors Without Borders' Kutupalong clinic on October 4, 2017 in Cox's Bazar, Bangladesh. Doctors Without Borders has been providing comprehensive basic healthcare services at their Kutupalong clinic since 2009. Due to the current Rohingya crisis, the clinic has expanded it's inpatient capacity dealing with approximately 2,500 out patient treatments and around 1,000 emergency room patients per week. All healthcare services provided at the clinic are free of charge to both the Rohingya refugee population as well as local Bangladeshi patients. Doctors Without Borders has also set up a number of health posts, mobile clinics and water and sanitation services elsewhere in Cox's Bazar to better respond to the influx. Well over a half a million Rohingya refugees have fled into Bangladesh since late August during the outbreak of violence in Rakhine state causing a humanitarian crisis in the region with continued challenges for aid agencies. (Photo by Paula Bronstein/Getty Images)

Bebê de 15 dias, prematuro e gravemente desnutrido, recebe tratamento na unidade pediátrica e neonatal na clínica de Kutupalong dos Médicos Sem Fronteiras. Foto tirada em 4 de outubro de 2017 em Cox’s Bazar, Bangladesh. A clínica da ONG oferece serviços de saúde básicos desde 2009.

 

Foto: Paula Bronstein/Getty Images

Começa a chover, e não há onde sentar ou dormir.

“Então o sol aparece e vem um arco-íris”, conta Bronstein. “É lindo e as pessoas estão agonizando. A natureza faz coisas curiosas. Sempre há beleza onde as pessoas sofrem.”

Seguindo a estrada, logo depois dos campos onde dezenas de milhares de rohingyas definham, há um resort de praia onde turistas tiram selfies, nadam e tomam drinks.

crise dos rohingya não é novidade. Grupos humanitários vêm prestando ajuda em campos de Bangladesh há décadas. Os rohingyas continuam chegando a cada onda de violência praticada contra eles pelas autoridades de Myanmar. Relatos surgem, vindos das clínicas e dos que conseguiram escapar, sobre soldados e budistas radicais trucidando os homens e arrastando para a floresta meninas de até 9 anos para estupros coletivos.  O estupro é uma das armas da limpeza étnica. Queime os vilarejos. Trucide os homens. Estupre as meninas. Dizime um povo.

Será que existe vontade política ou instituição com autoridade moral para indiciar alguém por crimes de guerra? Quem apresentaria a acusação? A Rússia? Os chineses não fariam isso, há muito em jogo para eles em Myanmar, econômica e geograficamente. Estão envolvidos na construção de uma nova Zona Econômica que conta com um parque industrial, um terminal de óleo e gás e uma linha férrea, no estado de Rakhine, onde vive o povo rohingya. Quanto aos Estados Unidos, sua influência sobre a Ásia diminuiu consideravelmente — como no restante do mundo –, e o país não tem mais credibilidade nos temas de direitos humanos, nem de internacionalismo.

KUTUPALONG, BANGLADESH - SEPTEMBER 29:  Hasina Begum, age 18, holds her newborn baby, 8 days old,  born while she was walking in the forest escaping from Myanmar September 29, 2017 in Kutupalong , Bangladesh. She is now living inside a makeshift shelter packed with new arrivals. Over a half a million Rohingya refugees have fled into Bangladesh from the horrific violence in Rakhine state in Myanmar causing a humanitarian crisis. (Photo by Paula Bronstein/Getty Images)

Hasina Begum, de 18 anos, carrega seu bebê de 8 dias, que nasceu enquanto ela caminhava pela floresta para fugir de Myanmar. Foto tirada em 29 de setembro de 2017 no campo de Kutupalong, em Bangladesh. Ela agora vive num abrigo improvisado, repleto de recém-chegados.

 

Foto: Paula Bronstein/Getty Images

THAINKHALI, BANGLADESH - SEPTEMBER 25:  Sajida Begum, 18, sits in her makeshift tent, washing rice for dinner as smoke catches the late afternoon light September 25, 2017 in Thainkhali camp, Cox's Bazar, Bangladesh. Over 429,000 Rohingya refugees have fled into Bangladesh since late August during the outbreak of violence in Rakhine state as Myanmar's de facto leader Aung San Suu Kyi downplayed the crisis during a speech in Myanmar this week faces and defended the security forces while criticism on her handling of the Rohingya crisis grows. Bangladesh's prime minister, Sheikh Hasina, spoke at the United Nations General Assembly last week, focusing on the humanitarian challenges of hosting the minority Muslim group who currently lack food, medical services, and toilets, while new satellite images from Myanmar's Rakhine state continue to show smoke rising from Rohingya villages.  (Photo by Paula Bronstein/Getty Images)

Sajida Begum, 18 anos, sentada em sua tenda improvisada, lava arroz enquanto a fumaça filtra a luz da tarde. Foto tirada em 25 de setembro de 2017, no campo Thainkhali, em Cox’s Bazar, Bangladesh.

Photo: Paula Bronstein/Getty Images

Existem aproximadamente dois milhões de rohingyas no mundo. Até pouco tempo atrás, a maioria vivia em Myanmar há gerações, com sua identidade questionada e sua história negada. Até o nome Rohingya é fonte de controvérsia. Trata-se de um grupo étnico, político ou religioso? O melhor que se pode dizer é que se trata de uma identidade complexa, arraigada em reinos oscilantes, conquistas muçulmanas, colonialismo, movimentos nacionalistas e limpeza étnica.

