Fomos até o terreiro do Pai Francisco e enquanto caía uma chuva, com sua costumeira candura, o respeitabilíssimo Pai de Santo falou sobre diversos assuntos da religião Umolocô. Assuntos que dizem respeito tanto aos que comungam dessa religião quanto aos que simpatizam e querem conhecer, e também para aqueles que vêem nas religiões afro-brasileiras não somente um culto, mas resistência de uma parte de nossa cultura que sobreviveu na vivência, na luta de pessoas que ao longo de toda a história brasileira foram estigmatizados, sofrendo violentações físicas e epistemológicas por cultuar sua autêntica religião.
AS PRÉ-VISÕES: OGUM, OXÓSSI E OXALÁ
Vai ser um ano de muita fartura, um ano de muita coisa boa. Vai ter guerra sim, porque senhor Oxóssi é um guerreiro, senhor Ogum é um guerreiro, Oxalá é o maior, é o supremo, que é o nosso pai e que rege todos nós e todos os orixás. Então, vai ter fome, vai. Vai ter desgraça, vai. Vai porque onde tem coisa boa também tem desgraça, mas vai ter prosperidade, trabalho, muito amor. Muita luta das pessoas que não conseguiram atingir seus objetivos no ano passado. Vai ser um ano maravilhoso pra quem gosta de correr atrás. E a gente tem que ir na busca da nossa sobrevivência, do nosso respeito, da nossa justiça da bonança, do amor, da fartura, de tudo. Então isso foi o que deu nos búzios e nas cartas também. Muita guerra, deu que políticos vão se dar mal, vai ter muitos políticos corruptos, gente que vai enganar o povo. Então tudo isso cai, tudo isso acontece. Mas vai ter muita coisa boa, de união com o próximo. Um ano maravilhoso pras pessoas que vão atrás, gostam de axé, que gostam da verdade, que gostam das coisas boas. Então Oxalá, Oxóssi e Ogum, eles vão mandar esse ano todinho. Quem é filho de Ogum, vai ganhar muita coisa; quem é filho de Oxalá, muito mais; quem é de Oxóssi, também vai ganhar. Todas as pessoas vão ganhar. Aqueles que não são do ramo também vão ganhar, porque não é porque não são filhos de santo que não vão, mas quem é da cabeça é só correr atrás que vai conseguir seu objetivo.
TERREIROS E FALSOS TERREIROS
A minha casa é assim, é uma casa simples, mas é uma casa que tem força, é uma casa que as pessoas vêm todo dia: pra fazer trabalho, pra consulta, pra resolver problema, e eu também, que tenho meus problemas, deixo um pouco os meus de lado e vou ajudar os outros. As nossas entidades, elas ajudam a gente. Então a gente ajuda, fazendo bondade, fazendo cura. Quando mandam maldade pra mim, eu me defendo. Quando mandam alguma coisa pra mim, querendo acabar com minha casa, fechar minha casa, já teve muita gente que fez muita coisa, não sei por que. Nós somos simples, nós somos de cor, se tivesse um canal que mostrasse assim a nossa cultura, mas uma cultura bonita, porque tem muita gente aí que finge que está com a entidade, pra extorquir, pra enganar as pessoas. Então, daqui pra 2009, quem sabe Deus Oxalá, nosso Pai, nosso Pai Oxóssi, nosso Pai Ogum, nosso Pai Xangô, todos os orixás, nossa Mãe Iansã, nossa Mãe Oxum, nosso Pai Obaluaê, tem muita gente boa, que trabalha. Mas tem muita gente que só sabe meter o pau na gente: pecador chega, “olha, por quanto é que tu faz?”, “me dá 4 mil reais”. Aí a pessoa vai dar o jeito dela, às vezes vende casa, tira o dinheirinho dela do banco, mas não tem êxito naquele trabalho. A gente pega a fama por causa dessas pessoas. Aí as pessoas