Atualmente, cerca de 4,3% da população birmanesa é muçulmana. Mais da metade desse total é parte do grupo dos rohingya. A lei de cidadania de 1982 em Myanmar tornou praticamente impossível para os rohingya se qualificar como cidadãos. (É preciso provar a existência de vínculos na Birmânia antes de 1823, quando os britânicos colonizaram a região, ou pertencer a um dos grupos étnicos aprovados – a lista não inclui os rohingya). Sucessivos governos do país os chamam simplesmente de bengaleses. Por isso, eles não têm direito à liberdade de ir e vir, ao voto, nem ao acesso à educação superior ou a cargos públicos. Eles precisam obter permissão até mesmo para se casar. Desde os anos 1970, a cada nova onda de violência, os rohingyas fogem para Bangladesh, onde também não lhes são conferidos direitos, e de onde muitas vezes são mandados de volta.

A limpeza étnica dos últimos dois meses é a mais grave e a mais sistemática já praticada. Aproximadamente 600 mil pessoas foram expulsas do estado de Rakhine pelo exército de Myanmar e por budistas radicais. Assim, atualmente, cerca 1,3 milhão de rohingyas vivem no limbo, sem um lugar no planeta que possam chamar de “meu país”.

SHAH PORIR DWIP, BANGLADESH - SEPTEMBER 30: Boats full of people continue to arrive along the shores of the Naf River as Rohingya come in the safety of darkness September 30, on Shah Porir Dwip island, Cox's Bazar, Bangladesh. Over a half a million Rohingya refugees have fled into Bangladesh since late August during the outbreak of violence in Rakhine state causing a humanitarian crisis in the region with continued challenges for aid agencies. (Photo by Paula Bronstein/Getty Images)

Barcos cheios de gente continuam a chegar às margens do rio Naf, trazendo os rohingyas que se valem da segurança da escuridão. Foto tirada em 30 de setembro de 2017, na ilha de Shah Porir Dwip, em Cox’s Bazar, Bangladesh.

 

Foto: Paula Bronstein/Getty Images

PATUWARTEK, INANI BEACH, BANGLADESH - SEPTEMBER 28: (EDITORS NOTE: Image depicts death.) The body of a Rohingya woman lays on a beach washed up after a boat sunk in rough seas off the coast of Bangladesh carrying over 100 people September 28 close to Patuwartek, Inani beach, Bangladesh. Seventeen survivors were found along with the bodies of 15 women and children. Over 500 Rohingya refugees have fled into Bangladesh since late August during the outbreak of violence in Rakhine state as Myanmar's de facto leader Aung San Suu Kyi downplayed the crisis during a speech in Myanmar this week faces and defended the security forces while criticism on her handling of the Rohingya crisis grows. Bangladesh's prime minister, Sheikh Hasina, spoke at the United Nations General Assembly last week, focusing on the humanitarian challenges of hosting the minority Muslim group who currently lack food, medical services, and toilets, while new satellite images from Myanmar's Rakhine state continue to show smoke rising from Rohingya villages.  (Photo by Paula Bronstein/Getty Images)

O corpo de uma mulher rohingya jaz na praia, depois que um barco levando mais de cem pessoas naufragou em águas revoltas na costa de Bangladesh. Foto tirada em 28 de setembro perto de Patuwartek, na praia de Inani, em Bangladesh. Dezessete sobreviventes foram encontrados, juntamente com os corpos de 15 mulheres e crianças.

 

Foto: Paula Bronstein/Getty Images

KUTUPALONG, BANGLADESH - OCTOBER 13: People cross a bamboo bridge over a stream as the sun sets on October 13, 2017 at the Kutuplaong refugee camp, Cox's Bazar, Bangladesh. According to UN sources around 519,000 Rohingya refugees had fled across the border from Myanmar to Bangladesh since 25 August. Thousands more remain stranded in Myanmar without the means to cross the border into Bangladesh. (Photo by Paula Bronstein/Getty Images)

Pessoas atravessam uma ponte de bambu sobre um riacho ao pôr-do-sol. Foto tirada em 13 de outubro de 2017 no campo de refugiados de Kutuplaong, em Cox’s Bazar, Bangladesh.

 

Foto: Paula Bronstein/Getty Images

Texto de Elizabeth Rubin. Fotografia de Paula Bronstein.

Tradução: Deborah Leão

NO RIO, TRUCULÊNCIA DA GUARDA MUNICIPAL TAMBÉM ATINGE QUEM TEM LICENÇA

NÃO É DE hoje que a Guarda Municipal do Rio de Janeiro atua com truculência e de forma arbitrária. Entra prefeito e sai prefeito, a política pública para o mercado informal continua repressiva em uma cidade que tem 18 mil ambulantes, contando apenas os cadastrados. No meio deste ano, no Arpoador, um ambulante apanhou com um bastão de ferro de um guarda. Na Praça São Salvador, em Laranjeiras, o “choque de ordem”começou no fim de março deste ano. Em 29 de setembro, a Guarda atacou no Méier, Zona Norte do Rio, em um ponto entre as ruas Dias da Cruz e Silva Rabelo, onde se concentram dezenas de camelôs, a maioria ilegais. O estranho é que a única barraca apreendida foi uma de esfirras que tinha autorização para estar ali comercializando sua mercadoria.

A barraca pertence a Toyba Hussein, refugiada vinda da Etiópia. Ela estava no médico com o marido, Mohamoud Seid, quando a colega que trabalhava com o carrinho ligou dizendo que ele estava sendo apreendido. Quando chegaram ao local, o casal de refugiados se deparou com os guardas jogando fora toda a comida que vendiam. A Guarda Municipal informou que os ambulantes não tinham autorização para trabalhar naquele local e que foram orientados a deixar o lugar outras vezes, porém desobedeceram.

Fiquei sabendo do ocorrido por uma publicação de um amigo que passava no momento. Na mesma hora entrei em contato com ele e, na sequência, falei com Mahmoud, marido de Toyba. Ele dizia, misturando inglês e português: “Por favor, help us! We want to work, we have license. They ‘joga fora’ our esfirra (sic)”. Naquele mesmo dia, fui à casa deles à noite. Eles dividem três cômodos com mais três refugiados, toda a família vive em um quarto. O casal tem três filhos e está esperando mais um.

Passado o fim de semana, fui acompanhar o processo para recuperar o carrinho. No sétimo andar da prefeitura, o chefe da fiscalização nos atende, escuta a história e conclui: “Desculpem senhores, mas aqui na fiscalização não vou poder ajudar. O caso que vocês estão relatando é um caso de polícia, vocês foram roubados. Não é atribuição da guarda apreender mercadoria de quem tem licença, muito menos jogar fora”, disse.

Mahmoud e Toyba descartaram a possibilidade de ir à polícia por medo de represálias: “Trabalhamos na rua. É muito duro, estamos expostos a tudo”, explicaram.

No último dia 4, eles finalmente conseguiram recuperar o carrinho, e eu fui buscá-lo junto com eles. Mahmoud era só alegria. Depois de deixarmos o carrinho no depósito, ele disse: “Pedro, my friend, thank you very much! Now you come to my house, my wife will cook ethiopian food”.

JAIR BOLSONARO VAI AOS EUA EM BUSCA DE DOADORES E LEGITIMIDADE INTERNACIONAL

Brazilian deputy Jair Bolsonaro looks on during a press conference he called to announce his intention to run for the Brazilian presidency in the October 2018 presidential election, at a hotel in Rio de Janeiro on August 10, 2017.A controversial politician and former army paratrooper, Bolsonaro called himself the "patriot" Brazil needs, adding he is the answer to Brazil's rampant corruption, crime and economic malaise. He won more votes than any other congressman from Rio de Janeiro state in the last general elections in 2014 and polls currently show him tied in second place for the presidency, behind leftist former two term president Luiz Inacio Lula da Silva. / AFP PHOTO / Apu Gomes (Photo credit should read APU GOMES/AFP/Getty Images)

PRESIDENCIÁVEL PARA 2018, Jair Bolsonaro visitará alguns estados americanos a partir de domingo: Flórida, Massachusetts, Nova York e Washington D.C., e deve ter uma recepção turbulenta. Ativistas brasileiros nos EUA já se preparam para deixar claro que as posições de extrema-direita do político não serão ignoradas.

Bolsonaro embarca nessa viagem com a esperança de angariar apoio estrangeiro para sua candidatura presidencial em 2018. Ele tem aparecido bem nas pesquisas: tem o segundo maior índice de apoio entre os eleitores, atrás apenas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ecoando a ascensão de Trump ao poder, o establishment político e a mídia no Brasil permanecem céticos quanto à possibilidade de o deputado do PSC conseguir capitalizar esse apoio.

Para os oponentes de Bolsonaro dentro e fora do Brasil, no entanto, a possibilidade de vitória do candidato linha dura é muito concreta. “Em tempos normais, Bolsonaro nunca seria considerado um candidato presidencial viável”, afirmou por e-mail Matias López, cientista político que é bolsista acadêmico na Universidade de Harvard. “Mas o nível de divisão e erosão institucional no Brasil permitiu que ele emergisse. Ele tem uma ampla base de conservadores de direita, e é mais forte entre os cidadãos de classe média com nível de instrução mais alto.”

Uma viagem pelos Estados Unidos poderia emprestar uma aura de legitimidade que a candidatura de Bolsonaro, ainda considerado um azarão, até agora não obteve. “A visita de Bolsonaro aos EUA é motivada, ao menos em parte, pela intenção de torná-lo um candidato sério e legítimo”, afirmou por e-mail Michael VanElzakker, membro da Massachusetts Peace Action (Ação pela Paz de Massachussets), que está ajudando a organizar os protestos. “Ele quer ter oportunidade de ser fotografado em Boston com ares de estadista respeitado, não como o fascista banal, misógino e violentamente homofóbico que é.”

Para Fufu Coelho, representante do Coletivo Boston Contra o Golpe, grupo de solidariedade entre Brasil e Estados Unidos sediado em Boston, ela e outros defensores do Brasil devem garantir que Bolsonaro não tenha uma recepção calorosa nos EUA. “As pessoas no Brasil que normalmente se alinham com essa pauta também admiram os EUA como modelo de nação a ser seguido”, disse Coelho, cujo grupo está trabalhando em conjunto com o Peace Action e outros, como o Democratic Socialists of America (Social-Democratas da América). “Por isso é muito importante que haja relatos vindos daqui, mostrando que Bolsonaro não será facilmente aceito.”

Ao longo do último ano, o deputado federal no sétimo mandato tentou amenizar o histórico de discurso inflamado e ofensivo, numa jogada para se reinventar como um candidato mais moderado e razoável. “Ele está tentando se passar por liberal, o que é, essencialmente, uma mentira”, disse por e-mail Nadia Comani, representante do grupo Defend Democracy in Brazil (Defesa da Democracia no Brasil), sediado na cidade de Nova York. “Ninguém que acompanhe uma pequena parte da história dele, pelos jornais ou por seus fracassos parlamentares, pode acreditar nessa narrativa.”

“Bolsonaro sabe que precisa se mover rumo ao centro para conseguir doadores de campanha e nivelar a competição, e me parece que essa viagem aos Estados Unidos tem a ver com isso”, diz Lopez. “Ele quer parecer mais presidenciável e ‘normal’.”

Women protest against the president of the Brazilian lower house Eduardo Cunha, Brazilian Vice-President Michel Temer and Jair Bolsonaro -a far right member of Congress who has praised Brazil's former military dictatorship and torture of opponents in the 1970s- in front of a banner reading "Women against the coup" in Sao Paulo, Brazil on April 26, 2016. Six out of 10 Brazilians want snap elections to resolve the country's political crisis in which leftist President Dilma Rousseff faces impeachment, a poll released Tuesday said. / AFP / Miguel Schincariol (Photo credit should read MIGUEL SCHINCARIOL/AFP/Getty Images)

Mulheres protestam contra o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) em São Paulo (26/04/16).