já ficam desacreditadas, elas não querem mais procurar um terreiro pra se cuidar; às vezes a pessoa tá com um feitiço, mas a pessoa já andou tanto, que ela acaba procurando a igreja, ela prefere procurar a Deus. Deus tá vendo aquela situação, mas lá não é o lugar dela ser curada. É preciso procurar uma religião espiritual pra tirar aquilo. Já veio muita gente aqui, “olha, eu tô assim, me desenganaram”, “senta aí, minha filha, te acalma”, vou conversar tudinho, como já veio várias pessoas aqui com coisa feia, com bicho na barriga, bicho na garganta; agora tem uma moça que está com um ‘nozão’ deste tamanho na garganta; o bicho anda prum lado e pro outro; ela já foi na casa de uma mulher, a mulher faz dois meses que tá cuidando dela e nada. Ela disse que já gastou 2 mil com a mulher. Tudo isso vai nos arruinando. Por que não saiu? Porque ela não estudou. Ela não procurou uma mãe de santo ou um pai de santo, um zelador de santo, pra estudar, pra entidade ensinar, porque a entidade sabe. Quando a gente não sabe, ela pula em cima da gente e ela mesma faz, ela mesma cura. Às vezes eu não sei uma folha, mas minha entidade, que é da mata, da água ou da encruzilhada, ela sabe. Eu não sei, mas ela sabe. Ela incorpora e vai cuidar da pessoa. E deixa pro filho, “olha, eu cuidei dessa pessoa assim, o material foi esse e deixo pro meu filho, que pra ele aprender”. Tem muita gente, “ah!, eu abro uma casa”, eu digo, “gente, barracão é uma coisa divina, é uma coisa fina e muito perigosa”, pra você montar um barracão, você precisa passar por uma feitura, você primeiro tem de passar pelo mandamento, você tem de passar por um bori, por um obi, por um amanci de santo, um amanci de ervas daí que você vai se elevando espiritualmente, você fica deitado um mês com seu santo, aí sim, você vai estar aprendendo, porque ninguém nasce sabendo, você aprende comigo, eu aprendo com você, tem coisas que você sabe que eu não sei. O coração dos outros é terra que ninguém anda, e nem a mente; a mente das pessoas, o espírito, ele só consegue pegar as coisas quando você tá pensando naquela hora, aí ele capta rapidinho o seu pensamento, então se ele viu você em alguma ocasião, se alguma entidade reconheceu você, “olha, eu lhe conheço de algum lugar, já lhe vi aqui”. É uma coisa muito bonita, muito maravilhosa.
UMA NOVA ASSOCIAÇÃO
Na minha casa eu sempre tenho cliente, eu trabalho direto, eu corro pra ali, eu corro pra cá, aí eu vou construindo devagarzinho, porque a gente não tem apoio da federação, a gente não tem uma federação que dê apoio pra gente, a federação é só pra arrecadar a graninha e encher o bolso dos pais de santo, não é todos, mas têm muitos. Agora nós estamos entrando numa associação, com a Dona Helena, aqui da Cidade de Deus, o Gilmar, que é uma pessoa de luta, tá pegando o nome da gente, porque a federação é pra arrecadar dinheiro pros terreiros, algum filho de santo que chega carente, porque tem muita gente que não tem dinheiro pra comprar uma roupa, não tem dinheiro pra fazer uma obrigação, chega filho de santo aqui que não tem nem casa pra morar. E quando chega aqui tem emprego, tem amor, tem casa pra morar, porque ele vai cuidar do santo, a gente se rebola daqui, se rebola dali. Todos os médiuns que vêm pra casa da gente não vêm bem, eles sempre vêm com problemas, ou de santo, ou de família, ou de amor, ou de feitiço, ou de alguma mazela.