Foto: Miguel Schincariol/AFP/Getty Images

EMBORA OS PROTESTOS possam transmitir a mensagem de que Bolsonaro não é o estadista moderado que atualmente finge ser, ele pode ainda assim esperar uma recepção calorosa dos seus anfitriões, brasileiros expatriados de direita. Sua viagem pela costa leste está sendo patrocinada por grupos e indivíduos que se esforçam para torná-lo mais palatável para o exterior. “Ele está ouvindo os investidores para que saibam o que esperar do próximo presidente”, disse Daniel Cunha, sócio da corretora de investimentos XP Securities, braço da brasileira XP Investimentos nos EUA.

A viagem começa pela Flórida no domingo. De lá, Bolsonaro seguirá para o norte, rumo a Massachusetts, onde passará dois dias comparecendo a eventos coordenados pelo Public Administration Institute, uma organização não governamental fundada pelos empresários brasileiros Julio Morais e Dario Galvão. “É uma grande oportunidade para que o Sr. Bolsonaro veja a importância econômica que a comunidade brasileira tem aqui nos Estados Unidos”, declarou Morais. “Ele ouvirá dos legisladores de Massachussets sobre o impacto econômico que os donos de negócios brasileiros trazem para a comunidade.”

A parte nova-iorquina da viagem está sendo coordenada pelo banqueiro Gerald Brant da Stonehaven, LLC, com grande foco em cortejar os brasileiros da indústria financeira. Brant não estava disponível para entrevista. Bolsonaro se reunirá com membros da corretora brasileira XP Securities em uma mesa redonda entre investidores e o deputado, de acordo com Cunha, da XP. É uma oportunidade para os clientes da XP avaliarem qual seria a cara do Brasil de Bolsonaro. (Cunha enfatizou a neutralidade política de sua organização diante das afirmações mais ofensivas do deputado. “O que estamos fazendo é o que sempre fizemos”, disse Cunha, “conectar investidores ao lado real dos agentes políticos e econômicos”.)

Bolsonaro também planeja se reunir com membros da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos. Procurado por The Intercept, Ted Helms, ex-executivo da Petrobras, que dirige a Câmara, citou trecho de um e-mail de convite para o debate. “O processo eleitoral e seu vencedor certamente afetarão o comércio e as relações entre Estados Unidos e Brasil”, declarou Helms. “Esses são tópicos fundamentais que a Câmara de Comércio tenta abordar por meio de painéis e seminários ao longo do ano.” Helms não teceu outros comentários depois de ler o texto do e-mail.

Os ativistas esperam chamar a atenção quando Bolsonaro chegar ao centro de poder dos EUA, em Washington. Bolsonaro espera conseguir uma audiência com os legisladores do Partido Republicano, de acordo com Cunha, e terminar sua viagem comparecendo à Brazil Initiative (Iniciativa Brasil), um projeto da Elliott School of International Affairs da Universidade George Washington.

Brazilian Expats for Democracy and Social Justice (Expatriados Brasileiros pela Democracia e pela Justiça Social), um grupo sediado em Washington, planeja protestar contra a visita de Bolsonaro ao Capitólio, mas disse ao The Intercept que ainda falta decidir a abordagem correta. “Não queremos dar a ele mais atenção do que o necessário, então ainda estamos avaliando nossas opções”, afirmou Aline Cristiane Piva, jornalista do blog Nocaute, e Veronica Slobodian, membro do grupo Brazilian Expats for Democracy and Social Justice, numa declaração conjunta enviada por e-mail.

O comparecimento à Universidade George Washington já encontra resistência. Está circulando para assinatura uma carta aberta pedindo à escola que reconsidere o convite. Os organizadores do evento, no entanto, insistem que será uma oportunidade de responsabilizar Bolsonaro por algumas de suas declarações passadas. “Vamos aproveitar a oportunidade para conversar e debater as questões controversas que ele apoiou”, disse Mark Langevin, o professor que coordena a Brazil Initiative. “E vamos ver se ele consegue se reposicionar. Se não passar nesse teste, então o debate servirá ao propósito democrático de mostrar respeito pelo processo.”

Tudo isso parece ótimo, disse Piva e Slobodian, mas dar uma plataforma para Bolsonaro ameaça normalizar sua candidatura. “Ele não é uma opção ‘liberal’, como vem sendo divulgado, mas um fascista antidemocrático que não merece sequer ser considerado uma opção presidencial”, entende ela. “Alguns o comparam a Donald Trump, mas acreditamos que seja ainda pior. Escutá-lo não é ‘dar espaço’ para um político de direita, como muitos acreditam, mas dar espaço para uma visão de mundo antidemocrática e carregada de ódio.”

Tradução: Deborah Leão

CAIUÁ, A ONG DE R$ 2 BILHÕES QUE SE TORNOU DONA DA SAÚDE INDÍGENA NO BRASIL

CONVÊNIOS BILIONÁRIOS mantidos à custa de influência política, relações suspeitas com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), acusações de suborno de lideranças indígenas, denúncias de assédio moral e ameaças a funcionários da instituição. É assim que a Missão Evangélica Caiuá, sediada na zona rural de Dourados (MS) tornou-se dona da saúde indígena no Brasil, recebendo mais de R$ 2 bilhões do governo federal entre 2012 e 2017. A rede de atuação da entidade está na mira do Ministério Público, do Tribunal de Contas da União, do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal.

Em 2000, a Caiuá firmou um convênio com a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para prestar serviços de atendimento à população indígena do Mato Grosso do Sul. A parceria durou até 2010, ano em que a Sesai é criada e passa a ser responsável por todas as ações de saúde voltadas aos povos indígenas do país. É a partir daí que o valor dos repasses e a quantidade de convênios entre a Missão Evangélica e a União explodem.

Em 2010, a ONG gerenciava sete dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs)  do país. No ano seguinte, já eram 17 as unidades gestoras de saúde sob seu comando. Os R$ 36,5 milhões recebidos em 2010 saltaram para R$ 433,4 milhões em 2015, ano em que a Caiuá foi a segunda entidade sem fins lucrativos a receber mais dinheiro do governo federal, perdendo só para o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). Somente em 2017, até maio (último dado disponível), a Caiuá já tinha levado R$ 248,6 milhões dos cofres públicos, e lidera o  ranking de ONGs mais beneficiadas pela União.

ONG tem 64% dos atendimentos

O domínio impressiona: a Caiuá responde por 64% dos atendimentos em saúde indígena. O restante fica a cargo de outras duas entidades: o Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP) e a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM). Com mais de 9 mil funcionários espalhados pelos 19 distritos sanitários em que tem contratos atualmente, a entidade atua do Acre ao Rio Grande do Sul – com destaque para Roraima e Mato Grosso do Sul. A ONG cobre, assim, uma população indígena estimada em 510 mil pessoas e é responsável por toda a contratação de profissionais de saúde especializados e pela gestão dos contratos. A Sesai fornece a estrutura adequada e os suprimentos necessários.

Instituição quase centenária, a Caiuá foi fundada em 1928 em Dourados por Albert Maxwell, pastor presbiteriano americano que decidiu empreender uma jornada de evangelização aos povos indígenas brasileiros. Além dos convênios, a entidade é dona do Hospital e Maternidade Indígena Porta da Esperança, inaugurado em 1963, e do Instituto Bíblico Felipe Landes. Além disso, criou a primeira Igreja Indígena Presbiteriana no Brasil, em 2008, e mantém diversas escolas no Mato Grosso do Sul, responsáveis por milhares de alunos, da pré-escola ao ensino médio.

Jucá, o padrinho

Para entender a influência atual da Caiuá, é preciso voltar ao ano 2000, quando o farmacêutico Demetrius do Lago Pareja assumiu a coordenação de convênios e passou a ser responsável por toda a articulação política da entidade. Ele é apontado como o principal elo da ONG com o senador Romero Jucá (PMDB-RR), que se tornou o grande padrinho político da Caiuá.

“Ele (Jucá) é quem garante todo o aparato para que a Missão possa continuar com os contratos milionários. Eles batem no peito e desafiam a Justiça a apontar irregularidades na gestão deles. A maioria das denúncias eles conseguem abafar com essa influência forte de padrinhos políticos”, afirma Lindomar Ferreira Terena, ex-presidente do Distrito Sanitário de Mato Grosso do Sul.

Procurado, Romero Jucá se recusou a comentar suas relações com a Caiuá.Ainda um dos homens fortes do presidente Michel Temer (apesar dos 14 inquéritos a que responde no Supremo Tribunal Federal), Jucá se tornou o primeiro governador do recém-criado estado de Roraima, por nomeação de José Sarney, em 1988. Antes disso, de 1986 a 1988, presidiu a Fundação Nacional do Índio.

À frente da Funai, amealhou façanhas: loteou a instituição com indicações políticas, autorizou a extração ilegal de madeira em território indígena, reduziu o tamanho do Parque Yanomami, liberou áreas para exploração de mineração, expulsou médicos e missionários e ainda é citado em relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) como responsável direto pelo genocídio de milhares de índios yanomamis. Para a CNV, Jucá permitiu que cerca de 40 mil garimpeiros invadissem as terras indígenas, o que causou um impacto devastador na comunidade.

Além do senador, a Caiuá teria a proteção também de Pastor Everaldo, presidente do PSC, partido que controla a Funai e tem promovido um desmonte completo na instituição, como admitiu o ex-ministro da Justiça Osmar Serraglio. O pastor evangélico Antônio Costa, que presidiu a Funai por menos de quatro meses este ano por indicação do PSC, é ex-funcionário da Caiuá, tendo atuado de 2005 a 2009 na instituição. Costa deixou o cargo em maio, trocando farpas com Serraglio e indicando divergências na cúpula.

Empregos na ONG em troca de votos

Roraima é o estado com a maior população proporcional indígena do Brasil e concentra também a maior presença institucional da Caiuá, que controla o Distrito Leste e o Yanomami. Juntos, os dois somam mais de 1.800 funcionários da Caiuá e são responsáveis pelo atendimento de cerca de 75 mil indígenas.

Ismael Cardeal, coordenador da Caiuá em Roraima e um dos homens de confiança de Demetrius Pareja, está sendo investigado pela Polícia Federal por oferecer empregos na ONG em troca de votos para sua candidatura a vereador em 2016, cargo para o qual ele não conseguiu ser eleito. A PF realizou busca e apreensão de documentos e dinheiro na sede da entidade em Boa Vista em outubro de 2016. Procurada, a PF não comenta a questão por sigilo. A Missão Caiuá diz que aguarda o resultado do processo para decidir se demite ou não o coordenador regional.

Ismael Cardeal, coordenador da Caiuá, posa com o senador Romero Jucá

Ismael Cardeal, coordenador da Missão Evangélica Caiuá, posa com o senador Romero Jucá.

Reprodução

As relações suspeitas entre políticos e gestores de distritos sanitários levaram a Hutukara Associação Yanomami a formalizar denúncia no Ministério Público Federal de Roraima e na Sesai em 2013. Os indígenas tiveram acesso a uma gravação de áudio que apresentava “indícios de ligações e influências” do deputado estadual Jânio Xingu (PSL) com Joana Claudete (coordenadora do DSEI Yanomami), Antônio Gonçalves (assessor de Planejamento do DSEI) e Ismael Cardeal. Para a associação, ficou claro à época nas gravações que havia uma articulação entre essas pessoas no sentido de manter a hegemonia da Caiuá nos convênios com a Sesai.