POLÍTICOS NO TERREIRO: SEMPRE OS MESMOS
Os políticos são os primeiros a procurar a gente, quando está perto das eleições eles procuram logo os terreiros, “olha, eu te dô tanto, eu quero ganhar”; se é vereador, “olha, eu vou te ajudar nisso”, mas só que muitos deles mentem, aí a gente se mata de trabalhar, coloca as entidades pra trabalhar, dá aquelas oferendas todas, e quando ganham esquecem, mas só que eles não esperam o que vai acontecer, porque assim como as entidades dão, elas recolhem rápido, num piscar de olhos, por isso que muitos políticos se dão mal, é por isso que se descobre muito podre dos políticos, porque eles fazem pacto, dão muita coisa pra entidade pra ganhar pra presidente, governador, vereador, depois eles se esquecem, mas se é ela que induz aquele povo todo, até os que são contra, a votarem nele. Tem gente que não acredita que existem forças ocultas, mas como não existe se Deus é uma força oculta? Deus é espírito, ele não é carne. Ele foi carne, sofreu, morreu, pra mostrar pra gente ter um pouco de piedade, mas assim como existiam discípulos dele que eram ruins, como conta nas histórias dele que nós conhecemos, porque a verdadeira história a gente não sabe. A verdeira história de Cristo é por aí, mas falta muita coisa, muitos papéis sumiram na época dos nossos antepassados, muitas pedras sumiram. Assim como existem pessoas boas, têm pessoas levianas, que está com você e tá lhe traindo, a gente tá vivendo isso todo dia, meu filho. Então a gente tem de pular prum lado, pular pro outro, ver o que está acontecendo.
NA INCOMPREENSÃO DAS DIFERENÇAS
O candomblé é uma coisa boa. O Candomblé existe. Uma vez veio um rapaz aqui do Candomblé que falou uma coisa que eu não gostei, querendo me rebaixar. Eu não sou Candomblé, eu sou Umolocô, mas ao mesmo tempo somos Candomblé, porque Umolocô é junto com o Candomblé. Eu estudo muito o Candomblé. A única coisa que não se faz aqui é catular. Aí ele chegou aqui querendo me rebaixar, dizendo que a minha religião não existia, que a gente não tinha nada, que só quem tinha era ele que era do Candomblé. Eu fiquei muito chateado. Ele quis dizer que a gente não era nada, só é quem tem santo. Mas é claro que aqui tem santo. Em todo lugar o santo tá. Se você é da Umbanda, na Umbanda se faz bori. Como é que o santo não tá lá? Agora na Umbanda antiga não se faz bori. A Umbanda antiga era só uma imagenzinha do caboco, faz o amanci de frutas, o amanci de ervas, o caboco vira, faz aquele trabalho, mas não fazia nem bori, nem obi. A pessoa só tinha amanci na cabeça, não recolhia pra santo. Agora não, na Umbanda que nós estamos agora já faz bori. Aí eu disse “olhe, eu tenho santo, você quer ver, eu tenho foto”, aí eu amostrei só uma coisinha que não ia dar importância, porque a gente não pode mostrar. Aí uma vez ele veio assistir, aí ele quebrou a cara, ele viu como era meu trabalho, que eu tinha espírito de verdade. Acho que ele tava pensando que eu não sabia, porque ele estudou muito. Mas você sabia que às vezes aquela pessoa mais humilde é que tem sabedoria? Às vezes aquela pessoa estudou muito, mas o estudo não glorifica ninguém. Às vezes aquela pedrinha mais miudinha que você vê lá no chão, “pra que que eu quero essa pedra, essa pedra não serventia de nada?”, mas é aquela pedrinha que faz brilhar, é isso que o pessoal não sabe. Então eu pego as pequenas pedrinhas do chão pra mim construir o meu castelo. Eu não vou pegando as pedras mais brilhosas que vêm não. Eu vou pegando aquela mais pequenininha, que é pra poder eu ir polindo ela, pra depois ter meu sucesso.