Na denúncia, a Hutukara afirmou ainda que o DSEI não cumpria a obrigação de disponibilizar os dados epidemiológicos e não era transparente com o uso dos recursos. Denunciaram também a falta de medicamentos, de infraestrutura e de condições para que as equipes de saúde prestem assistência básica. “Não compreendemos como o DSY [DSEI Yanomami] pode estar prestando um serviço de saúde com os problemas que vivenciamos tendo cerca de R$ 48 milhões só para o exercício de 2013, fora os mais R$ 38 milhões da Missão Evangélica Caiuá que é responsável apenas pela contratação dos funcionários. Este orçamento em anos anteriores era de R$ 8 milhões no máximo. Aumentaram os recursos mas não melhorou a saúde e a qualidade de vida”, diz o documento.

Três anos depois, numa mudança de postura no mínimo curiosa, Davi Kopenawa Yanomami, presidente da Hutukara, assinou uma “Manifestação de Apoio à Missão Evangélica Caiuá”. Nela, elogia a Caiuá por pagar salários em dia; afirma que os funcionários estão satisfeitos com a entidade; diz que “não há ato que desabone o Coordenador (Ismael Cardeal) e funcionários do escritório da Caiuá em Roraima, uma vez que se pautam pela transparência nos seus atos”.

O presidente da associação diz ainda que a Hutukara, legítima representante do povo Yanomami e Ye’kuana, fiscaliza e monitora todas as ações da Caiuá no estado e, por fim, manifesta “total apoio à permanência da Caiuá como conveniada junto à Sesai para o DSEI Yanomami”. Davi Kopenawa afirma que questionamentos anteriores à Caiuá teriam ocorrido “por um erro de assessoramento”.

A carta teria sido redigida por Ismael Cardeal, com a anuência e supervisão de Demetrius Pareja, restando a Davi Kopenawa, presidente da Hutukara, a mera assinatura. Procurada, a Hutukara não se pronunciou até o fechamento desta matéria. Os representantes do DSEI Yanomami também se recusaram a comentar o caso. Em ofício enviado para a reportagem, o MPF/RR informa que arquivou a denúncia porque a apuração dos fatos mostrou que “nenhum servidor do DSEI-Yanomami ou político local teve influência na escolha e na manutenção da Caiuá, uma vez que houve um chamamento público federal”.

Condições de trabalho em xeque

A Missão Evangélica Cauiá também já se viu às voltas com a Justiça do Trabalho. Em 2012, o Ministério Público do Trabalho (MPT) em Roraima ingressou com uma ação civil pública na Justiça do Trabalho contra a ONG e a União. O objetivo do MPT era assegurar melhores condições para os profissionais da área de saúde que prestam serviços nas comunidades indígenas de Roraima. À época, havia denúncias de condições precárias de trabalho.

Em 2015, a Caiuá firmou um acordo com o MPT, se comprometendo a mudar o modelo e oferecer padrões mínimos de higiene, saúde e segurança. Em entrevista a The Intercept Brasil, a procuradora do trabalho Safira Nila Rodrigues afirmou que a maioria das inconformidades foi ajustada, mas que recentes auditorias, incluindo a que foi realizada em 2017, mostram que a Caiuá ainda não cumpre com todas as condições colocadas – a escala de trabalho prevista em alguns contratos continua a não ser devidamente respeitada, por exemplo. Segundo ela, “o MPT tem ciência de todas dificuldades e está atento no bojo desse processo para requerer que a União também seja intimada. Vamos continuar nas fiscalizações dos polos de saúde”, promete.

Falta de transparência

O controle social, através do Conselho Distrital de Saúde Indígena (CONDISI), dos DSEIs, dos Grupos de Trabalho e outras instâncias, é um dos mecanismos mais importantes que os indígenas têm à disposição para fiscalizar a aplicação dos recursos, a qualidade do atendimento, identificar as necessidades de cada povo e fazer suas reivindicações. No entanto, é um processo contaminado pelas influências políticas, que faz com que presidentes de DSEIs e de CONDISIs fiquem na mão das entidades, especialmente a Caiuá.

Para o procurador Gustavo Alcântara, o controle social definitivamente está aquém do que deveria. “As instâncias de controle não têm informações transparentes do que acontece, não têm acesso a vários documentos, não têm estrutura para trabalhar e recursos para realizar fiscalizações, reuniões e deliberações. Há muito o que melhorar”, enumera.

O caso do DSEI do Mato Grosso do Sul é bem sintomático dessa realidade. Lindomar Terena foi presidente da unidade por três meses em 2016. Tanto sua nomeação quanto sua exoneração, no início do governo Temer, causaram protestos – o que dá uma ideia das inúmeras brigas políticas que contaminam as questões indígenas do estado. Durante sua gestão, no entanto, Lindomar pôde apurar várias irregularidades.

Para ele, que atua na luta indígena pelo menos desde 2003 e mora na Terra Indígena Cachoeirinha, situada na divisa do Mato Grosso do Sul com o Paraguai, o estado em geral da saúde indígena é de calamidade pública e falta boa gestão para mudar isso. Lindomar também acusa a Missão Caiuá de utilizar indevidamente as instalações do próprio DSEI para suas despesas operacionais, de pressionar funcionários a defender a ONG, sob pena de demissão, e de manter funcionários fantasmas.

“Encaminhamos ao Ministério Público Estadual alguns dados de funcionários que ganhavam da Missão Caiuá sem trabalhar. Não podíamos conviver com aquela situação e eles foram demitidos. A Caiuá tentou nos intimidar conforme fazíamos auditoria mas mantemos nossa posição”, conta.

No caso da denúncia dos funcionários fantasmas, o MP não conseguiu provar as acusações feitas por Lindomar.

Convênios ao menos até o fim do ano

Até 2016, a Sesai foi administrada pelo médico cirurgião Antônio Alves, que comandou a transição da Funasa para a secretaria. Alves teria relação próxima com Demetrius Pareja, o que pavimentou o caminho para que a Caiuá alcançasse os 19 DSEIs no chamamento público de 2013, convênios que serão mantidos até o fim de 2017 e possivelmente, caso uma nova extensão ocorra, até o fim de 2018.

Com a saída de Antônio Alves, a relação entre a Caiuá e seu sucessor no cargo, Rodrigo Rodrigues, hoje diretor de Proteção Territorial da Funai, foi marcada por animosidade. Lindomar Terena conta, por exemplo, que a Caiuá chegou a mandar mensagem para todos seus funcionários no Mato Grosso do Sul convocando-os a manifestarem apoio à Caiuá, para que a ONG continuasse com os convênios. Do contrário, todos seriam demitidos.

“Os funcionários foram para a rua, para o DSEI, para polo de saúde, para a BR, manifestando apoio a Caiuá. Eles usam os próprios funcionários para manter os convênios. Se os funcionários não manifestassem apoio, em 30 dias, todos estariam desempregados. E as pessoas, mal informadas, obedeceram”, afirma.

Segundo Lindomar, a Caiuá em Campo Grande nem se preocupa em ter escritório próprio. Em vez disso, aproveita-se da estrutura dos distritos que comanda. “Quando assumimos o DSEI, descobrimos que ela usava uma sala, as viaturas, telefone, internet, água, luz, tudo dentro dele. Como ficamos apenas 3 meses, não conseguimos removê-los, ela continuou e a nova gestão tomou conta. Esta é a forma que eles atuam no estado”, acusa.

Alvo do TCU

Na sua cidade-sede, a Caiuá sempre chamou atenção: foi um dos alvos da chamada “CPI da Desnutrição Indígena”, finalizada em 2008. Na época, o escândalo da morte de mais de 80 crianças indígenas no Mato Grosso do Sul, vítimas de desnutrição ou de doenças associadas à inanição, teve repercussão internacional. O relatório da CPI indicou que havia conflitos de funcionários que não aceitavam o modelo de gestão terceirizado, questionado pelo Ministério Público do Trabalho e pela Controladoria Geral da União.

Para o procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida, que atua em Dourados há 9 anos, um dos fatores que dificultam a fiscalização é que a aplicação do recurso é descentralizada. “Torna-se uma investigação um pouco mais difícil porque em tese esses desvios são realizados nos locais sede e não aqui, em que receberiam só o pagamento. Esse é um fator que dificulta, especialmente com o crescimento que a Caiuá teve nos últimos anos”, afirma.

Há em curso contra a Caiuá também uma investigação do Ministério Público Federal e um processo em andamento no Tribunal de Contas da União (TCU) para auditar convênios da Sesai em todo o país. O processo foi enviado para relatoria do ministro Bruno Dantas em novembro de 2016 e aguarda julgamento do plenário colegiado do TCU, ainda sem previsão de acontecer. A reportagem teve o pedido de acesso ao processo negado.

No entanto, em entrevista, o secretário do TCU no Mato Grosso do Sul, Tiago Modesto, afirma que foram encontradas irregularidades nos convênios das três entidades responsáveis pela contratação de pessoal para os distritos sanitários (Caiuá, IMIP e SPDM). Segundo ele, a auditoria analisou se os profissionais contratados cumpriam a obrigação laboral de acordo com o total de horas previsto no sistema; se a fiscalização da gestão do convênio estava sendo realizada conforme a lei (Portaria Interministerial 507 e Decreto 8.901 de 2016); e se os cerca de 15% do valor de cada convênio para gestão do contrato foram de fato gastos com despesas administrativas.

“O que posso dizer no momento é que todas as entidades apresentaram desconformidades em relação à lei”, adianta Modesto. Segundo ele, a auditoria não partiu de uma denúncia específica, mas porque o volume de recursos repassados para a Caiuá chamou a atenção por ser alto demais.

“Convênios em geral possuem algumas fragilidades de controle, não costumam ter um controle muito apurado”, assume o secretário.

No site do TCU, já estão disponíveis o acórdão 863/2017 e o acórdão 2187/2016 , que servirão de base para o julgamento do plenário. Lá, a Caiuá é intimada a fazer ajustes:

“Dentre as determinações dirigidas à Sesai, destaca-se a que se propõe exigir das convenentes “que todos os profissionais atualmente contratados e ativos comprovem junto às entidades a compatibilidade de seus vínculos adicionais”, bem como a que fixa prazo de 90 (noventa) dias à Sesai para exigir dessas entidades, inclusive da Missão Evangélica Caiuá (responsável pelos indígenas de Dourados/MS), providências com vistas a inserir nos planos de trabalhos de cada um dos convênios demonstração das estruturas de pessoal necessárias para sua gestão..”  

Outro lado: Caiuá nega irregularidades

Em entrevista concedida pelo seu coordenador de convênios, Demétrius Pareja, e pelo seu presidente nacional, Geraldo Silveira, a Missão Evangélica Caiuá negou todas as irregularidades e afirmou que assumiu os convênios com a Sesai “a contragosto”. Os dois representantes alegam que, no chamamento público de 2013, a intenção era administrar menos DSEIs mas que acabaram assumindo mais distritos “porque não tinha ONGs interessadas”, e a experiência da entidade a credenciava para assumir a responsabilidade.