PRECONCEITOS E MARMOTAGENS
Ainda existe muito preconceito, mas nessa parte onde nós vivemos, no Amazonas não devia ser assim, é uma terra bonita, com muitas matas, muita água, terra de Pai Oxóssi, de Mãe Oxum. Agora é que está se esbangindo a cultura, a Umbanda, o Candomblé, Ketu, Umolocô, agora é que estão se expandindo, as pessoas estão aceitando mais, mas ainda tem gente que joga pedra, que xinga. Tem lugar que a gente vai que meu Deus do céu, é pombogira sentando na perna de homem, pombogira beijando, que é isso, não existe isso, isso é mentira, é a Dona Mariana comendo peixe na cabeça do seu menino. As pessoas que conhecem sabem que isso é mentira. Como é que a Dona Mariana vai poder se apaixonar por você na minha cabeça? Ela pode ter um amor, um carisma, ela gosta de você como pessoa. A entidade tem sentimento. Se você passar por ela, “oi, Dona Mariana!”, ela vai sentir, ela vai lhe ajudar, ela vai se doer por você, mas esse negócio de amor, beijar na boca, a pombogira sentada na perna do homem, na cabeça de uma bicha, não tenho nada contra, sou homossexual, mas me dou muito respeito, assumo o que eu sou. Uma vez eu fui numa festa, a pombogira com um salto desse tamanho, um batomzão no beiço. Aonde fica a moral do homossexual? Fica no chão, porque a pessoa que vai chegar e ver aquilo vai dizer “ah, isso aí não é a entidade, isso aí é a bicha que tá fingindo”. É o equé. Tem gente que tem raiva de mim porque eu falo isso, mas eu vou falar. Se a pessoa é homossexual, não tem problema, Deus também foi tentado na juventude dEle. Foi Deus que colocou no mundo, veio da genética, ninguém é culpado. Seja o que você é, se você gosta de uma pessoa, goste. Não fique mostrando pro mundo que você é aquilo assim, por causa que isso aumenta o preconceito também. Agora as pessoas têm que saber se defender, o homossexual ou a lésbica tem que saber se defender, o negro, o branco, porque pra todos nós pode existir preconceito. Se a pessoa tem o nariz torto, os outros falam; se a pessoa tem o olho assim, “olha o olho dela”. Isso acontece porque às vezes o homossexual não tem coragem de dar em cima do cara, “olha, eu gostei muito de você, eu quero conversar com você”. Eu quando quero uma coisa eu vou, eu não vou botar a entidade no meio. E o meu nome como é que vai ficar, “olha, o Pai Francisco”? Deus me livre!
A FAÍSCA SOLIDÁRIA DE PAI FRANCISCO
Uma casa de santo tem de ser respeitada, o pai de santo tem de se dar respeito, botar moral em cima dos médiuns. As únicas casas que eu vou, gosto de ir, é a da Dona Maria José do Japiim, que tem um barracão de zinco, e no Jeovano, porque ele me trata bem, uma vez ele também veio aqui, ele cantou. A nossa umbanda é tudo de bom, eu não sou de Manaus, eu sou piauiense, mas aqui eu não ando enganando ninguém, minhas entidades trabalham direito, graças a Deus, meu trabalho é certo. Nunca veio alguém bater na minha porta reclamando de um trabalho que eu fiz e não deu resultado. E tudo a gente pede a providência de Deus, porque Deus é que dá o caminho pra nós, mas têm as forças ocultas mais embaixo, aí Deus não mete mais a sua mão, quando têm um irmão que têm forças ocultas abaixo dele, aí esse é que tem mais poder aqui embaixo, aí Deus já não mete a mão dele. Na minha casa eu sou uma pessoa muito meiga, eu trato as pessoas bem, eu gosto muito de dar conselho, eu gosto muito de dar mão amiga. Às vezes vem gente de longe aqui, conversar comigo, pedir um conselho. Aí diz, mas o senhor me ajudou; eu digo, “não, meu filho, eu sou apenas uma faisquinha”. Mas se chega na minha casa, tem comida, vamos comer; se tem café, a gente toma; se tem janta, a gente janta. E eu vou assim, vou levando minha casa pra frente, tenho muitos filhos, e a gente vai seguindo o caminho da gente, a gente erra, mas o santo não, se a lei do santo é aquela, eu tenho que fazer aquilo. Meu Pai Oxalá, no dia que eu for errar, me dê uma luz, uma força, me ilumine…
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