A Caiuá também afirmou que todas as suas prestações de contas foram realizadas em dia e que, auditadas por instituições públicas, não apresentaram nenhuma irregularidade até o momento. Lembrou ainda que os dados podem ser vistos pelo sistema de convênios do governo federal em tempo real com total transparência.

Segundo seus representantes, a assembleia da instituição já deliberou que a Caiuá irá entregar todos os convênios até o fim de 2017 – ou no máximo até o fim de 2018, caso sejam ampliados pelo ministro Ricardo Barros. Mas após quase 20 anos atuando diretamente na saúde indígena, não participará de novos editais ou chamamentos da Sesai. “Os questionamentos e críticas quanto ao modelo de saúde indígena têm caído nas nossas costas. Isso tem trazido mais prejuízo que benefício para a imagem da instituição”, diz Silveira. Encerrados os atuais convênios, “está oficializado que a Missão não vai participar de novos chamamentos”, comprometeu-se.

Segundo eles, o volume de recursos recebido pelo governo federal teria passado a inibir as doações que sempre mantiveram as ações da instituição desde a sua fundação. De acordo com Pareja, o risco não compensa. “Acumulamos muitos questionamentos e inseguranças jurídicas. Gerir 9 mil funcionários é um risco institucional muito grande. São muitos políticos se arvorando como parte da Caiuá ou nos execrando porque não colaboramos com eles”, defende-se.

As doações recebidas de igrejas brasileiras e do exterior teriam caído mais de 60% em função do protagonismo que a Caiuá assumiu e das centenas de milhões que recebe por ano. “Quando mando uma circular pedindo uma doação para o hospital, por exemplo, a resposta que tenho é ‘porque vamos doar se vocês já recebem tanto?’. Isso é um incômodo muito grande para a instituição”, diz Silveira.

Segundo a entidade, as irregularidades apontadas em ação do Ministério Público do Trabalho de Roraima foram em função de responsabilidades não cumpridas da União. E reiterou que está ciente das investigações em curso do Ministério Público, do TCU e da Polícia Federal mas que, até o momento, a Caiuá não foi condenada e que garante total transparência na sua atuação.

A Caiuá negou qualquer relação com os políticos citados na reportagem que não a meramente protocolar e formal e também que o senador Romero Jucá tenha atuado como seu padrinho. Demetrius Pareja afirmou ainda que sua relação com Antonio Alves, secretário da Sesai, era cordial e próxima, mas absolutamente funcional.

A ONG também negou expressamente que mantenha funcionários fantasmas. Os representantes dizem que jamais ameaçaram ou assediaram moralmente seus funcionários de forma institucional e que todo caso esporádico foi investigado e punido internamente. Por fim, seus representantes reforçaram que a ONG sempre ficou à margem de eventuais disputas políticas.


USAR O CONTROLE REMOTO É UM ATO DEMOCRÁTICO!

EXPERIMENTE CONTRA A TV GLOBO! Você sabe que um canal de televisão não é uma empresa privada. É uma concessão pública concedida pelo governo federal com tempo determinado de uso. Como meio de comunicação, em uma democracia, tem como compromisso estimular a educação, as artes e o entretenimento como seu conteúdo. O que o torna socialmente um serviço público e eticamente uma disciplina cívica. Sendo assim, é um forte instrumento de realização continua da democracia. Mas nem todo canal de televisão tem esse sentido democrático da comunicação. A TV Globo (TVG), por exemplo. Ela, além de manter um monopólio midiático no Brasil, e abocanhar a maior fatia da publicidade oficial, conspira perigosamente contra a democracia, principalmente, tentando atingir maleficamente os governos populares. Notadamente em seu JN. Isso tudo, amparada por uma grade de programação que é um verdadeiro atentado as faculdades sensorial e cognitiva dos telespectadores. Para quem duvida, basta apenas observar a sua maldição dos três Fs dominical: Futebol, Faustão e Fantástico. Um escravagismo-televisivo- depressivo que só é tratado com o controle remoto transfigurador. Se você conhece essa proposição-comunicacional desdobre-a com outros. Porque mudanças só ocorrem como potência coletiva, como disse o filósofo Spinoza.

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CAMPANHA AFINADA CONTRA O

VIRTUALIZAÇÕES DESEJANTES DA AFIN

Este é um espaço virtual (virtus=potência) criado pela Associação Filosofia Itinerante, que atua desde 2001 na cidade de Manaus-Am, e, a partir da Inteligência Coletiva das pessoas e dos dizeres de filósofos como Epicuro, Lucrécio, Spinoza, Marx, Nietzsche, Bergson, Félix Guattari, Gilles Deleuze, Clément Rosset, Michael Hardt, Antônio Negri..., agencia trabalhos filosóficos-políticos- estéticos na tentativa de uma construção prática de cidadania e da realização da potência ativa dos corpos no mundo. Agora, com este blog, lança uma alternativa de encontro para discussões sociais, éticas, educacionais e outros temas que dizem respeito à comunidade de Manaus e outros espaços por onde passa em movimento intensivo o cometa errante da AFIN.

"Um filósofo: é um homem que experimenta, vê, ouve, suspeita, espera e sonha constantemente coisas extraordinárias; que é atingido pelos próprios pensamentos como se eles viessem de fora, de cima e de baixo, como por uma espécie de acontecimentos e de faíscas de que só ele pode ser alvo; que é talvez, ele próprio, uma trovoada prenhe de relâmpagos novos; um homem fatal, em torno do qual sempre ribomba e rola e rebenta e se passam coisas inquietantes” (Friedrich Nietzsche).

Daí que um filósofo não é necessariamente alguém que cursou uma faculdade de filosofia. Pode até ser. Mas um filósofo é alguém que em seus percursos carrega devires alegres que aumentam a potência democrática de agir.

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